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O Movimento Independente Mães de Maio é uma rede autônoma de mães, familiares e amigos de vítimas diretas da violência estatal, formada no Estado de São Paulo a partir dos episódios conhecidos como “Crimes de Maio”, em 2006. Nessa época, em apenas uma semana (entre os dias 12 e 20 de maio) cerca de 500 pessoas morreram no Estado, vitimadas pelos conflitos gerados entre os ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) e a retaliação da segurança pública de São Paulo.

Crimes de Maio vitimaram mais de 500 pessoas em São Paulo. Familiares das vítimas continuam lutando por justiça.
Crimes de Maio vitimaram mais de 500 pessoas em São Paulo. Familiares das vítimas continuam lutando por justiça.

Segundo o relatório “São Paulo sob Achaque”, elaborado em 2011, pela organização Justiça Global em parceria com a Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Havard (IHRC, sigla em inglês), a corrupção praticada por agentes públicos foi um dos principais motivos para o PCC realizar os ataques em 2006. Em especial, o sistema de extorsão de familiares da facção no ano de 2005. O documento informa que há denúncias consistentes de que a cúpula do governo sabia previamente dos planos do PCC e decidiu coibir a ação, sem gerar um alerta prévio sobre os ataques, para evitar dano político.

Débora Maria da Silva é mãe de Edson Rogério da Silva, um gari da Prefeitura de Santos, assassinado em 15 de maio de 2006, em uma ação da polícia. Após a morte do filho, Débora fundou o movimento Mães de Maio.

Em entrevista à Adital, Débora Maria faz uma reflexão sobre a situação dos jovens negros no Brasil e como a polícia vem se relacionando com a juventude. Ela debate ainda sobre a criminalização da pobreza e quais os interesses e possíveis impactos da redução da maioridade penal para os jovens brasileiros

ADITAL – Como atua o movimento Mães de Maio?

Débora Maria – Em 2006, agentes policiais de São Paulo e grupos paramilitares de extermínio ligados a eles assassinaram mais de 500 pessoas em todo estado, numa suposta resposta ao que se chamou na grande mídia de “ataques do PCC”. Desde então, superando o trauma devastador inicial que se abateu sobre nossas famílias (e sempre ameaça paralisar-nos por completo), passamos a lutar cotidianamente contra o genocídio da população preta, pobre e periférica, não só por aqui, mas em todo o país e, sempre que possível, demonstrando solidariedade internacional também. Foi a partir da dor e do luto gerado pela perda dos nossos filhos, familiares e amigos, que nos encontramos, nos reunimos e passamos a caminhar juntas de forma independente: do luto à luta.

Nossa missão tem sido, por um lado, nos organizar em nossas comunidades, espaços de trabalho e em redes políticas locais, regionais ou interestaduais para tentar colocar freios efetivos na disseminada violência do Estado policial e penal, que se fortalece a cada dia em todo o país. Atualmente, são cerca de 60.000 homicídios por ano no Brasil (ou duas ditaduras argentinas), sendo que grande parte desses assassinatos é, sabidamente, cometida por agentes ligados direta ou indiretamente ao Estado.

Somem-se a isso as mais de 700.000 pessoas encarceradas, hoje, no país – cujas famílias também pagam a prisão junto com seus entes queridos, além das dezenas de milhares de crianças e adolescentes aprisionadas por medidas supostamente socioeducativas, e a tortura cotidiana disseminada em cada abordagem policial rotineira nos becos e vielas à luz do dia nas quebradas do Brasil afora. É contra este Sistema Punitivo (penal e policial), racista e literalmente genocida, que a gente se levanta cotidianamente.

ADITAL – Ao longo dos anos de trabalho, quais as situações mais difíceis que a organização enfrentou?

DM – Os desafios mais difíceis que enfrentamos talvez sejam as dificuldades cotidianas mesmo. Não tem como escapar dos enormes desafios cotidianos que a devastação gerada pela morte de um familiar ou amigo impõe sobre nossas vidas, e temos que lidar de forma incontornável com todas as necessidades decorrentes disso. Por isso há de se ter ouvidos bem abertos e muito respeito quando se aborda a questão da luta pela nossa reparação, pois a devastação física, psíquica, moral e material à qual somos acometidas todos os dias não é nada trivial – muito ao contrário.

A rede de amparo mútuo, de escuta, de proteção, o incentivo, para seguir firme a vida e a luta, o apoio psicológico, o gingar dos medos e paranoias – bem coladas na realidade – o enfrentamento de humilhações diversas, não deixar a nossa autoestima desmoronar, a sede de justiça (mistura de ódio, rancor e desejo de não-repetição), a peregrinação por repartições burocráticas, a ajuda material quando faltam os arrimos da família, enfim, são questões muito duras e concretas. Nossa rede lida com tudo isso todo o santo dia, sem ajuda de nenhuma instituição, que, via de regra, só vem para agravar mais os problemas, contando apenas nós com nós mesmas.

