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“Os movimentos sociais se inserem de modo contraditório nos terrenos cortantes das disputas do campo jurídico”, diz o pesquisador

A criminalização dos movimentos sociais “opera” no Brasil “através da deslegitimação de militantes, movimentos sociais e, em última instância, de suas pautas políticas”, e da “conversão narrativa de ‘militantes’ em ‘criminosos’ no sentido da produção de uma ilegitimidade para a participação democrática”, na qual “‘lutadores’ são redesenhados narrativamente como ‘criminosos’”, diz Roberto Efrem Filho à IHU On-Line na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Contudo, frisa, quando se trata de analisar as relações dos movimentos sociais com o Judiciário, “seria irresponsável” “alegar que o Judiciário brasileiro é absolutamente fechado às pautas dos movimentos”. Efrem Filho lembra que “foi por meio do Poder Judiciário que o Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, por exemplo, conseguiu alcançar direitos até então sonegados à população LGBT”.

Segundo ele, o Judiciário tem sido “cada vez mais convocado a decidir sobre os conflitos sociais e a exigibilidade dos direitos previstos na Constituição de 1988”, e está “cada vez mais interferente na gestão das políticas sociais, reconhecendo direitos de acesso a medicamentos caros ou exigindo que entes públicos executem os mínimos constitucionais orçamentários para a educação” e, por essas razões, também “passa a ocupar um lócus cada vez mais relevante na cena pública” e se configura como um agente “fundamental das disputas ínsitas no campo político”, mas sofre de um “déficit democrático”.

Apesar das conquistas advindas com o Judiciário, adverte, mesmo quando este “recepciona as pautas dos movimentos sociais, a forma propriamente jurídica de realização da política impõe seus preços. Daí que o ‘sujeito de direitos’ competente para acionar as noções de ‘estabilidade’ – características ao projeto heteronormativo de ‘família’ – acaba sendo alguém muito parecido comigo, um ‘homem gay’ ou ‘bissexual’, branco, membro do que se chama de ‘classe média’, e não com a travesti assassinada a 30 facadas nas esquinas da noite de Campina Grande, arquitetada nos autos do inquérito e do processo judicial correspondente como uma ‘criminosa’”.

Roberto Efrem Filho é professor de Sociologia do Direito na Universidade Federal da Paraíba – UFPB, doutorando em Ciências Sociais na Unicamp e integrante do Setor de Direitos Humanos do MST/PE.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Concorda com aqueles que têm defendido que há um aumento da criminalização dos movimentos sociais hoje no país? Por quais razões?

Roberto Efrem Filho – A história das lutas sociais em nosso país é densamente marcada pela reciprocidade entre violência e criminalização. Agentes de Estado, classe e grupos sociais dominantes, de modo mais ou menos explícito ou mediado, nunca tiveram pudor em recorrer à violência e à gestão criminal – ou à combinação dialética de ambas – para reprimir as lutas sociais, as lutas por direitos, os movimentos sociais.

Trata-se de algo próprio às fronteiras e aos limites de nossa frágil experiência democrática. Trata-se daquilo que Florestan Fernandes chamou de “arcaização do moderno e modernização do arcaico”. Entre nós, o passado e o presente se refazem e atualizam um através do outro. Mas de tal modo que práticas sociais pretensamente “antigas” ou “ultrapassadas” se reapresentam e reconstituem nos conflitos sociais, e as lutas por direitos e pela ampliação democrática acabam sendo compreendidas, por aqueles setores dominantes, como empecilhos, obstáculos aos seus interesses.

Noutro momento, Ana Lia Almeida e eu chamamos esse processo de “indisponibilidade democrática”. Com essa expressão, tentamos sinalizar para a difícil, senão impossível, relação entre as elites nacionais – cravadas pela concentração da propriedade da terra e pela superexploração do trabalho – e a democracia. Na trajetória dessa relação, o recurso à violência se deu e se dá, em determinados contextos, como uma obviedade. Aconteceu em Eldorado dos Carajás; aconteceu nas ruas de São Paulo e de tantas cidades durante os protestos de junho de 2013; acontece em Quedas do Iguaçu, no Paraná, com o assassinato de Vilmar Bordim e Leomar Bhorback, militantes do MST, em abril deste ano; acontece em Mogeiro, na Paraíba, igualmente em abril, com o homicídio de Ivanildo Francisco da Silva, dirigente do Partido dos Trabalhadores e apoiador da Comissão Pastoral da Terra, a CPT. Por meio da atuação daquilo que os movimentos sociais e suas assessorias jurídicas chamam de “milícias armadas” e, sobretudo, de agentes de Estado, como policiais militares e civis, muitas vezes partícipes das tais “milícias”, a violência se alastra.

