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Elas mudaram o lugar da mulher na sociedade catarinense, rompendo com ciclos de repressão e violência machista. Agora revelam “mística” para enfrentar tempos obscuros que se avizinham

Por Silvia Medeiros, especial para a Revista do Brasil

Na manhã chuvosa daquele sábado, 24 de novembro, em Chapecó, começaram a descer dos ônibus mulheres com sacolas e cuias de chimarrão nas mãos. Vindas de várias regiões do estado, elas chegavam para celebrar os 35 anos da maior organização de mulheres de Santa Catarina, o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC).

A agricultura é uma das principais fontes econômicas do estado, líder nacional na produção de alho e cebola e o segundo no país na produção de arroz, fumo, maçã e pera.

O movimento, que tem mais de três décadas, surgiu no fim do regime militar e no auge do surgimento de diversos movimentos populares que lutavam pela redemocratização do país. As eleições para sindicato dos trabalhadores rurais de Nova Itaberaba (distrito de Chapecó na época) incentivou as camponesas a se organizarem.

A primeira reunião contou com 28 mulheres, a segunda com 40, se expandiu para outros municípios e, 35 anos depois, o MMC se consolida como um dos maiores movimentos feministas em Santa Catarina. Foi protagonista, nos anos 90, da luta pelo direito à previdência social das mulheres do campo e, atualmente, uma das principais referências no debate de produção agroecológica no estado.

O início da luta

Nova Itaberaba é tem pouco mais de 4 mil habitantes. Emancipada de Chapecó há 27 anos, ainda era distrito quando mulheres trabalhadoras rurais se reuniram pela primeira vez, em 1983, e organizaram um grupo de agricultoras para participar, junto com os homens, da chapa de oposição do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Na pauta, direitos básicos de acesso aos benefícios previdenciários já disponíveis aos homens. As mulheres do campo enfrentaram o machismo das pequenas cidades e formaram o Movimento das Mulheres Agricultoras, que em 2004 passa a ser chamado de Movimento das Mulheres Camponesas.

De acordo com Clementina Dalchiavon, uma das fundadoras, foi necessária muita união das mulheres para enfrentar o primeiro obstáculo de consolidação do movimento, o machismo cotidiano. “Não foi uma luta fácil, principalmente para as mulheres casadas. O boato que os homens contavam pelos bares é que a gente ia abandoná-los e moraríamos todas juntas numa só casa, o medo que os homens tinham é de quem ia cuidar dos afazeres domésticos para eles”, lembra a agricultora.

A partir da pequena localidade de Nova Itaberaba e com o respaldo de movimentos da Igreja Católica ligados à Teologia da Libertação, como as pastorais e as Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs), muito presentes no oeste catarinense liderados pelo bispo Dom José Gomes, o Movimento das Mulheres foi se consolidando em outras cidades da região e se organizando por todo estado e pelo Brasil.

O trabalho de expansão se deu por intermédio de visitas e conversas nas localidades distantes do interior. “A gente contava uma pra outra e ia repassando, uma ia tomar chimarrão na casa de uma amiga e já convidava para conhecer o movimento. A gente falava pra sair de volta do tanque e vir se organizar, que a gente precisava ser reconhecida como mulheres trabalhadoras”, explica Clementina.

Por essas conversas Adélia Schmitz, de Descanso, município a 130 quilômetro de Chapecó, conheceu o movimento. “À noite depois da reunião na minha comunidade, quando eu estava tirando o leite eu pensei ‘puxa, como foi bonito as palestras destas companheiras, mulheres como eu. Será que eu não sou capaz também, elas são agricultoras igual eu’”, lembra Adélia, que hoje é uma das lideranças nacionais do MMC e participou de atividades em todo o mundo representando as mulheres camponesas do Brasil.

Para Adélia, o despertar para o movimento aconteceu em um debate sobre identidade, em que se deu conta de que as mulheres não devem se resignar com o papel de propriedades dos seus maridos. “Eu era a esposa do Schmitz, pra mim era natural isso, mas depois daquela reunião eu fui numa relojoaria consertar meus óculos e o atendente que ia anotar o meu pedido insistiu pra saber o nome do meu marido para deixar como responsável. Na hora eu questionei e pedi pra colocar o meu nome, porque eu que estava responsável pelo conserto”, conta.

