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Se o que a União recebeu pela alienação da empresa for comparado com o ‘valor de mercado’ que ela comportava na época, é escandalosa a sua notória desproporção em grande prejuízo da economia do país

Por Jacques Alfonsin*

A tragédia de Brumadinho ainda há de ir muito longe, no desdobramento administrativo e judicial dos seus efeitos, como acontece, aliás, quando o famoso devido processo legal encarrega a burocracia de travar qualquer tramitação considerada “inarredável”, para apuração de todas as responsabilidades decorrentes de um prejuízo dessa complicada espécie.

A Vale, anteriormente conhecida como Vale do Rio Doce, foi privatizada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, em maio de 1997, há mais de duas décadas, portanto. Se o que a União recebeu pela alienação da empresa for comparado com o “valor de mercado” que ela comportava na época, é escandalosa a sua notória desproporção em grande prejuízo da economia do país. É o que se pode conferir, de acordo com as muitas ações judiciais propostas para anular a sua venda. Em muitas fontes da internet, a respeito, lê-se o seguinte:

“Veja-se o caso da Vale do Rio Doce. A empresa foi constituída em 1942. Cinqüenta e cinco anos depois, em 1997, ela era a maior mineradora mundial de minério de ferro, possuía a maior frota de navios transportadores de grãos do mundo, duas ferrovias com nove mil quilômetros de extensão, com 16% da movimentação de cargas do país, constituía um complexo de 54 empresas e sua receita havia crescido de R$ 198 milhões por ano, no início dos anos 70, para R$ 5,5 bilhões em 1995. Neste mesmo ano, o Instituto Brasileiro de Economia considerou a Vale a primeira entre as empresas nacionais. Tudo isso foi construído com dinheiro público, com recursos do povo brasileiro, portanto. Pois bem, ela foi privatizada em 1997 por R$ 3,3 bilhões – que é menos do que ela obtinha por ano em 1995 e é menos do que ela lucra hoje em apenas três meses.”

Os arautos da privatização dos bens e das empresas públicas não se deixam impressionar pela diferença que a venda da Vale provou se comparada com as desapropriações ajuizadas pelo Poder Público sobre propriedades privadas. O respeito ao chamado valor e mercado, nesses casos, é uma das exigências mais enfatizadas pelas/os proprietárias do que estiver sendo desapropriado, de modo geral alcançando uma aceitação muito cuidadosa e reverente das sentenças judiciais, mesmo quando sequer cogitam se o objeto em causa cumpre, ou não, a função social da propriedade.

No caso da Vale, então uma empresa pública, de propriedade do povo – da leitora e do leitor brasileiras/os que estão lendo este artigo, portanto – tudo se passou de forma totalmente diferente, como as muitas ações judiciais posteriores, visando anular a sua venda provaram . Uma lama bem mais espessa e trágica do que a de Brumadinho, pelos efeitos que até hoje se desenrolam em prejuízo de todo o povo, tratou a sua alienação praticamente como uma doação.

O professor, jurista e advogado Fabio Konder Comparato, juntamente com outros colegas seus, também conhecidos juristas, como Celso Antônio Bandeira de Mello, Dalmo de Abreu Dallari, Goffredo da Silva Telles Jr. e Eros Grau (este, depois chegou a ser ministro do Supremo Tribunal Federal) já tinham ingressado, à época, com uma ação popular, visando impedir o leilão da Vale. Entrevistado pelo IHU notícias em 2011, veja-se a gravidade da denúncia feita pelo Dr. Fabio:

“Estou cada vez mais convencido de que aquilo foi um crime contra o patrimônio nacional. Se nós tivéssemos tido uma evolução humanista da mentalidade coletiva e uma verdadeira democratização, e não essa falsa democratização que se diz ter ocorrido em 1988, os autores desse crime deveriam ser julgados. O episódio da venda da Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo, revelou até que ponto o Poder Judiciário sofre a dominação do poder capitalista. Vou contar um episódio que não foi divulgado, mas é o retrato dessa submissão. Foi proposta uma ação popular contra a privatização, em uma vara da Justiça Federal em São Paulo. Em seguida, foi concedida uma liminar para suspender o leilão, que deveria ocorrer na bolsa do Rio de Janeiro. O governo da época apresentou recurso contra essa liminar ao Tribunal Regional Federal, que manteve suspensão. Em seguida, o governo produziu um recurso inexistente para que o processo chegasse ao Superior Tribunal de Justiça. No STJ, armou-se todo um cerco em torno dos desembargadores, sobretudo daquele a quem foi distribuído o processo. Esse desembargador, imediatamente, deslocou a jurisdição do caso de São Paulo para o Rio de Janeiro. Lá, o caso chegou às mãos de uma juíza. Mais tarde, segundo seu próprio relato, ela recebeu um comunicado pessoal de outro juiz, dizendo ser ela obrigada a reformar a sentença oficial e julgar improcedente a ação popular proposta. Até hoje, ainda não há uma solução para isso, porque a Vale do Rio Doce e o governo federal multiplicaram recursos. Chegamos até o Superior Tribunal Federal, mas ainda não conseguimos uma decisão definitiva, mais de uma década depois. Isso é o retrato da Justiça neste país.”

Note-se o modo, mesmo à margem da lei, pelo qual o Poder Judiciário, quando quer, prorroga indefinidamente o julgamento dos processos. No caso deste ajuizamento, todos os maus efeitos patrimoniais, morais, existenciais, ambientais, e públicos da lama que matou tanta gente agora em Brumadinho, talvez tivessem sido evitados pelos tribunais por onde tramitou esta ação e dezenas de outras. Tanto pelo que o Tesouro Nacional deixou de receber em dinheiro vivo, como pela notória substituição do interesse público pelo lucro irresponsável que o passado da Vale tem demonstrado.

Segundo notícia do G1, ela foi “eleita” em 2012, pelo “Public Eye People´s”, a empresa que ficou em primeiro lugar no mundo como a pior em atuação social e ambiental. A nota informa que essa premiação, outorgada durante o Forum Econômico de Davos naquele ano, é “realizada pelo Greenpeace da Suíça e pela ONG Declaração de Berna, para escolher as empresas com pior atuação em relação aos direitos humanos e ao meio ambiente”. Depois, seguiu-se o desastre de Mariana em novembro de 2015, e agora essa tragédia de Brumadinho.

Ainda vai chegar o dia, assim se espera, que as responsabilidades dos gestores públicos, pelo devido respeito aos bens e direitos que não são seus mas que administram, tratem-nos com o mesmo rigor com que os tribunais tratam a obrigação de se pagar por qualquer desapropriação. “Subtrair” é o verbo núcleo dos crimes praticados contra o patrimônio privado. Os valores subtraídos, por exemplo, ao custo das garantias devidas aos direitos sociais do povo pobre brasileiro, pelo péssimo negócio que o governo da época da venda da Vale praticou, podem ser enquadrados, assim, como verdadeira subtração daquelas garantias.

Não sem razão, Joseph Stiglitz, ex-Vice-Presidente Sênior para políticas de desenvolvimento do Banco Mundial, apelidou todo esse processo, ocorrido sobretudo nas privatizações dos anos 1990, de briberization (“propinização”). Já que o novo (des)governo do país se apresenta como o guardião da moral, perseguidor de toda a corrupção, num país que é o primeiro do mundo em proteger o meio ambiente (!?), como o presidente proclamou em Davos, poderia, à vista da tragédia de Brumadinho, começar pela investigação das causas desse desastre, diretas e indiretas, presentes e remotas. Basta se unir as famílias que estão de luto, fazer a leitura dos autos dessas ações judiciais, tomar-se da indignação própria de quem passa, efetivamente, do discurso à ação. Pelo viés visivelmente privatista que o inspira, essa hipótese parece bem pouco provável de se concretizar, infelizmente.

 

*Jacques Alfonsin é procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos

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