Criminalização

Além dela, entretanto, alastra-se também a “criminalização”, ou seja, aquilo que, como Douglas Pinheiro Bezerra e eu argumentamos anteriormente, manobra no interior do campo jurídico umas das dimensões do conceito, formulado por Michel Foucault, de “gestão diferencial das ilegalidades”. Tal criminalização representaria o modo característico empregado pelo Poder Judiciário para digerir, em seus meandros, a “delinquência” – as classes e grupos sociais historicamente construídos como “perigosos” ou “com tendências ao crime” e que servem à legitimação do próprio poder punitivo – delinquência esta que, se o Judiciário não cria, atualiza em seu cotidiano burocrático. Em outras palavras, a criminalização opera através da deslegitimação de militantes, movimentos sociais e, em última instância, de suas pautas políticas – a reforma agrária, o passe livre etc. “Lutadores” são redesenhados narrativamente como “criminosos”. Amalgamada à violência, essa criminalização oportunizou, por exemplo, que trabalhadores rurais sem terra torturados, durante uma ocupação de terras, por policiais militares encapuzados, fossem presos “preventivamente” e conduzidos à condição de réus em um processo judicial, como ocorreu na Paraíba, num dos casos já acompanhados pelo Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru, o NEP, núcleo de assessoria jurídica universitária popular da UFPB. Violência e criminalização, portanto, não consistem em excepcionalidades. Pelo contrário, elas forjam as fronteiras e a precariedade da nossa experiência democrática. No fim, uma e outra atuam na administração e na configuração dos sujeitos políticos capazes de participar do jogo democrático.

“Sem-terras” não estão entre esses sujeitos, muito embora sem “sem-terras”, o MST e suas lutas sequer houvesse uma “experiência democrática” a chamar de “nossa”. Isto que, por teimosia ou necessidade, nomeamos como “democracia” é devedor das lutas sociais. Sendo assim, violência e criminalização preenchem as reações dominantes às lutas, combinam-se e recombinam-se, a depender das disposições e indisposições dos agentes sociais e das relações de poder em questão. Pode-se dizer que a primeira década deste século testemunhou uma maior participação do Judiciário na gestão dos conflitos sociais e que, dessa forma, a criminalização dos movimentos sociais ascendeu como modus operandi do controle. A violência, contudo, como indiquei, não foi dispensada.

“A história das lutas sociais em nosso país é densamente marcada pela reciprocidade entre violência e criminalização”

IHU On-Line – Percebeu uma criminalização dos diferentes atores que participaram de junho de 2013 também?

Roberto Efrem Filho- Junho de 2013 requer uma maior complexidade analítica. Eu disse, na resposta à pergunta anterior, que a criminalização dos movimentos sociais opera através da conversão narrativa de “militantes” em “criminosos” no sentido da produção de uma ilegitimidade para a participação democrática. Este argumento, todavia, dá-se pela presunção de existência de uma oposição entre, de um lado, “trabalhadores” (ou “estudantes”…), e, do outro lado, “bandidos” (ou “criminosos”…). Tal oposição – que funciona em palavras de ordem comumente ditas durante protestos públicos, como “polícia é para ladrão, para estudante, não” – precisa ser problematizada, no mínimo, por duas razões . A primeira delas decorre da necessidade de, seguindo as pistas deixadas pelos trabalhos de pesquisa de Gabriel Feltran, Vera da Silva Telles e Daniel Hirata, compreender as ambivalências entre trabalho e crime. As experiências de trabalho e crime não são opostas, principalmente se considerarmos a existência de um contingente nada desprezível de trabalhadores urbanos que transitam entre legalidades e ilegalidades, que fazem do crime um “trabalho”, aquilo de que se vive. A segunda delas concerne ao equívoco de compreender a criminalização como uma mera “exterioridade”, algo que vem de fora, imposto dissimuladamente ou ideologicamente sobre determinados sujeitos. A criminalização não é isso, é um corte mais profundo. A criminalização é o crime, o crime é inexoravelmente criminalização.

