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Nesta entrevista, Maureen Santos, da Fundação Heinrich Böll Brasil, fala sobre as negociações internacionais de mudanças climáticas e sobre a mobilização da sociedade civil por justiça climática

Em 2015, haverá um momento decisivo no combate ao superaquecimento global. A próxima Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 21) está marcada para ocorrer em Paris. Lá, um novo acordo sobre cortes de emissão de gases de efeito estufa deverá ser assinado.

No entanto, Maureen Santos, coordenadora do Programa de Justiça Ambiental da Fundação Heinrich Böll Brasil, chama atenção para o desgaste do espaço multilateral. Ela, que também integra o Grupo Carta de Belém, do qual a FASE faz parte, aponta para a captura corporativa nas negociações. É que as saídas apontadas nos eventos oficiais têm tido uma perspectiva de mercado.

Para Maureen, frente a isso, é preciso ampliar a visibilidade de temas em torno da financeirização da natureza, envolvendo inclusive a questão do modelo de desenvolvimento vigente. Nesta entrevista, ela faz um balanço da COP 20, realizada em dezembro último no Peru, e da mobilização da sociedade civil na Cúpula dos Povos, evento paralelo ao da ONU.

Qual é o seu olhar sobre os desdobramentos de Lima?

Não se tinha uma expectativa de que fossem sair grandes coisas da negociação de Lima. Então, esse acordo que saiu, a “Chamada de Lima para a Ação Climática”, representa algo já esperado. A decisão da COP 20 realmente representa esse momento que as negociações climáticas vêm vivendo: por um lado, depois de mais de 20 anos, você tem mesmo um processo de esgotamento das próprias negociações e, por outro, uma falta de expectativa de que possa sair na COP 21 um acordo que represente um esforço maior dos países membros da Convenção, isso em especial dos países desenvolvidos, que são ainda os que criam mais dificuldades para decisões concretas. Ainda assim, me surpreendeu que “o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas” tenha entrado na Chamada de Lima. Houve uma dificuldade de isso ser incluído em Varsóvia [COP19 na Polônia, em 2013]. Esse foi um ponto de grande clivagem entre países desenvolvidos e países do G77+ China [maior bloco de negociação das COP, formado por países em desenvolvimento]. Você tem, logo no preâmbulo da decisão de Lima, a questão de ter um acordo ambicioso para 2015 que reflita esse princípio e suas respectivas capacidades.

Na véspera da COP 20, o governo brasileiro propôs que os países chamados emergentes, como o próprio Brasil, Índia, África do Sul e China também assumissem responsabilidades. Você poderia comentar a proposta?

O Brasil apresentou o chamado “círculos concêntricos”. A ideia é de que os países desenvolvidos assumam compromissos desde já e que, ao mesmo tempo, os países emergentes fossem assumindo gradualmente os seus, e depois os países em desenvolvimento, as economias menores, etc. A proposta tende a atender tanto o “princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas” quanto à demanda dos países desenvolvidos, que defendem que os emergentes também assumam seus compromissos.

E como é que essa proposta foi recebida na COP20?

O G77+China apoiou, mas ela não entrou no acordo dessa forma. Ela entra indiretamente, com elementos para o acordo de Paris. Na verdade, a ideia do Brasil era que se fizesse um esqueleto para o acordo, mas isso ainda não está concreto. Nem as contribuições nacionais determinadas [aportes de cada país ao esforço global de combate ao aquecimento global] estão totalmente fechadas.

O governo brasileiro disse que o texto final ficou equilibrado. O que acha?

Acho que o Brasil disse isso porque foi o que foi possível sair de Lima. Você tinha uma tentativa de tirar um texto que não representava a maioria, que inclusive não incluía “as responsabilidades comuns, porém diferenciadas”. Aí vários países do G77 não aceitaram o texto. E o Brasil até perdeu um pouco do protagonismo, porque aceitou esse texto que os outros países não aceitaram, e ficou de certa forma apoiando o chamado “Umbrella Group” [coalizão que reúne nações desenvolvidas de fora da União Europeia, como Austrália, Japão, Estados Unidos e Canadá]. Mas, depois de duas semanas e dois dias de discussão, se chegou a essa decisão de Lima, que inclui as “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, e aí sim você tem um texto um pouco mais equilibrado que responde a essa maioria que estava lá. O Brasil tinha uma preocupação muito grande para que Lima não fosse um fracasso. Então, é melhor nenhum acordo do que um acordo ruim? Para o Brasil, era melhor sair algo de Lima mais fraco do que não sair nada e enfraquecer o sistema multilateral, isso ficou bastante claro pela forma como o país atuou na negociação.