Foi nessas desconstruções de “lugar de homem e de mulher”, de responsabilidades da casa e do trabalho que o MMC foi se consolidando. No ano seguinte ao de sua fundação, em 1984, para celebrar o dia 8 de março, Nova Itaberaba recebeu 500 mulheres que marcharam pelo pequeno distrito, pedindo acesso das mulheres aos direitos previdenciários. Em 1985, o encontro foi em Chapecó.

Em um grande debate que reuniu 300 mulheres no Seminário Diocesano, o movimento traçou estratégias e definiu que a luta era de gênero e de classe e que para organizar as mulheres era necessário construir lutas concretas que ficaram em torno da sindicalização, da campanha da documentação para as mulheres, da aposentadoria, do salário maternidade, com uma visão ampla da seguridade social, como acesso à saúde, previdência e assistência.

Em 1987, a primeira mulher agricultora eleita deputada estadual, Luci Choinacki (PT), era uma das fundadoras do MMC. Dentro do parlamento, enfrentou o machismo dos espaços políticos e o preconceito com os trabalhadores do campo. Em 1992, se elegeu deputada federal e foi reeleita ao cargo em mais três legislaturas, nos anos de 1999, 2003 e 2011.

Sujeitas da própria história

A antropóloga Arlene Anélia Renk, doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora da Unochapecó, ressalta que o Movimento das Mulheres Camponesas foi um marco para a sociedade catarinense.

“As mulheres começam a querer romper o ciclo de violência que começava desde a infância, com menos oportunidade para estudar, para escolher seus companheiros e para definir as atividades da casa, como sentar e conversar com o esposo sobre os negócios ou decidir o que devem plantar”, diz Arlene. Segundo a pesquisadora, especialista em antropologia rural, o movimento cresce apoiado na luta dos trabalhadores rurais então vistos como cidadãos de segunda categoria, recebendo apenas metade de um salário mínimo na aposentadoria.

“Elas começam a se organizar e requerer direitos, começam a entrar nas organizações, antes ocupadas somente por homens, passam pela luta da documentação e chegam na luta do reconhecimento do direito, através da conquista do acesso aos benefícios previdenciários”, lemArlene destaca o papel fundamental na época dos padres e pastores que orientavam os homens a deixarem suas mulheres livres e a não serem tão carrascos com elas e seus familiares. “Depois de organizadas elas começam a participar das marchas do dia 8 de março, data em que muitas agricultoras nem sabiam que era dia da mulher, elas vão aprendendo e incorporando pra dentro de casa tudo o que debatem nos encontros”.

Justina Cima
Justina Cima: tempos de união para ouvir os anseios das mulheres do campo e da cidade. Foto: Carolina Timm

Organizadas, elas começam a participar de muitas reuniões e assembleias e a viajar para a capital catarinense e para Brasília. Arlene relembra as muitas viagens para a capital do Brasil, com horas de trajeto.

“Elas estavam cansadas e de pés inchados e foram tentar entrar no plenário da Câmara dos Deputados, quando um guarda as interpelou: ‘aqui vocês não entram de chinelo’, a resposta das agricultoras foi imediata ‘então se não entramos de chinelo, a gente entra descalço’ e assim foi”.

Essa ousadia é uma característica das mulheres camponesas. “Só pode ousar quem acredita no seu potencial, quem conseguiu enxergar, quem tira a venda dos olhos e segue em frente. Quando se rompe com este poder patriarcal, se vai adiante desde a ousadia de entrar num espaço sem calçados, até a luta de conquistar direitos negados”.

