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O Governo manobra para retirar homicídios da contabilização ou para que retificações nos cadastros não sejam divulgadas

Por Almir Felitte(*), do Justificando

“Muitos, especialmente inúmeros governantes e parlamentares paulistas, além de parte considerável da grande imprensa, associam segurança pública com mais endurecimento policial e aumento de prisões. No entanto, no Estado de São Paulo, onde essas medidas são adotadas há anos, as políticas de endurecimento penal não representaram melhoria nas condições de vida das camadas mais pobres. Ao contrário, as periferias figuram como o alvo praticamente exclusivo da força e da violência do Estado e são tratadas como assunto de intervenção policial e de encarceramento, jamais como comunidades compostas por sujeitos com história, direitos e esperanças”[1].

É com essa constatação que se inicia a Agenda Estadual de Desencarceramento e Desmilitarização, documento idealizado por entidades com histórico de luta antipunitivista, como a Pastoral Carcerária.

A afirmação vai em sentido diametralmente contrário ao de qualquer declaração que já tenha sido feita pelo Tucanato paulista nessas quase três décadas em que governou o estado. Porém, quando olhamos a escalada das taxas criminais, em números, percebemos que a Agenda de Desencarceramento faz um retrato muito mais fiel da realidade paulista e brasileira.

Aliás, essa constatação não só é um banho de realidade em um governo que sistematicamente se recusa a vê-la, como, também, é uma pá de cal no discurso punitivista, que insiste em crer que o encarceramento e a repressão policial são um caminho viável para a redução da violência e da criminalidade.

“E nem se diga que a repressão não aumentou. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública[2], nos últimos 8 anos, a polícia brasileira foi responsável por 21.892 mortes. Anualmente, um número que saltou de 2.332 em 2012 para 4.222 em 2016. Só em São Paulo, 856 pessoas foram mortas por policiais em 2016, contra 775 em 2012.”

A escalada repressiva se repete no sistema prisional. Em 2000[3], o Brasil tinha uma população carcerária de 232.755 pessoas (133 presos por 100 mil habitantes). O número dobrou em 2010, com uma população de 496.251 presos (253 por 100 mil habitantes). Até que o Brasil se transformou na terceira maior população carcerária do mundo, com 726.712 presos em 2016 (352,6 por 100 mil habitantes)[4].

Esse super encarceramento se repete de forma ampliada em São Paulo, estado com a maior população prisional absoluta do país, com 240.061 presos. Proporcionalmente, São Paulo é a quarta unidade federativa que mais prende, com 536,5 pessoas presas a cada 100 mil habitantes.

Mas será que tanta repressão se traduziu em um aumento da segurança na vida do paulista? Bem, os números, pelo menos, dizem que não.

O número de roubos de carga[5], por exemplo, no Brasil, mais do que dobrou entre 2007 e 2016. Em São Paulo, registrou-se 6.192 desses incidentes em 2007, contra 9.943 em 2016, representando 42% desses crimes em todo o Brasil.

Entre 2015 e 2016, aliás, São Paulo também registrou um aumento de 3,1% no número total de roubos, que subiram de 386.099 para 401.223. Outro dado que assusta, e que também aumentou durante esse mesmo período, é o de estupros[6]. Foram 10.055 em São Paulo em 2016, um aumento de 7,7% em relação ao ano anterior, fora as 1.218 tentativas.

“Apesar desses números, o Governo paulista segue propagandeando, aos quatro ventos, que suas políticas públicas conseguiram reduzir drasticamente o número de mortes violentas no estado.”

As estatísticas oficiais, porém, parecem carecer de maior precisão, e até mesmo autoridades públicas[7] já confirmaram, em grandes mídias[8], que o Governo manobra para retirar homicídios da contabilização ou para que retificações nos cadastros não sejam divulgadas. Além disso, com um histórico de colocar sigilos em informações de interesse público, o Governo paulista do PSDB nunca foi lá muito confiável quando o assunto é divulgação estatística.

Além disso, mesmo que haja uma diminuição das mortes violentas em São Paulo, é de se contestar se essas pequenas melhoras seriam, realmente, fruto de uma política pública do Governo.