E sobre os mecanismos de mercantilização da natureza, cresceu na COP 20 a pressão por mais saídas de mercado para a crise climática? 

O Grupo Carta de Belém tem uma posição histórica contrária ao mercado de carbono, que inclui o chamado offsetting, que é a compensação de emissões. O Protocolo de Kyoto estabeleceu uma meta de redução de emissões dos países desenvolvidos, e essa meta pôde ser flexibilizada com a compra de créditos de carbono, seja de países do Norte, seja do Sul. Na verdade, você não reduz as emissões, só compra e transfere o direito de emitir [gases de efeito estufa] de um lugar para outro. Quando o Grupo foi criado, em 2009, já na esteira das propostas de REDD [Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal], havia toda uma preocupação de que esse novo mecanismo pudesse incluir o offsetting como uma de suas modalidades. No caso do REDD, o Brasil entendeu que a decisão em Varsóvia não incluiu a opção de mercado. Mas essa decisão, da forma como o texto foi escrito, ficou ambígua. Então, se retomou esse debate em Lima, mas sem conclusão. Por isso, esse tema será retomado durante as negociações do SBSTA [Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico e Tecnológico], em junho de 2015, em Bonn, [na Alemanha].

Podemos dizer que houve um retrocesso em relação ao que foi decidido sobre o tema na COP19?

Depende da interpretação. O Brasil diz que sim. Outros países disseram que, na verdade, essa opção pelo mercado sempre esteve no texto. O que teve de novo nessa negociação de Lima, e que é bastante preocupante, foi a presença de entes subnacionais, que não são os entes das partes, formadas por Estados Nacionais, que começaram a querer ter um papel mais importante. Eles não têm poder na negociação formal, mas acabam participando. Então, tinham vários estados brasileiros e algumas ONGs que quiseram ditar a negociação. E, como a grande maioria é a favor do mecanismo de mercado em REDD, acabou indo contra a posição soberana do governo brasileiro, criando problemas. Pelo que você conta, a posição do governo federal nesse ponto é mais progressista.

Pensando na realidade interna, com falta de reforma agrária e com conflitos em áreas indígenas e quilombolas, que são mais preservadas e ficam na mira dos mercados de carbono, porque essa diferença de posição? 

Realmente a postura brasileira para fora, em relação a esse tema especificamente, é bastante progressista. Ela é contraditória com o que acontece nacionalmente. Por isso, o Grupo Carta de Belém, que apoia a posição brasileira em relação a vetar o mecanismo de mercado em REED, acha que é muito importante estar conectado com as negociações internacionais que o país participa. Essa é uma forma de pressionar o governo, de você explorar politicamente a questão. Mas é claro que, domesticamente, você tem ainda todo o parlamento que vem aprovando legislações que abrem para o mercado, mesmo que, às vezes, isso ocorra à revelia do Executivo. E você tem os poderes estaduais, que têm primazia para aprovar suas leis. Há certas coisas que, nas negociações de clima, o Brasil iria contra, mas leis aprovadas nos estados trazem precedentes. E isso pode atrapalhar a barganha brasileira nas negociações [nas COPs].

E como você avalia a Cúpula dos Povos? Houve reflexos no evento oficial?

A Cúpula dos Povos, para o que ela se propôs realizar, foi muito bem sucedida. Foram tratados temas que representavam as preocupações das organizações e movimentos sociais da América Latina, em especial. Por exemplo, o tema do extrativismo: a mineração, o fracking [método de fratura hidráulica que possibilita a extração de combustíveis líquidos e gasosos do subsolo], os impactos nos territórios em relação a essas formas de exploração mineral. Ocorreram muitas atividades dos povos indígenas, especialmente andinos. Também houve uma participação grande de mulheres. O Grupo Carta de Belém realizou discussões sobre financeirização da natureza, que foi um eixo que também apareceu em diversas atividades, e alternativas ao pagamento por serviços ambientais. Outros temas que se relacionaram foram, por exemplo, os debates sobre captura corporativa das negociações de clima. A marcha [Marcha Mundial dos Povos em Defesa da Mãe Terra, que reuniu pelo menos 15 mil pessoas durante a Cúpula] foi bastante importante, talvez tenha sido uma das maiores que se conseguiu fazer no Peru. Com o tema da mudança climática e da justiça climática, foi a maior marcha sem sombra de dúvida. Em relação ao diálogo com o espaço oficial, a Cúpula dos Povos foi construída como um espaço autônomo e alternativo que não deveria seguir a agenda oficial. E ela não seguiu, teve sua agenda própria. Isso foi uma escolha política. O documento final da Cúpula foi entregue no espaço oficial por uma delegação formada pelo Comitê Político peruano.