Ainda que os cursos de Direito Penal continuem insistindo na tese de que o crime consiste no ato típico, antijurídico e culpável, sendo o “criminoso” aquele que conjuga o verbo próprio a esse ato, nossas análises não podem reproduzir essa “abstração jurídica”, esse fetiche. O crime é relação social e perfaz sujeitos que, tenham ou não conjugado aquele verbo, tenham ou não praticado “crimes”, são pressupostamente concebidos como “criminosos”, como acontece com os jovens negros da classe trabalhadora, habitantes das periferias das grandes cidades. A criminologia crítica, em diálogo com Foucault, tem chamado esse processo de “seletividade penal”, o que engendra a sobrerrepresentação de jovens negros na população carcerária brasileira.

Os movimentos sociais são criminalizados, esses jovens são criminalizados. Mas a criminalização não vem de fora, ela constitui esses sujeitos. A compreensão do sem-terra como “um vagabundo, bandido, que toma a terra dos outros” não é diversa da compreensão do rapaz negro como “um traficante” ou do jovem que trabalha no mercado de drogas ilícitas como “um monstro”, a versão nacional para o arquétipo do “inimigo comum”, o “terrorista”, aquela cuja existência é injustificável e indesculpável.

Lutas e os limites da democracia

Muitas vezes, nos limites de nossa democracia, “lutar” é injustificável frente às esferas de Estado preocupadas com a “ordem” (e o “progresso”), mesmo que não faltem justificativas e necessidades para a luta social, para a luta por direitos. Argumentei acima que as fronteiras da democracia são traçadas através dos recursos à violência e à criminalização. O que eu ainda não disse é que a violência e a criminalização erguem essas fronteiras através das disputas de certos corpos, do perfazimento de certos sujeitos. Aqui, o corpo do “militante” e o corpo do “bandido” se fazem siameses. Acham-se entrelaçados, violentáveis, criminalizáveis. Se os movimentos sociais são criminalizáveis é porque, reciprocamente, esses sujeitos também o são.

Pois bem, em junho de 2013 esses corpos foram às ruas. Embora muito se haja dito que os protestos que tomaram as cidades brasileiras tenham sido formados pela tradicional “classe média”, foram jovens da classe trabalhadora, sobretudo daquele setor da classe que Ruy Braga tem chamado de “precariado” , que protagonizaram as mobilizações. São jovens que chegaram à educação superior, que pretendiam ascender socialmente a partir do avanço na escolaridade, que conformariam o que alguns chamaram erroneamente de “nova classe média” – a reorganização da classe trabalhadora propulsionada pelo neodesenvolvimentismo capitaneado pelos governos do Partido dos Trabalhadores – mas que se depararam com a fadiga social e política do modelo de desenvolvimento petista, com sua pretensão de “pacto de classes” que mantinha a classe trabalhadora distante de serviços públicos de qualidade, no transporte ou na saúde, por exemplo, e que não atingia o cerne das desigualdades sociais, não realizando a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma tributária, a reforma política etc. Esses jovens conviveram cotidianamente com a violência urbana nos subúrbios, viram seus vizinhos e irmãos morrerem no mata-mata do mercado de drogas ilícitas ou da ação de forças policiais, e em junho de 2013 traziam, para os centros das cidades, a criminalização e a violência que marcaram suas trajetórias de vida.

De fato, repressão policial a protestos não representa uma novidade histórica. Já perdi a conta das vezes em que eu mesmo me esquivei, durantes atos públicos, de balas de borracha, bombas de gás, escudos, cassetetes e cavalarias. Mas junho de 2013 não se tratava de um fenômeno isolado. O país atravessava uma onda de greves e protestos resultantes das novas conformações do mundo do trabalho – com o aumento significativo na empregabilidade – e da classe trabalhadora. Fazia-se, portanto, um momento pedagógico para a organização popular, para o aprofundamento da experiência democrática. Em resposta, claro, fez-se um momento para a violência e a criminalização, seletivas, decerto, enquanto as ruas passaram a ser disputadas inclusive por organizações de direita – uma bandeira do MST foi queimada durante um “protesto” em Recife, naquele junho – e mesmo os grandes meios de comunicação decidiram tomar parte nessas disputas.

