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Mauri Cruz

 

 

Voltei e o mundo segue em convulsão. É impossível não refletir sobre as crises ambiental, econômica e sanitária, que são mundiais, e a crise política que é nacional, mesmo contrariando recomendações médicas. O mundo segue em mudanças vertiginosas e o governo brasileiro, além de não ter qualquer estratégia para o enfrentamento da pandemia, segue com sua agenda entreguista das riquezas naturais, sucateando nossas empresas, retirando emprego do nosso povo, se comportando como um governo colonial dos Estados Unidos e flertando com a democracia. Não nos iludamos. Estas crises estão articuladas e interligadas. Uma eventual derrota de Trump, por exemplo, terá impacto fulminante nas pretensões golpistas de Bolsonaro. As escolhas da China irão determinar o futuro da economia brasileira com o governo que for. E as crises se aprofundam.

Mas de crises, nós brasileiros e brasileiras, já somos calejadas/os. Mesmo nas eras Lula e Dilma não estivemos livres delas. A questão é se aprendemos, se as crises que já enfrentamos nos amadureceram e nos qualificaram para enfrentar as novas, sempre maiores e mais impactantes. Por exemplo, será que já compreendemos por que houve o golpe judicial-midiático-parlamentar contra a Presidenta Dilma? Porque Temer conclui seu mandato tampão quase sem sobressaltos implementando as duras reformas e, principalmente, por que Bolsonaro foi eleito?

Lembro que na década de 80 a crise democrática, econômica e social nos colocava em marcha por eleições diretas, contra o desemprego, a carestia, a fome, o déficit habitacional, a falta de transporte público e de um sistema de saúde. A luta social permitiu superarmos, pelo menos em parte, estas crises.

No entanto, naquela época, não havia qualquer debate sobre a dimensão racial ou de gênero destas crises. Pelo menos em quem detinha o poder de representação simbólica do povo brasileiro: trabalhadores pobres, brancos e “provedores” do sustento de suas famílias. Da mesma forma, a agenda ambiental era vista como tema de eco-chatos, na maioria oriundos das classes médias e que não conheciam a verdadeira dinâmica do capitalismo, da luta de classes e da agenda econômica neoliberal.

Há época, o modelo de desenvolvimento, o racismo e o patriarcado não eram reconhecidos como parte das crises. Talvez porque o lugar de fala, como nos ensina Djamila Ribeiro na coleção Feminismos Plurais [1], era de homens brancos que, ao “persistirem na ideia de que são universais e falam por todos, insistem em falar pelos outros, quando na verdade estão falando de si ao se julgarem universais.”

Hoje sabemos que o racismo, o patriarcado e os câmbios climáticos são partes determinantes das crises. Porque não dividem as pessoas somente entre ricos e pobres, trabalhadores/as e patrões, proprietários e despossuídos/as. Elas também separam as pessoas pela cor da pele, pelo gênero, pela orientação sexual e pelo local de vida. O não reconhecimento destas identidades são bases estruturantes das desigualdades.

Por isso, o racismo e o patriarcado devem estar no centro da luta contra as desigualdades e por mudanças no Brasil. O racismo é um fato real para 55,8% da população brasileira – 117 milhões de pessoas – que se declara preta ou parda. [2] Não vou discorrer aqui sobre indicadores estatísticos que comprovam o racismo estrutural e o patriarcado em nossa sociedade, desde o cerceamento de oportunidades, passando pela injustiça da desigualdade salarial, o cruel encarceramento em massa e o inadmissível extermínio intencional da população negra pela mão do estado e de mulheres por seus parentes próximos. Nem lembrar que o irmão gêmeo de desigualdade é o privilégio. Apenas anoto que são dados e informações há muito conhecidos por todos e todas. A questão é porque demoramos tanto em incorporar estas causas como centrais em nossas lutas.

Assim como a covid-19, estes vírus não escolhem ideologia. Eles atingem há todas e todos, sem exceção. E da mesma forma, como a covid-19, as mulheres e a população pobre e negra são as principais vítimas. Isso não quer dizer que não haja um recorte de classe. Sim, numa sociedade capitalista sempre haverá a separação entre os que detém o poder político por concentrar o poder econômico e os demais. Mas a divisão de classes não explica tudo. Até porque no seio da classe também se reproduzem as práticas do racismo e do patriarcado.

Eu nunca tinha encontrado respostas a pergunta: onde você guarda o seu racismo. Nestes dias de confinamento, ao organizar minha centena de livros, descobri que guardo meu racismo na estante. Me dei conta que li muito sobre direitos humanos, meio ambiente, o direito à cidade e a mobilidade, a economia solidária, a ditadura militar, a política, as revoluções e uma quantidade significativa sobre feminismos. Mas quase não há livros sobre a escravidão, racismo, encarceramento em massa da juventude negra, sobre o dia-a-dia das mulheres negras, suas causas, suas lutas, seus saberes.

Há medidas, protocolos, comportamentos e posturas que podem reduzir e até acabar com estes vírus. E passam, primeiramente, pela mudança da consciência e do comportamento de cada um individualmente. É preciso que nos incomode olhar para os espaços onde circulamos e ver que a proporção de negros e negras não é a mesma que na sociedade. É preciso que nos incomode que, quando presentes, na maioria das vezes realizam as atividades que nós não realizamos. É preciso que nos mobilize a luta por igualdade salariais entre mulheres e homens. Urge que a agenda ambiental, de proteção dos ecossistemas e dos territórios seja incorporada como elemento central na estratégia de lutas.

Quando parte da esquerda está voltada para discutir saídas, alternativas, estratégias de transição para o capitalismo, ou mesmo, propostas e programas para uma eventual retomada de governos municipais, é fundamental que haja uma radical mudança de postura e de compreensão sobre o caráter das crises. A desigualdade é um vírus quase invisível e muito letal. É preciso, escutando a mestra Djamila, mudar os lugares de fala e, talvez, assim, criar novos e vários lugares de escuta.

 

 

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