ADITAL – O Mapa da violência no Brasil de 2014 revela que os homicídios são, hoje, a principal causa de morte de jovens entre 15 a 29 anos no Brasil, e atingem, especialmente, jovens negros do sexo masculino, moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos. Como avalia esse cenário?

DM – Certamente, este é o desafio mais importante da sociedade brasileira atual: reverter o genocídio que mata cerca de 60.000 pessoas por ano no Brasil – em sua enorme maioria jovens negros; encarcera, hoje, mais de 700.000 pessoas em todo o país –, aprisionando também, de forma vexatória, a vida das famílias dos presos e presas; e a tortura cotidiana, em cada corriqueira abordagem policial, um sem-número de trabalhadores e trabalhadoras.

ADITAL – Pode-se pensar em criminalização da pobreza?

DM – A criminalização dos trabalhadores e trabalhadoras com condições econômicas ruins, moradores de bairros periféricos e, na sua maioria, negros e indígenas-descendentes é uma realidade cotidiana e gritante no Brasil. As diversas forças policiais e militares do país trabalham no dia a dia sob a lógica do inimigo interno, que é um setor majoritário da população, considerado “suspeito” simplesmente por existir. Isso tem que ser revertido e, para tanto, é preciso se pensar a desmilitarização não só das polícias, mas de todas as esferas da política, do Estado e da sociedade de forma geral.

ADITAL – Pesquisas indicam que, no Brasil, o índice de jovens negros assassinados subiu 21,3% em 2012, enquanto o número de jovens brancos mortos caiu 5,5%. A que se deve esse quadro?

DM – Este quadro se deve ao racismo histórico e estrutural que marca toda a formação da sociedade capitalista brasileira, e talvez seja a sua principal questão na guerra entre as classes: a hegemonia histórica de certas elites brancas escravagistas, que atualizam o seu poder econômico, político e militar, a cada novo ciclo histórico do país. Via de regra, saindo cada vez mais fortalecidas de cada período.

ADITAL – A população negra é ainda a que mais sofre com a ausência de políticas públicas no país?

DM – Com certeza. A população negra, indígena-descendente, pobre e periférica é a base da classe trabalhadora do país, que as elites e os gestores do Estado só querem explorar e oprimir na base do terror de Estado. O quê explicaria um número tão grande de prisões e de execuções levados a cabo pelo Estado, se não a intenção de manter aterrorizada a maioria da população? Esta, se realmente se organizasse de forma autônoma e se levantasse contra esta dominação histórica, certamente colocaria os ‘coxinhas’ [conservadores] todos em perigo.

ADITAL – O jovem negro que vai preso enfrenta uma trajetória diferente de um jovem branco?

DM – Para o jovem negro, se propõe o aumento da maioridade penal, ao invés da ampliação de cotas e da maioridade educacional. Para o jovem branco playboy, cada vez mais são pensadas novas formas de cursos e planos de carreira, que assegurem a perpetuação de suas heranças, grandes fortunas, e seus futuros bem-sucedidos, mantendo-os no topo da pirâmide. A faculdade dos playboys, seja ela pública ou o filé mignon das privadas, tem nível internacional; para os jovens pobres e negros, quando se oferece alguma coisa, de um lado são as prisões, e de outra parte as faculdades privadas de meia-tigela, que só tiram o coro e o dinheiro suado dos meninos, sem terem qualquer preocupação numa boa formação.

ADITAL – Em muitos casos, os autores das mortes de jovens são policiais. Como avalia o tratamento dado pela polícia ao jovem brasileiro? Existe um despreparo na formação policial?

DM – Não existe um despreparo. Existe um preparo muito bem pensado e muito bem sucedido: para oprimir ostensivamente, prender e matar. O Brasil importa técnicas militares utilizadas pelo exército israelense contra as favelas de Gaza, na Palestina, e o Brasil também exporta essas técnicas e estratégias de guerra contra o nosso povo negro e pobre para países como o Haiti – onde o exército brasileiro, vergonhosamente, permanece oprimindo as sofridas favelas daquele país. No Haiti, aconteceu o maior e mais revolucionário levante negro das Américas, contra a escravidão. Por isso, os poderosos são tão atentos com o Haiti e com Cuba, para que os exemplos das duas revoluções não se espalhem pelos demais países do continente e do mundo. Portanto, não há despreparo, mas há uma preparação intensa para torturar, prender e matar.

ADITAL – A sociedade, governos e, em especial, os agentes públicos encarregados da segurança não estariam sabendo lidar com o comportamento desafiador da juventude?