E foi desafiando a cultura patriarcal e machista que Justina Cima, coordenadora do MMC de Santa Catarina, questionou desde a infância a inferioridade com que era tratada por ser menina. Segundo ela, sua vida tem marcas dessa sociedade patriarcal e machista e do resultado da sociedade capitalista que privilegia o lucro de alguns em detrimento da pobreza de muitos. “Eu estudei somente até a quinta série primária, eu não tive condições pela pobreza que minha família vivia, mas também pela cultura que meu pai e minha mãe tinham de que menina não precisava estudar, não precisava sair de casa”.

Justina diz que foi o desejo de estudar que a trouxe para dentro dos movimentos da igreja e, posteriormente, ao Movimento de Mulheres Camponesas. A agricultora fez parte da fundação do MMC no estado e foi eleita vereadora em 1988, no município de Quilombo, a 60 quilômetros de Chapecó, encampando a luta pelo acesso à aposentadoria às agricultoras.

Feminismo

Depois da conquista da aposentadoria das trabalhadoras rurais, efetivada somente em 1992, quatro anos depois da Constituição que incluiu as mulheres agricultoras no direito ao acesso aos direitos previdenciários, a luta do Movimento das Mulheres Camponesas se fortaleceu com o debate sobre a produção agroecológica, como um expoente de modo de vida e de resistência.

Noeli Welter Taborda, dirigente nacional, entrou no movimento de mulheres movida pela discussão sobre as produções agroecológicas e o cultivo de sementes crioulas. “Em 1998 e 1999, o MMC iniciou um projeto de produção e melhoramento das sementes crioulas. As mulheres estudaram sobre a prática de fazer agricultura, como guardar sementes, como fazer com que o solo fortemente atingido pelos agrotóxicos, as sementes híbridas e os fertilizantes, fossem recuperados. As mulheres foram entendendo a agricultura no tempo das nossas avós, adaptando as condições de hoje, mas preservando e trocando experiências umas com as outras”.

Noeli, moradora de Tunápolis, a 150 quilômetros de Chapecó, encontrou no Movimento de Mulheres Camponesas uma perspectiva feminista. “A nossa prática feminista não é de sermos contra os homens, mas construir uma relação diferente, falar com eles que, assim como os homens sabem, nós mulheres também sabemos, assim como eles querem descanso, nós também queremos”, explica Noeli. Ela conta ter vivenciado na infância a violência doméstica, e que encontrou no movimento a força e a compreensão de que as mulheres organizadas conseguem avançar e romper ciclos de exploração.

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Movimento é referência para outras organizações feministas de SC. Foto: Carolina Timm

Mulheres como Noeli fazem Justina acreditar na continuidade do movimento e na reinvenção de novas práticas em defesa da emancipação das mulheres camponesas. “Eu acredito que a palavra-chave para enfrentar este novo ciclo que começa na história brasileira é a organização. Além disso, é necessário reinventar o movimento, buscar trabalho de base efetivo, trazer para os grupos com muita mística, muita ajuda e sempre valorizando o que vem de novo com a juventude e fazendo a leitura com a sabedoria das que fizeram toda a caminhada até aqui”, avalia Justina.

Foi nesta mística, que reuniu mulheres de diferentes idades, trabalhadoras do campo e da cidade, com lançamento de livros, troca de estudo, de sementes, de ervas medicinais, de relembrar as histórias de luta, que o encontro celebrou os 35 anos de fundação do movimento.

Entre a leitura do que já viveu e o que acredita que está por vir, Justina reflete que a luta das mulheres em todo o período da humanidade precisou ser reinventada. “Minha geração teve de enfrentar as consequências da ditadura e todo ataque aos direitos do povo. Às vezes, os camponeses nem conseguiam fazer a leitura do que estavam passando. Tivemos que começar toda uma organização rebelde, determinada, ousada para aqueles tempos e foi daquele jeito que nós fizemos e chegamos até hoje”, observa.

“Penso que neste momento precisamos resistir e nos reinventar. Acredito que a juventude, as crianças, vão ter que entender o movimento com a caminhada e com a organização e também vão precisar encontrar o seu caminho para poder construir e dar continuidade a esta luta que é questão da dignidade humana, dos direitos humanos e da democracia.”

(Foto: Carolina Timm)

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