“Ainda que os cursos de Direito Penal continuem insistindo na tese de que o crime consiste no ato típico, antijurídico e culpável, sendo o ‘criminoso’ aquele que conjuga o verbo próprio a esse ato, nossas análises não podem reproduzir essa ‘abstração jurídica’, esse fetiche”

IHU On-Line – A atual crise política repercute também na criminalização de movimentos sociais? De que modo?

Roberto Efrem Filho- A criminalização dos movimentos sociais tem sido contraparte da criminalização da política. As narrativas mobilizadas pelos setores sociais favoráveis ao golpe – eles diriam “impeachment”… – acerca da “corrupção” ou de um hipotético (ou seletivo) “combate à corrupção” tanto desviam o foco para os conflitos sociais e políticos subjacentes ao golpe como endossam um discurso de “combate ao crime” que significa, sem meios termos, combate aos sujeitos criminalizáveis. Contraditoriamente, vastos setores das esquerdas se encontram convencidos desse mesmo discurso. A insistência na palavra de ordem “Cunha na cadeia”, apenas para mencionar uma das suas possibilidades, emblematiza esse convencimento. A “cadeia” a todo custo e o “combate à corrupção” a todo custo são apresentados retoricamente como soluções para os conflitos – os quais, como dito, permanecem silenciados pelas narrativas criminalizantes.

Ironicamente, o golpe parlamentar em curso no país se desenlaça exatamente no esgarçamento jurídico produzido em meio àquela sanha punitiva. As normas de Direito Penal e Processo Penal são despudoramente manobradas, em alargamentos hermenêuticos imponderáveis, a ponto de nós, partícipes da esquerda do campo jurídico, tornarmo-nos os sujeitos responsáveis pela reivindicação da “legalidade” e da “segurança jurídica” – expressões estas tradicionalmente acionadas, pela direita do campo, contra as lutas sociais e os processos de transformação social. Para a classe e os grupos sociais interessados no impedimento da Presidente Dilma Rousseff, democraticamente eleita, nunca é demais lembrar, pouco importam as normas constitucionais, as evidências jurídicas do não cometimento do já famoso “crime de responsabilidade”.

Para eles, nada diz o fato de que o Tribunal de Contas da União aprovou, em outras ocasiões, a legalidade de procedimentos como as “pedaladas” ou que o próprio Congresso Nacional convalidou os “decretos” sob discussão. O “direito” do “Estado de Direito” demonstra, também ele, suas fragilidades. Claro, as camadas mais precarizadas da classe trabalhadora e os grupos sociais subalternizados conhecem essas fragilidades muito intimamente. Os “princípios democráticos” do autodeclarado “Estado Democrático de Direito” – como a presunção da inocência ou o direito ao contraditório – nunca operaram para esses sujeitos com regularidade.

Combate à corrupção

No entanto, se a busca seletiva e estridente pelo “combate à corrupção” promove alterações ainda mais significativas nas normas do Direito Penal, por exemplo, se as práticas arbitrárias são oficializadas, talvez não reste sequer o que reivindicar quando um sem-teto é preso, acusado do cometimento de “crime ambiental”, em razão da queima de pneus durante protestos públicos. Militantes de movimentos sociais na Paraíba e em Pernambuco têm denunciado que ambos os governos adotaram a política de identificação da queima de pneus como um crime ambiental, previsto no artigo 54 da Lei 9065, de 1998. O tipo, “pneu queimado”, ipsis litteris: “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”. À modalidade culposa – não intencional – deste crime é atribuída uma pena de detenção de seis meses a um ano e multa. A pena, todavia, pode crescer para de um a cinco anos de reclusão se o juiz entender que houve “poluição atmosférica” com “danos diretos à saúde da população” e o “fato” for enquadrado nos termos do segundo parágrafo do mesmo artigo 54. Sim, cinco anos de prisão por conta de pneus velhos queimados.