DM – A juventude carrega consigo as possibilidades do novo, de uma nova sociedade. Por isso, são sempre ameaçadoras para aqueles que construíram os seus impérios baseados na dominação e na exploração da maioria – inclusive, dos jovens estudantes e trabalhadores. Então, os governos e os agentes públicos, sobretudo os policiais, já saem às ruas com a imagem do jovem negro, pobre e periférico como o “suspeito”, o seu “inimigo: aquele que se rebelar contra o Sistema, de diversas formas. A esquerda, que acreditou ou acredita que os governos e os agentes policiais existem para fazer o bem para a população, parece que não entendeu nada do papel dos governos e do Estado na dominação das classes ricas sobre os trabalhadores. Desde quando o Estado é um órgão neutro “a serviço da população”? Quantos representantes verdadeiros dos trabalhadores existem, hoje, no Congresso Federal ou em qualquer um desses governos atuais?

ADITAL – Ocupando o terceiro lugar no ranking mundial de população carcerária, o Brasil vem discutindo a redução da maioridade penal. Qual sua visão sobre a questão? É a favor ou contra a redução da maioridade?

DM – O plano de redução da maioridade penal faz parte dessa ascensão de forças reacionárias e fascistas no país. E mais: tem interesses econômicos pesados por trás, ligados à indústria bélica, de segurança e à indústria das prisões privatizadas. Ampliar o público “aprisionável” é também uma forma deles ampliarem o mercado. É óbvio que o movimento independente Mães de Maio é contra a redução da maioridade penal. Apenas os familiares de vítimas, comprados pela indústria bélica, de segurança e das prisões, é que defendem essa proposta absurda, que só vai aumentar os graves problemas sociais que já enfrentamos.

ADITAL – Se o projeto for aprovado, quais os principais impactos na juventude?

DM – Na prática, hoje, crianças e adolescentes já pagam certas medidas penais, nas Febems [unidades socioeducativas] – que ganharam outro nome para inglês ver. Mas, com a aprovação da redução da maioridade, a tendência é aumentar o número de adolescentes em todas as prisões, gerando uma perspectiva sombria para esses meninos e meninas e, por consequência, as suas famílias é que pagarão a prisão junto com eles. Estaremos rifando o futuro de milhares e milhares de jovens brasileiros, em troca de saciar a sede de vingança daqueles que promovem o ódio nas mídias e em todos os canais que têm a sua disposição. Aí voltamos novamente à questão do dinheiro: como alterar este quadro sem tocar na concentração econômica, de meios de comunicação e de meios político-militares?! O PT [Partido dos Trabalhadores] vendeu esta ilusão, ao longo dos últimos 12 anos, de que seria possível fazer um governo pactuando com esses fascistas, e, vejam só aonde nos trouxeram: estamos reféns de Eduardo Cunha [deputado federal pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB – Rio de Janeiro, e atual presidente da Câmara dos Deputados], Renan Calheiros [senador pelo PMDB de Alagoas e atual presidente do Senado], Michel Temer [vice-presidente da República] e a bancada BBB: Boi, Bíblia e Bala.

ADITAL – Como a violência tem atingido as crianças brasileiras e de que modo o Estado tem lidado com os “órfãos da violência”?

DM – O Estado lida com total descaso com as vítimas que ele mesmo produz aos milhares. E as crianças são as principais, pois são duplamente vítimas da ausência de políticas sociais e, por outro lado, vítimas da violência, que atinge diretamente elas e seus familiares. Não há qualquer política minimamente decente, que sequer pare em pé, de amparo psicossocial, muito menos qualquer reparação física, psíquica, moral nem material para as crianças e demais familiares. Quantas crianças são torturadas cotidianamente nas Febems espalhadas pelo país? Quantas destas foram efetivamente indenizadas pelos danos – muitas vezes, irreversíveis – causados por essas violências?!

ADITAL – Além da violência, que outros desafios a juventude brasileira tem enfrentado?

DM – Talvez o maior desafio da juventude brasileira seja a tomada de consciência de que seu futuro está totalmente em xeque – seja pelas taxas crescentes de prisão e homicídio de jovens, seja por políticas nefastas, como essa da terceirização, e ainda mais a precarização dos empregos da juventude. Por isso, os jovens precisam voltar a se reunirem e se organizarem, de forma nova e autônoma – sem passar pano mais na patifaria que se transformou a política institucional brasileira, nem cair mais na esparrela dos movimentos sociais domesticados pelos governos de plantão, e então construir a sua própria revolução social. Os jovens do Movimento Passe Livre (MPL) deram um grande exemplo para todo o país em 2013; os jovens negros, pobres e periféricos que se levantam, reagem e se rebelam cotidianamente contra a violência policial, nas favelas e prisões, também são grandes exemplos de indignação e dignidade. Os jovens poetas periféricos e integrantes comprometidos do movimento hip-hop verdadeiramente revolucionário são grandes exemplos do poder que a palavra e o conhecimento podem exercer na vida de todas as pessoas. Esses jovens revolucionários, todos podem ter certeza que as Mães de Maio estaremos juntas com vocês na construção de uma outra sociedade realmente justa e livre.

ADITAL: Deseja acrescentar algo mais?

DM – Sim. É sempre bom relembrar para quem vai pensando que está bom: nossos mortos têm voz!

Fonte: Adital, por Cristina Fontenele

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