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1º de Dezembro de 2014: Quando as ruas nos chamam

* Por Alessandra Nilo

Alguns textos recentes sobre a aids têm me deixado um pouco o gosto de café requentado, de conversas repetidas. Há muito o HIV não é mais só um tema de saúde pública ou uma questão de direitos humanos. E há mais de uma década insistimos que essa epidemia seria relevante para o debate sobre o desenvolvimento social e econômico em todo o mundo.

Ao que parece, não estávamos repetindo mantras, já que os dados e indicadores disponíveis mais que atestam o quanto os grandes debates sobre aids foram – e continuam sendo – capazes de aglutinar agendas. A questão é que, mesmo provado esse potencial integrador, muitas vezes sucumbimos a disputas mesquinhas.

Em 2008, por exemplo, por acharem que havia muito dinheiro investido na epidemia,  foi plantada a falsa disputa entre ‘fortalecer os sistemas de saúde’ ou investir nos ‘programas verticais para aids’ que, comprovadamente, apresentavam bons resultados, mesmo em lugares onde os sistemas de saúde eram frágeis.

Era óbvio que nunca se tratou de um ou outro, era óbvio que o investimento em HIV fortalecia os sistemas de saúde, mas nada é claro quando os interlocutores são míopes. Sete anos depois, o acirramento do debate ‘tratar para prevenir’ ou ‘prevenção combinada’ apenas indica que muitas pessoas  em postos-chave de decisão pouco aprenderam ao longo de  30 anos de epidemia.

É por essas e outras que escrever um artigo para o 1º de Dezembro, atividade que sempre apreciei fazer, nunca me pareceu tão difícil. Certamente, não pela complexidade do tema e suas questões correlatas com as quais convivo cotidianamente, mas porque, num contexto extremamente acirrado de disputas por prioridades, localizar o protagonismo da aids, seja no Brasil, seja no mundo, requer encarar que temos agora bem mais perguntas a responder do que jamais imaginamos que teríamos, considerando todo o conhecimento adquirido e todos os avanços científicos da última década.

É difícil, sim, celebrar os avanços da tecnologia diante dos retrocessos no processo civilizatório. Chega a ser criminoso que interesses comerciais e desinteresses políticos ainda forcem a existência de cidadãos de primeira classe – os que têm acesso à saúde e à educação de qualidade – e os de classe alguma, predestinados pelo seu lugar de nascimento ou condição econômica, pela orientação sexual ou identidade de gênero, a sofrer pela ausência de informação e de alternativas para prevenir-se ao HIV. Ou, ainda, serem privadas do acesso ao tratamento de um agravo já considerado crônico pela saúde pública, mas ainda cotidianamente fatal devido aos sintomas que o acompanha, entre eles o preconceito e a discriminação.

É paradoxal que as discussões contemporâneas sobre como melhor responder ao HIV, ao mesmo tempo que se polarizam, continuam a se expandir em vários sentidos e a redimensionar fronteiras culturais – por isso as tensões que enfrentamos não são pequenas nem poucas, num momento em que, global e localmente, vivemos grandes disputas sobre o futuro do planeta e sobre o quão “sustentável” são os atuais caminhos do desenvolvimento.

Nas Nações Unidas, por exemplo, forças que pouco progridem e muito colidem, buscam consenso sobre quais os Novos Objetivos do Milênio possíveis (não os necessários) e também sobre o quadro mundial de crise energética, econômica, alimentar e de retrocesso na sustentabilidade ambiental que está dado. A pergunta de um milhão de dólares é, portanto, como manter uma resposta efetiva ao HIV nessa “nova” agenda?

Acordar entre estados-membros a meta de  ‘acabar a epidemia de aids, tuberculose e malária até 2030’ nem foi tão difícil. Complicado será combinar o ‘como’, o ‘quem vai pagar a conta’, ‘quais as parcerias que queremos’ e ‘quem vai sentar à mesa para definir os processos’.

No Brasil, essas mesmas questões se mantêm e nunca foram tão pertinentes, mas aqui o debate será, certamente, bem mais difícil. Que não somos um país para principiantes e que o HIV cada vez mais perde espaços e se banaliza, já não é novidade. Mas após essa última eleição,  na qual o tema sequer foi debatido, as barganhas pelo poder já estabelecido evidenciam que usar a razão e argumentos baseados em evidências de resolutividade para garantia e aprofundamento de direitos conquistados passa ao largo das prioridades (e da capacidade) da atual política nacional.

Por isso, se o passado pode inspirar o futuro, nunca foi tão importante lembrar o quanto a resposta à aids continua a ser única: ativistas e pessoas vivendo com HIV alargaram as fronteiras dos direitos sexuais, da proteção social, do comércio e do acesso a medicamentos, forçando práticas mais transparentes na gestão das contas públicas. Nosso movimento catalisou uma mudança social positiva e inovadora, gerou novos mecanismos de governança e financiamento em níveis nacional e internacional, mudou a forma como os serviços de saúde são disponibilizados e produziu evidências de que a luta contra os determinantes de risco e vulnerabilidade ao HIV é fator primordial para a construção de sociedades mais saudáveis, mais equitativas e mais seguras.

Talvez seja exatamente o sucesso dessa história que assusta e explica as narrativas que se consolidam e apontam tensões entre o movimento social e gestores que resistem em reconhecer a centralidade do papel de uma sociedade organizada no debate sobre o desenvolvimento. E não são necessários videntes. É notícia velha que 2015 virá em companhia de arrochos econômicos, com impactos profundos nas políticas sociais, incluindo as de HIV, que os desafios da participação social serão ainda maiores.

Passada a ressaca pós-eleição, esperar uma guinada à esquerda é como esperar um Papai Noel que esqueceu do Natal. Por isso, frente a lideranças políticas que pouco inspiram, estou entre aquelas pessoas que olham às ruas como única via possível de disputa por um Brasil mais justo, menos desigual e com maiores chances de superar a epidemia. E escreverei em meus cartazes de protesto “zero mortes por aids”, “zero novas infecções”, “zero casos de estigma e descriminação”.

Afinal, em pleno século 21, não seriam estes os únicos números aceitáveis? Certamente seriam números possíveis se mais gestores/as, genuinamente, se indignassem com cada morte, cada infecção e cada ato de violência contra as pessoas afetadas pelo HIV.

Contudo, enquanto isso não acontece, num momento em que a humanidade se desmonta tanto e pouco se reconstrói, melhor se preparar e arregaçar as mangas: em 2015 manter a aids como tema relevante na agenda nacional e internacional, apesar das evidências, será tarefa hercúlea.
* Alessandra Nilo é jornalista. Coordenadora da Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero e Secretaria Regional da LACCASO – Conselho da America Latina e Caribe de ONGs/Aids

Fonte: Agência AIDS

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