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Livro discute creche como direito da criança e questiona divisão sexual e racial do trabalho; espaço da primeira vivência coletiva humana deve ser revolucionário

Por Christiane Gomes, do Outras Palavras

A crise que atinge a democracia e os direitos humanos em diversos cantos do mundo tem, obviamente, características próprias em cada território. No Brasil, discursos e ações liberais e de direita se afirmam ao mesmo tempo em que resistências se concretizam e se fazem presentes. Nesta disputa de narrativas, os feminismos populares se mostram como força motriz. As mulheres estão na linha de frente de grande parte das lutas sociais no Brasil e em outros países.

Mas falar em mulher é também falar de maternidade (ou o direito a negá-la), de crianças e de seu acolhimento. E quando se fala em crianças, é importante pensar nelas como o começo de uma vida que traz consigo a promessa (ou a nostalgia?) de futuro, de mudança efetiva, o que apresenta um inevitável questionamento: como pensar em transformações na sociedade sem levar em consideração a formação da pessoa desde o começo de sua vida social?

Esta é uma pergunta onipresente nos diversos artigos que compõem a publicação Por que a creche é uma luta das mulheres?,  que contou com debate de lançamento e a presença de algumas de suas autoras na Fundação Rosa Luxemburgo, em 12 de julho. A atividade integrou a programação do Julho das Pretas, da Marcha de Mulheres Negras de SP.

Resultado dos debates promovidos durante uma disciplina optativa do curso de pedagogia da Unicamp (Universidade de Campinas), em 2017, o livro é uma costura de textos com distintas (e complementares) perspectivas do direito das crianças e das mulheres, e apresenta a creche não como um mero lugar onde ficam as crianças de 0 a 6 anos, mas sim como um espaço de direito, um lugar conquistado, o primeiro de vivência infantil coletiva e que precisa, urgentemente, ser construído a partir de pedagogias libertadoras e emancipatórias.

O livro é dedicado a Marielle Franco porque “ela simboliza o protagonismo da mulher negra, pois hoje, se for falar em feminismo, em creche, educação infantil não se pode deixar de reconhecer o significado político das mulheres negras”, destacou a ativista e feminista Amelinha Teles, umas das mulheres que encabeçaram a luta por creches entre o final dos anos 1970 e começo dos 1980.

Vale dizer que a creche, enquanto política pública nacional, foi resultado de muita mobilização e trabalho social. A primeira rede municipal, com 120 unidades, foi construída na cidade de São Paulo. E todo este esforço de organização fez com que a creche fosse reconhecida como um direito das mulheres e das crianças na Constituição Federal de 1988.

Porém, mesmo no interior do movimento feminista, tal reivindicação encontrava resistência em debates repletos de polêmicas. Amelinha conta que algumas militantes achavam a luta por creche uma imposição, pois a maternidade não deveria ser algo tido como inerente para a vida da mulher. “A maternidade é uma escolha. Mas ser mãe não quer dizer que a mulher precisa responder aos encargos que uma sociedade machista e patriarcal impõe, por isso a importância de discutir a divisão sexual do trabalho”, afirma. Neste sentido a responsabilidade pela formação de uma criança é de toda a sociedade.

As pedras no caminho

Atualmente a realidade da creche no Brasil apresenta muitas dificuldades: a precarização, a terceirização, a distância da realidade ao se negar a levar em consideração temas candentes da sociedade como o racismo, questões de gênero e de classe. Afinal, creche é assunto sério, e se mostra um ambiente privilegiado para a construção de práticas descolonizadoras, o que cria condições para a criança vivenciar a realidade de forma crítica e diversa.

“É preciso destacar que não dá pra falar de creche sem falar de raça e classe. Não se pode separar estes temas. Do mesmo modo que o debate racial não é exclusivo do povo negro, mas de toda a sociedade. Se não lincarmos estes debates, não iremos avançar”, afirmou a pedagoga e mestra em educação Clélia Rosa, que produziu um artigo para a publicação.

A doutora em educação pela Unicamp, Marcia Anacleto, também autora do livro, defende a urgência dos movimentos negros e de feministas negras olharem com mais atenção o debate da creche e da defesa da educação de qualidade e diversa, pois muitas vezes esta é uma luta solitária de quem está no chamado “chão da creche”. Mesmo sendo muitas as demandas que cercam as discussões do racismo e da discriminação no Brasil é fundamental refletir sobre como trabalhar a interseccionalidade com as crianças.

“O cotidiano da educação infantil não olha para a diversidade. Há uma tentativa de fortalecer a ideia de que não é necessário trabalhar com este assunto com crianças tão pequenas. Mas sim, elas estão já lá dizendo quem são e de onde vêm. E neste sentindo, que projeto estas creches desenvolvem para que todas as crianças negras se vejam de forma positiva e se sintam valorizadas?”, questiona.

Porém, a perspectiva interseccional é algo extremamente desconhecido para grande parte das profissionais da pedagogia (sim, as mulheres são a imensa maioria nesta categoria), como bem lembra outra autora da publicação, Adriana Alves Silva, doutora em educação pela Unicamp. Para justificar a necessidade de politização do processo de formação de trabalhadoras que atuam com a infância ela cita a escritora estadunidense e feminista bell hooks, que afirma que apesar de não ser um paraíso, a sala de aula é um ambiente de possibilidades onde se é possível trabalhar a liberdade e exigir de todos a abertura da mente e coração.

“Uma creche é um espaço tempo primeiro de reprodução da vida coletiva e a gente estuda este primeiro momento de iniciação e aprende a viver no mundo apesar de. Um espaço tão potente é, deve ser, revolucionário. E criar esta vida é uma responsabilidade das mulheres. Claro que os homens precisam somar nesta empreitada, mas o fato é que as mulheres concentram este poder. Esta é a razão pela qual seguimos defendendo a creche, como um lugar onde a pedadogia da escuta e das diferenças possam vivenciar praticas de despatriarcalização”.

A publicação Por que a creche é uma luta das mulheres? contribui de forma contundente para o entendimento de que colocar a formação da criança no centro, priorizar debates que joguem luz na construção de pedagogias descolonizadoras é prioritário não apenas no âmbito individual, mas para toda a sociedade. Para além de tantas demandas que estes tempos difíceis apresentam, pode este ser o caminho de uma mudança efetiva e sólida, pois passa, em última instância, pelo começo da educação do ser.

“Precisamos recuperar nossa organização social. Vivemos em uma sociedade adultocêntrica. Queremos uma pedagogia descolonial, anti-patriarcal, feminista, progressista. Tudo isso. Mas ainda estamos muito longe. Porém, temos que encarar e tocar para frente. Quando fizemos a luta por creche na década de 70 e 80 a gente imaginou que teríamos creches diretas? Que teríamos uma rede municipal? Nossa luta foi tão grande, que conquistamos. Temos força. Precisamos acreditar. Fizemos uma vez e faremos quantas outras forem necessárias”, nos instiga Amelinha Teles.

Ouça o áudio com a íntegra do debate de lançamento do livro.

Assista ao mini-documentário produzido pelo Observatório:


(Foto: Agência Brasil)

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