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Por Cândido Grzybowski*

Que começo de ano! As prisões brasileiras são palco de verdadeiras carnificinas entre bandos enjaulados, todos seres humanas tratados como se fossem sacos de batatas deixadas para apodrecer. As chacinas, especialmente nas favelas e periferias, já são tão corriqueiras que a maioria nem mais é notícia. Morrem jovens favelados e morrem policiais, numa guerra sem causa. Muitas mortes pelas tais “balas perdidas”, como se 99,9% dos tiros não fossem intencionados, disparados para exatamente matar. Mata-se na certeza que tudo vai ficar assim mesmo. Será que entramos num momento de normalidade do matar e de ser morto? Quando vemos aqueles horrores na guerra na Síria e os dramas dos que fogem para sobreviver ficamos chocados. Também ficamos perplexos diante das atrocidades de que são capazes de praticar aqueles fanáticos militantes do Estado Islâmico ou os bandos armados na Nigéria.  Os frequentes ataques terroristas mundo afora criam consternação e ficamos felizes por não ser por aqui.  Mas por que  a barbárie no nosso cotidiano não nos causa horror igual?

Um fato fundamental que gostaria de registrar é a rapidez com que estão se deteriorando as condições de convívio social entre nós. O governo golpista da “ordem e progresso” por enquanto está abarrotando as ruas de condenados à miséria. Na correria do dia a dia, a gente vê mendigos empilhados pelas ruas, catando algumas sobras que o nosso modo predatório de viver, concentrador de riquezas e consumista, incapaz de distribuir e compartir, vai deixando como lixo por aí. Aliás, a gente enxerga muitos na mendicância – mulheres, crianças, jovens e homens – mas faz de conta que não vê toda essa gente sem identidade e sem direito a um mínimo de dignidade humana. Evitamos pensar no que isto nos interpela. De fato, na humanidade negada a tanta gente pelo iníquo sistema social, econômico e de poder que temos, negamos humanidade a nós mesmos.

Hoje, como todos os dias, mais uma vez vi o absurdo das guardas municipais, em suas motos, interpelarem os mendigos de sempre aqui na minha volta, no Flamengo. Chama a atenção um jovem sem camisa – sorte dele que o verão está escaldante -, aqui entre a Ferreira Viana e o Palácio do Catete. Ele lava carro em busca de algum trocado, quando consegue um pouco de água. O coitado é abordado e revistado diariamente pelos guardas como se criminoso fosse. Já foi levado e largado mais adiante. Nas revistas, só falta despí-lo. O máximo que os guardas acham é um pano velho em sua mão, seu grande instrumento de trabalho. Nem sei onde ele consegue dormir. Mas tem muitos companheiros de infortúnio no mesmo território, vivendo na rua e da rua. O impressionante é que ninguém dá bola, passa ao largo.

Tenho pensado muito no livro de Victor Hugo, “Os Miseráveis”, da segunda metade do século XIX, na Paris das luzes. Enquanto Marx escrevia sobre as misérias do capitalismo, Hugo produziu um magistral livro sobre o drama dos condenados pelo sistema. Aquilo parecia a fase do capitalismo completando a sua acumulação primitiva (com expropriação, colonialismo e escravidão) e o período selvagem de exploração do trabalho para chegar a um domínio completo. Esperava-se – e ainda nos pregam – que, a partir daí, a riqueza gerada seria distribuída e inundaria as sociedades. Este é o discurso arrogante dos economistas a serviço do neoliberalismo. Ledo engano. Séculos vão passando, com guerras mundiais até, e ainda o capitalismo vem gerando mais miseráveis do que bem estar humano. E não somente aqui nas terras tupiniquins! Os EUA e a velha Europa estão diante de processos regressivos na distribuição de renda que são verdadeiras marcha a ré. A desigualdade social, com exclusão e morte, é a marca da nossa civilização capitalista, industrial, produtivista e consumista.

Penso que precisamos recuperar capacidade de nos comover e indignar diante do que está na nossa volta. Isto não resolve, mas é indispensável para reagirmos. Pode alimentar a nossa determinação para resistir a uma avalanche destrutiva da rede de direitos e políticas sociais mínimas que havíamos começado a tecer como sociedade democrática. Como afirma Boaventura Sousa Santos, estamos diante da implantação de um “fascismo social” que não teme reduzir a democracia a um rito formal de alternância no poder, mas que pode nos levar ao fascismo completo. O fato é que em muito pouco tempo, estas medidas da priorização de negócios contra o bem estar de pessoas produziu efeitos catastróficos para muita gente.

Na verdade, precisamos nos indignar, resistir e ser ousados em imaginar que não temos porque ficar condenados à sociedade de barbárie institucionalizada que tais políticas apontam. Que a indignação diante da normalização de um cotidiano de morte e exclusão nos dê energia para sonhar com outro amanhã e, desde aqui e agora, agir com determinação de quem acredita que sim, é possível Outro Brasil e Outro Mundo.

 Rio de Janeiro, 16/01/17

*Cândido é sociólogo e diretor do Ibase

Fonte: Ibase

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