Parece absurdo, mas se as regras mais elementares do jogo democrático não são respeitadas, se nem o voto é considerado, se um juiz federal do Paraná se julga na competência de travar relações diretas com certos meios de comunicação, decretando “conduções coercitivas” ilegais ou divulgando ilegalmente arquivos de áudios presentes nos autos de um processo judicial, se promotores de justiça de São Paulo se sentem aptos a promover uma denúncia contra um ex-Presidente da República por razões juridicamente insustentáveis – embora, de fato, qualquer coisa se “sustente”… – o que resta para o sem-teto, militante do MTST, que queima pneu num protesto pelo direito à moradia digna e adequada? O que sobra?

“Se as práticas arbitrárias são oficializadas, talvez não reste sequer o que reivindicar quando um sem-teto é preso, acusado do cometimento de ‘crime ambiental’, em razão da queima de pneus durante protestos públicos”

IHU On-Line – Como tem sido a atuação do Judiciário quando se trata de julgar questões ligadas aos movimentos sociais?

Roberto Efrem Filho – Dizer que a criminalização da política é correlata à criminalização dos movimentos sociais significa, portanto, que há uma forma propriamente jurídica de feitura da política, aquela que se dá através de uma política de negação da política. No que estamos tratando, essa “negação” se consolida através da criminalização. A criminalização, como tentei argumentar, é relação social e, sendo assim, participa da constituição dos sujeitos, não se refere a uma exterioridade. Há mais aqui, contudo. Sendo relação, a criminalização é, também, uma forma de disputa das relações sociais. É uma linguagem através da qual a política se faz. Essa linguagem ou essa forma narrativa permite, todavia, talvez mesmo requeira, a criação de extremos duais, como as personagens do herói e do vilão, da vítima e do algoz. Não à toa, os meios de comunicação se valem tão habilmente dessas narrativas. A novelização dos conflitos sociais resta intrinsicamente ligada à criminalização.

De regra, os movimentos sociais se inserem de modo contraditório nos terrenos cortantes das disputas do campo jurídico. Alegar que o Judiciário brasileiro é absolutamente fechado às pautas dos movimentos sociais seria irresponsável. Foi por meio do Poder Judiciário que o Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, por exemplo, conseguiu alcançar direitos até então sonegados à população LGBT. Nessas conquistas, todavia, tanto o “desejo pelo desejo do Estado” ganha centralidade, como analisou Judith Butler, como novas formas de controle se estabelecem na constituição dos sujeitos passíveis de conformar o “sujeito de direitos” desejado. Não conseguirei desenvolver aqui essa discussão com a atenção necessária.

O foco é outro. Pretendo, com isso, apenas argumentar que mesmo quando o Judiciário recepciona as pautas dos movimentos sociais, a forma propriamente jurídica de realização da política impõe seus preços. Daí que o “sujeito de direitos” competente para acionar as noções de “estabilidade” – características ao projeto heteronormativo de “família” – acaba sendo alguém muito parecido comigo, um “homem gay” ou “bissexual”, branco, membro do que se chama de “classe média”, e não com a travesti assassinada a 30 facadas nas esquinas da noite de Campina Grande, arquitetada nos autos do inquérito e do processo judicial correspondente como uma “criminosa” – sendo vítima, morta, era precipuamente “criminosa” nas descrições oficiais de agentes de Estado .

Nas narrativas midiáticas ou jurídicas da novelização e da criminalização, embora os arquétipos de heróis e violões, algozes e vítimas sejam recrutados, a vítima não é um dado, sobremaneira se marcada por relações de poder, de gênero e sexualidade ou de classe e racialização, que põem em xeque o formato pressuposto do “sujeito de direitos” palatável pelas lógicas de Estado. Neste momento, como se vê, a criminalização volta ao debate, tanto para deslegitimar (e conformar) o sem-terra que luta pela terra, quanto para deslegitimar (e conformar) a travesti assassinada, naquilo que o Movimento LGBT tem chamado de “transfobia”.

IHU On-Line – Nos dias de hoje, por conta das questões políticas, muitos têm feito críticas ao Judiciário brasileiro. Há motivos para críticas? Quais? Como entende, por exemplo, a judicialização da política?