Reunião de entrega da declaração final da Cúpula a representantes do evento oficial. (foto: CumpredelosPueblos/Reprod.)

Como foi a discussão sobre o que significa “desenvolvimento” na Cúpula?

Quando você pensa em alternativas sistêmicas, você está discutindo modelo de desenvolvimento. Você não vai discutir mudança climática por si, mas quais são as causas estruturais que estão provocando as mudanças climáticas e, obviamente, vai encarar o debate de modelo de desenvolvimento. Inconclusivo, porque você precisa de mais tempo, de mais análise e se debruçar melhor, entrar nas experiências e alternativas que vêm sendo propostas e implementadas [pelos povos], mas esse foi um debate bastante forte. A Cúpula em Lima é parte de um processo de convergência [de organizações, movimentos sociais e sindicais] que vem sendo um avanço frente a complicada fragmentação que a sociedade civil vem sofrendo. Então, ela fez parte dessa tentativa de articulação e de construção de um processo, não de uma Cúpula para ficar isolada em seu tempo e espaço, ou em seu tema específico. Essa foi uma tentativa de muitas organizações latino-americanas de ir pavimentando um caminho.

É um processo que começa na Cúpula dos Povos da Rio+20, em 2012?

Sim, com certeza a Rio+20 foi fundamental para duas coisas: aproximar atores e trazer uma inovação do ponto de vista da metodologia. Aquele processo de plenárias, de sistematização… A gente tentou aplicar isso em Lima, mas não foi possível porque a realidade peruana era totalmente diferente, a gente tinha pouco tempo. Na Rio+20, as coisas começaram a ser preparadas dois anos antes. Em Lima, o comitê político [da Cúpula dos Povos] foi cristalizado em agosto de 2014.

E como está o diálogo entre os movimentos ambientalistas ou de luta por território, como os camponeses, e o movimento sindical?

A criação de um Comitê de Enlace Internacional é o início de fortalecimento de convergências possíveis. Esse grupo, que tem esses movimentos, está em um processo bem interessante de confiança e construção política. E tem algo também importante: os sindicatos lançaram a Plataforma de Desenvolvimento das Américas (Plada), em que tentam trazer tanto o debate de desenvolvimento sustentável, como também puxam o debate sobre justiça ambiental. Se por um lado, você tem a discussão de outro modelo de desenvolvimento, por outro tem que pensar na questão do emprego e de uma série de outras coisas que vão afetar as pessoas nas cidades. Em 2014, dentro dessa construção, tivemos essa aproximação positiva. E a Cúpula dos Povos de Lima representa isso.

Foi a principal mensagem da Cúpula? Quais são as estratégias até a COP 21?

Acho que a mensagem foi a de que é importante construir uma agenda comum, ela é fundamental para pensarmos em um processo de longo prazo, isso baseado nessa convergência e na construção de movimento por justiça climática. A gente ainda chama de justiça climática, mas pode ser qualquer coisa, até porque o debate de clima strictu sensu já está sendo superado. A própria discussão de financeirização [da natureza] é muito mais ampla do que a de “clima”. Você trabalha com biodiversidade, com a forma como se dá a apropriação de territórios… Então, é isso: ampliar o leque de temas para algo mais amplo do que só o de clima em si. A mudança climática é um dos efeitos desse sistema perverso. Para 2015, estão sendo aprovadas mobilizações grandes no mundo. Com datas no calendário, as organizações poderão pensar em atividades. A ideia não é que todo mundo vá para Paris em dezembro, mas que fortaleça essa convergência em seus países.

Fonte: FASE, por Gilka Resende

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