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Relatório de entidades da sociedade civil que será levado à ONU alerta que Brasil pode voltar ao mapa da fome

No armário suspenso sobre a geladeira quase vazia, sacos de farinha de milho empilhados de uma lateral a outra são a única abundância no casebre onde moram três adultos e uma criança, no alto de um morro do bairro de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio. — Estamos comendo angu a semana toda. Ganhamos de uma vizinha. Mas é melhor angu do que nada. Carne, não vemos há meses — lamenta Maria de Fátima Ferreira, de 61 anos, enquanto abre as portas do móvel, como se precisasse confirmar seu drama.

 

Três anos depois de o Brasil sair do mapa mundial da fome da ONU — o que significa ter menos de 5% da população sem se alimentar o suficiente —, o velho fantasma volta a assombrar famílias como a de Maria de Fátima. O alerta, endossado por especialistas ouvidos pelo GLOBO, é de relatório produzido por um grupo de mais de 40 entidades da sociedade civil, que monitora o cumprimento de um plano de ação com objetivos de desenvolvimento sustentável acordado entre os Estados-membros da ONU, a chamada Agenda 2030. O documento será entregue às Nações Unidas na semana que vem, durante a reunião do Conselho Econômico e Social, em Nova York.

Na casa de Maria de Fátima, a comida se tornou escassa depois que ela foi demitida do emprego de cozinheira na prefeitura de Belford Roxo, há oito meses. Os dois filhos mais velhos vivem de bicos, cada vez mais raros. Os três integram a estatística recorde de 14 milhões de desempregados, resultado da recessão iniciada no fim de 2014. Pesam ainda a crise fiscal, que tem levado União, estados e municípios a fazerem cortes em programas e políticas de proteção social, e a turbulência política.

— Quando o país atingiu um índice de pleno emprego, na primeira metade desta década, mesmo os que estavam em situação de pobreza passaram a dispor de empregos formais ou informais, o que melhorou a capacidade de acesso aos alimentos. A exclusão de famílias do Bolsa Família, iniciada ano passado, e a redução do valor investido no Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), que compra do pequeno agricultor e distribui a hospitais, escolas públicas e presídios, são uma vergonha para um país que trilhava avanços que o colocava como referência em todo o mundo — afirma Francisco Menezes, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e consultor da ActionAid, que participaram da elaboração do relatório.

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‘Já deixei de comer para dar ao meu filho’

O custo de uma cesta básica no Rio, para uma pessoa consumir em um mês, chega a R$ 420,35 (Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo)

Foi a perda do emprego com carteira que levou a insegurança alimentar para o cotidiano da auxiliar de serviços gerais Andressa Gonçalves de Oliveira, de 24 anos, mãe de um menino de 8. Separada do marido, ela mora em uma casa inacabada em uma comunidade de Madureira. A empresa terceirizada na qual trabalhava começou a perder contratos, e ela foi demitida, há cerca de um ano. Passou a vender cafezinho em filas de seleção de emprego para aumentar a renda, restrita aos R$ 170 da pensão do filho. Consegue tirar mais R$ 150 por mês.

— Quando meu ex-marido atrasa a pensão ou quando não consigo atingir a meta do café, bate o desespero. Já tive de deixar de comer para meu filho não ficar sem comida — conta Andressa, que recebia R$ 390 de auxílio-alimentação no antigo emprego, além do salário de quase R$ 1 mil.

Lares chefiados por mulheres que, devido à perda do emprego ou de benefícios como o Bolsa Família, têm renda zero ou inferior a R$ 350 são recorrentes entre as famílias que passaram a ter dificuldades para comprar comida. O custo de uma cesta básica no Rio, com 13 tipos de alimentos em quantidades necessárias para uma pessoa, por um mês, chega a R$ 420,35, segundo o Dieese.

Explode procura por benefícios sociais

No ano passado, o presidente Michel Temer determinou um pente-fino para descobrir beneficiários que declaravam renda menor do que a real para continuar recebendo o Bolsa Família. O resultado, porém, foi a confirmação de um fenômeno de empobrecimento. Ao cruzar bases de dados, a fiscalização encontrou mais de 1,5 milhão de famílias que tinham renda menor que a declarada — haviam perdido o emprego, mas não atualizaram o cadastro — e, por isso, teriam direito a benefícios maiores do que recebiam. Isso corresponde a 46% dos 2,2 milhões de famílias que caíram na malha fina por inconsistência nos dados. E o prometido reajuste no benefício, que seria de 4,6%, foi suspenso no fim do mês passado pelo governo, por falta de recursos.

No Rio, a procura por inscrição no Cadastro Único do município, única forma de acessar o Bolsa Família, explodiu em 2016, ano em que a crise se aprofundou. No primeiro quadrimestre do ano passado, o número de novas famílias que entraram no sistema mais do que dobrou em relação ao mesmo intervalo de tempo de 2013, período anterior à recessão. Passou de 12,2 mil para 25 mil famílias. Nos primeiros quatro meses deste ano, foram 19,4 mil famílias. Para a secretária municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Teresa Bergher, isso se explica pelo aumento do desemprego e pela crise do governo estadual, que tem atrasado o salário dos servidores, provocando um efeito dominó na economia local.