Graham Willis, canadense que acompanhou o trabalho das polícias em São Paulo por 3 anos, por exemplo, considera que “a regulação do PCC é o principal fator sobre a vida e a morte em São Paulo. O PCC é produto, produtor e regulador da violência”, acrescentando que “não há dados sobre políticas públicas específicas nesses locais para explicar essas tendências“[9].

Nesse sentido, um exemplo bem distante de São Paulo pode ter demonstrado que a tese do canadense não é nada surreal. No Ceará, por exemplo, segundo o Anuário de Segurança Pública, houve uma queda de 14,2% nas Mortes Violentas Intencionais entre 2015 e 2016, época em que era público e notório, inclusive noticiado em grandes veículos de imprensa[10], que PCC e Comando Vermelho estavam em trégua no estado cearense.

Porém, quando a trégua acabou, algo que ficou explícito com os conflitos e rebeliões que vêm ocorrendo no Norte e no Nordeste desde o fim de 2016, a violência no Ceará voltou a explodir. As 3.566 mortes violentas intencionais em 2016 saltaram para 5.134 em 2017[11], e janeiro de 2018 já se iniciou mostrando que esse ano seria ainda pior.

Voltando para o caso paulista, se, como se diz, a existência e a força de uma facção criminosa no estado é suficiente para alterar estatísticas criminais de forma tão impactante, é de se perguntar: será que é correto afirmar que a segurança pública em São Paulo realmente vai bem?

O caso fica ainda pior se considerarmos que, em 2016, as eleições municipais foram marcadas por uma série de candidatos da Grande São Paulo sendo acusados de envolvimento com o PCC, mostrando que a política paulista está mais subordinada ao crime organizado do que imaginávamos.

Porém, apesar desse enorme problema que, aliás, nasceu em São Paulo e se alastrou por todo o Brasil, o estado paulista parece querer caminhar em um sentido inverso ao que poderia, de forma mais eficaz, combater a crescente influência do crime organizado.

É ponto quase unânime que, para combater o crime organizado, o policiamento deve passar pelo incremento do trabalho de inteligência e investigação.

“Porém, de todo o orçamento gasto em Segurança Pública pelo estado de São Paulo, só 2,7% vai para informação e inteligência, enquanto mais de 87% é gasto em policiamento. Esse número, que, é bem verdade, se repete em todo o Brasil, mostra uma clara preferência pelo ineficaz policiamento ostensivo, enquanto se gera uma deficiência no trabalho investigativo das polícias estaduais.”

Além disso, esse orçamento que já era fraco ficou ainda pior. Entre 2015 e 2016, o investimento paulista em inteligência e informação caiu de pífios R$ 366 milhões para (mais pífios ainda) R$ 292 milhões. Uma queda de 20% em um sistema que já estava bastante sucateado.

“Essa queda no orçamento é visível. Só 40% dos Municípios paulistas têm delegacias, e várias das que existem fecham no período noturno e nos fins de semana. E, enquanto a Polícia Civil paulista vai minguando, a Polícia Militar do estado, com seu caráter ostensivo, segue inchando cada vez mais. Junto com ela, continuam crescendo livremente, também, as taxas criminais, sem maiores investimentos em um trabalho de inteligência que as pudessem conter.”

Mas os problemas da gestão das seguranças paulista e brasileira não param aí. Não bastasse a ineficiência explicitada por taxas criminais que insistem em crescer, há, ainda, a própria violência estatal que essa gestão militarizada gerou. E não se pode negar que essa violência costuma ter vítima certa: a juventude pobre, negra e moradora da periferia.

“Essa “preferência” se vê claramente no próprio cárcere brasileiro, onde, segundo o Infopen, 64% das pessoas presas são negras, embora elas representem só 54% da população nacional. E São Paulo não foge a essa regra racista, tendo uma situação ainda pior, já que 56% da população carcerária paulista é negra, embora, segundo a SEADE[12], em 2010, a população preta e parda era de apenas 34,6% no Estado.”

Além disso, o punitivismo paulista mostra seu claro viés de classe quando constatamos que, entre a população carcerária do estado, 67% chegou, no máximo, a completar o Ensino Fundamental, sendo que 50% sequer esse nível completou. Mais da metade das pessoas presas em São Paulo tem menos de 30 anos.