Roberto Efrem Filho – Nos idos dos anos 90 e no início deste século, muito se falou em “judicialização da política” ou em “politização do Judiciário”. Era tema recorrente nas salas de aula das faculdades de Direito e suas discussões remetiam desde à judicialização de conflitos sociais e da execução de políticas públicas – de saúde, de educação etc. – até a questionamentos infindáveis acerca da intrincada relação entre direito e política. Não ocasionalmente, é esse também o momento em que textos de intelectuais como Jürgen Habermas e Niklas Luhmann abarrotaram as disciplinas de Teoria do Direito e em que, não tomasse você um desses lados, seria proscrito dos debates possíveis. A preocupação subjacente a essas discussões se referia à autonomia do Direito e aos contornos da democracia.

Com um Judiciário cada vez mais convocado a decidir sobre os conflitos sociais e a exigibilidade dos direitos previstos na Constituição de 1988, com um Judiciário cada vez mais interferente na gestão das políticas sociais, reconhecendo direitos de acesso a medicamentos caros ou exigindo que entes públicos executem os mínimos constitucionais orçamentários para a educação, esse mesmo Judiciário passa a ocupar um lócus cada vez mais relevante na cena pública. Passa, dessa forma, a configurar um agente fundamental das disputas ínsitas ao campo político, ainda que, como argumentei, sua forma própria de realização da política consista na negação da política que realiza.

Entretanto, esse Judiciário sofria, como sofre, de um déficit democrático. Embora os intelectuais do campo jurídico se esforçassem arduamente para justificar a defesa judicial dos “princípios constitucionais”, do “interesse público” ou do “interesse comum” – essas abstrações… todas elas terrenos sob conflito… – de fato, o campo jurídico se convertia num espaço-tempo importante de tomadas de decisão sobre o país, sobre questões espinhosas, como as pesquisas com células-tronco, o aborto de fetos anencéfalos, a constitucionalidade das cotas sociais e raciais para o acesso à universidade, a política de reforma agrária etc. Neste período, o Movimento LGBT, como dito, obteve ganhos e limitações, enquanto o MST viu a reforma agrária travada nas Varas da Justiça Federal e nos gabinetes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. A irrefutável relevância dessas decisões trazia Ministros do Supremo para os holofotes dos meios de comunicação, mas esbarrava em questionamentos acerca de sua legitimidade.

“O Judiciário não demonstra qualquer apego à democracia”

Judiciário X voto popular

Nesse confronto, o Judiciário e o voto popular se encontraram sob tensão. É esse o contexto do “mensalão” e, não é difícil lembrar, da heroificação midiática de Joaquim Barbosa, então ministro do STF. É esse o contexto da assunção da “teoria do domínio do fato”, a tese jurídica segundo a qual se deve abrir mão da presunção da inocência e do nexo de causalidade – a ligação entre a ação do sujeito e o resultado produzido – em nome do “combate à corrupção”, o que, como tentei explicar anteriormente, esgarça hermeneuticamente as normas mais básicas do Direito Penal e possibilita a multiplicação da criminalização da política e da correlata criminalização dos movimentos sociais. Enfim, ainda que não se possa dizer simplesmente que o fenômeno que se convencionou chamar de “judicialização da política” seja a causa da “criminalização da política” ou do ataque à democracia em curso no país, visto haver diversos outros sujeitos e interesses em jogo, visto este se tratar, inclusive, de um momento fundamental para os conflitos de classe e de gênero no Brasil, relações e reciprocidades há. Até as estéticas se assemelham.

O heroificado da vez não é um Ministro do STF – Tribunal que se absteve, de modo cúmplice, de impossibilitar o desenlace do golpe, embora tenha atravessado inúmeras oportunidades para tanto – mas é um juiz de primeira instância, Sérgio Moro, a personagem adotada pelos setores sociais conservadores para simbolizar a “luta contra a corrupção”, a despeito das ilegalidades por ele cometidas no curso da fabular “Operação Lava Jato”. A tensão entre Judiciário e voto popular se reproduz contundentemente no momento histórico em que o Judiciário se recusa a socorrer o voto e a legitimidade democrática, permitindo que o Parlamento e agentes do próprio Judiciário e da mídia operacionalizem o golpe. A experiência democrática foi fundamental para a ascensão do Poder Judiciário e da linguagem dos direitos. O Judiciário, entretanto, casta burocrática de Estado, com seus supersalários e seus absurdos auxílios-moradia, não demonstra qualquer apego à democracia.

Fonte: Adital 

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