— Quanto maior a dependência do programa de transferência, maior a insegurança alimentar. Mas, com essa renda, as famílias conseguem ter a segurança de poder comprar algo todos os meses. É claro que essa quantidade de alimento não deve sustentar o mês todo, mas podem se programar — argumenta a nutricionista Rosana Salles da Costa, professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, e pesquisadora na área de segurança alimentar.

Ela acredita que a instabilidade financeira que atingiu essas famílias vai elevar, pela primeira vez, o número de lares brasileiros que passam fome — ou seja, que vivem em insegurança alimentar grave, segundo a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. De acordo com o IBGE, a proporção de lares que vivia nessa condição caiu à metade entre 2004, ano da primeira pesquisa, e 2013, dado mais recente, de 6,5% para 3,2%. Os próximos dados, referentes a 2017 e 2018, vão ser divulgados daqui a dois anos pelo instituto, após a conclusão da Pesquisa de Orçamentos Familiares para esses anos.

Alan Bojanic, representante das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação no Brasil, reconhece que há uma relação direta entre crises econômicas e o aumento da insegurança alimentar e pobreza. No entanto, diz ser otimista quanto ao Brasil se manter fora do mapa mundial da fome e avançar, melhorando a qualidade da alimentação de suas famílias.

‘É pão de manhã, pão ao meio-dia e pão à noite’

Salchicha, ovo e pão são um banquete na casa de Vanderléa Gomes Santos, de 36 anos, mãe de dois pré-adolescentes, de 11 e 13 anos.

— Tem dia que é pão de manhã, pão ao meio-dia e pão à noite — conta ela, um pouco sem graça, mas sem interromper o vaivém da agulha sobre um pano preto que, depois de bordado, vai lhe render R$ 4 e ser aplicado sobre jaquetas vendidas em lojas de grife.

Vanderléa nem lembra mais da última vez que comprou uma peça de roupa para alguém da família. Desde que saiu do emprego de atendente de lanchonete, onde ganhava R$ 964 por mês, porque teve de cuidar do filho mais novo, mal faz dinheiro para comprar comida. Para pagar o aluguel de R$ 400 da casa onde moram em uma comunidade de Paciência, na Zona Oeste, conta com a ajuda da mãe.

— Antes de me separar, tínhamos casa própria. Mas meu ex-marido vendeu a nossa casa por R$ 50 mil e gastou tudo em droga — lamenta.

O bordado rende R$ 150 mensais. Essa é praticamente a mesma renda da família de Maria de Fátima Ferreira, de 61 anos, que recebe R$ 154 do Bolsa Família, já que a neta Roberta, de 6 anos, vive com ela:

— Na verdade, conto só com R$ 150, pois R$ 4 gasto com passagem. Na ida, pego carona com algum vizinho, mas, na volta, tenho de pegar ônibus.

Compra do mês só dura três dias

No último dia 28, pela primeira vez na semana o almoço não ia ser angu. Era dia de receber o benefício. Maria de Fátima foi direto ao supermercado e só comprou o que estava em promoção. Gastou R$ 79 com arroz, leite, óleo de soja, linguiça, chuchu, uma dúzia de ovos, cenoura, batata-inglesa e biscoitos e miojo para agradar a neta. Tinha feijão pronto, doado por uma amiga. Cozinhou arroz e fritou ovos.

— O problema é que a compra só dura três dias — relata.

Em Recife, a ONG Gestos, que trabalha com soropositivos, teve de reativar em 2016, depois de cinco anos de suspensão, o trabalho de arrecadação de alimentos. Segundo Alessandra Nilo, sócia-fundadora da entidade, que também ajudou a elaborar o relatório de monitoramento da Agenda 2030 da ONU, nas visitas às casas das famílias percebeu que faltava comida:

— Hoje fornecemos cestas básicas a mais de 30 lares de portadores de HIV.

Um dos beneficiados é Rubens (nome fictício), de 35 anos. Desde que descobriu ser portador do vírus, há cinco anos, perdeu o emprego e nunca mais conseguiu se recolocar. Vivia com um salário mínimo do auxílio-doença pago pelo governo. Em janeiro, foi chamado para perícia e teve o benefício cortado.

— Se você vier aqui em casa hoje, a minha geladeira está vazia. O preconceito e minha saúde frágil impedem que eu me mantenha empregado. Passo muitos dias internado em hospital — conta.

No Norte de Minas, o corte pelo governo federal do repasse de alimentos ao Quilombo Gurutuba, via Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, vem colocando em risco a alimentação das sete mil famílias locais, denuncia a coordenadora de Articulação do Centro de Agricultura Alternativa da região, Marilene de Souza. Procurado, o Ministério de Desenvolvimento Social não se manifestou.

Segundo dados da própria pasta, a compra de alimentos desse programa, para repasse gratuito a pessoas em situação de insegurança alimentar, restaurantes populares e cozinhas comunitárias, vem caindo desde 2013. O orçamento deste ano prevê compras de R$ 330 milhões, contra mais de R$ 800 milhões em 2012.

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Fonte: O Globo

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