Mas essa política repressiva não se esgota no momento da prisão. Ela se perpetua durante toda a estadia dessa população marginalizada dentro de um sistema carcerário que, a cada dia mais, mostra que não foi pensado para tratar de vidas humanas.

‘É certo que, no país inteiro, o sistema prisional apresenta condições horríveis, mas São Paulo, apesar da imagem que o Governo tenta passar, não faz diferente. Segundo o Infopen, só 10% dos presos paulistas participa de uma atividade educacional (contra 12% no país inteiro). São Paulo também está abaixo da média nacional no número de encarcerados praticando alguma atividade de trabalho, com apenas 13% (contra 15% no Brasil).”

Mas mesmos aqueles que praticam uma atividade laboral encontram problemas, já que 33% dos presos que trabalham sequer recebem para isso, sendo que a grande maioria recebe um valor extremamente baixo.

Não bastassem essa exploração e o desrespeito a direitos básicos garantidos na Lei de Execução Penal, o cárcere paulista consegue apresentar uma face ainda mais cruel e letal. No primeiro semestre de 2016, por exemplo, os presídios de São Paulo tiveram uma taxa de 10,3 óbitos a cada 10 mil presos.

Muito deles classificados como “óbitos naturais”. Essa causa, aliás, bem acima da média nacional. Certamente um efeito colateral da falta de estrutura dos presídios em São Paulo. Segundo a Folha[13], em 2015, haviam só 120 médicos em exercício nas 164 unidades prisionais do Estado.

“Além da falta de servidores, não há dúvidas de que o excesso de lotação dos presídios também é causa para tanta letalidade. Nesse ponto, porém, é importante ressaltar, inclusive para uma parte da esquerda progressista que tem aceitado esse discurso, que a “humanização” do sistema carcerário se tornou uma grande falácia. Falácia, aliás, que tem inclusive servido a interesses capitalistas de entidades que enxergam no sistema prisional e na liberdade de pessoas uma mercadoria.”

Com uma população de mais de 240 mil presos para apenas 131.159 vagas, São Paulo tem um déficit de 108.902 vagas no sistema carcerário, uma superlotação de mais de 180%.

Nesse sentido, considerando, ainda, que a população carcerária brasileira e paulista crescem em um nível exponencial alarmante, é inviável crer que a construção de novos presídios seria uma solução plausível para esse problema. Mesmo que construíssemos 150 novas unidades prisionais no Estado em um período curto de tempo, praticamente dobrando a quantidade de vagas, isso não seria suficiente, já que a população carcerária paulista cresce em ritmo frenético.

Mais fácil seria reconhecer que a política brasileira e, em especial, a paulista atingiram um ponto de falência, no qual o Governo está fadado a ter gastos excessivos em um sistema que não consegue diminuir as taxas criminais, ao mesmo tempo em que fomenta a própria violência de Estado.

De qualquer modo, e, apesar do que todo o discurso partidário/midiático/propagandístico tenta nos empurrar, o fato é que a segurança pública paulista, assim como no resto do país, não vai nada bem.

(*)Almir Felitte é advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

(Foto: Mídia Ninja)

[1]Agenda Estadual de Desencarceramento e de Desmilitarização
[2]http://www.forumseguranca.org.br/estatisticas/tableau-ocorrencias/
[3]http://www.prisonstudies.org/country/brazil
[4]http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf
[5]http://www.forumseguranca.org.br/estatisticas/tableau-patrimoniais/
[6]http://www.forumseguranca.org.br/estatisticas/tableau-dignidade/
[7]https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,seguranca-sabe-que-n-de-homicidios-e-maior-do-que-o-divulgado-dizem-policiais,10000070968
[8]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1703796-manobra-da-gestao-alckmin-diminui-numero-de-homicidios-em-sp.shtml
[9]http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160210_homicidios_pcc_tg
[10]https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/19/politica/1471617200_201985.html
[11]https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/n-de-assassinatos-no-ceara-aumenta-308-em-janeiro.ghtml
[12]http://produtos.seade.gov.br/produtos/retratosdesp/view/index.php?indId=5&temaId=1&locId=1000
[13]http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/07/1796216-com-falta-de-estrutura-presos-de-sp-morrem-doentes-e-fora-de-hospitais.shtml
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