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via: https://br.noticias.yahoo.com/famintos-voltam-a-ser-invisiveis-para-o-governo-com-agravamento-da-crise-do-coronavirus-070023793.html

 

Por Jéssica Cruz – @jhe_cruz

Quem inventou a fome são os que comem Carolina Maria de Jesus

Carolina Maria de Jesus, autora do livro “Quarto de Despejo”, best-seller nos anos 1960, dizia que a fome tinha cor: ela era amarela. A antropóloga Lis Furlani Blanco, doutoranda da Unicamp que estuda as definições do conceito de fome, relembra que a fome passou a ser vista como um problema humanitário após a Segunda Guerra Mundial, quando os prisioneiros dos campos de concentração foram libertos. “A ideia de fome passou a ser corporificada naqueles corpos magros, na pessoa esquálida”, explica Blanco.

Brasil continua fora do Mapa da Fome da ONU em 2019 (Mapa da Fome/FAO)

Já nos anos 1960, o médico e nutrólogo pernambucano Josué de Castro, ampliou a discussão da definição de fome em seu livro “Geografia da Fome – O dilema brasileiro: pão ou aço”. Blanco explica: “A fome que a gente vive nas Américas é uma fome oculta, uma fome de nutrientes, que perpassa boa parte da população, não só as classes mais baixas”. Daí a ideia da fome amarela de Carolina Maria de Jesus.

E esse conceito ajudou na criação da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) usada na medição da fome no país. A pesquisa suplementar à PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE, que mede a insegurança alimentar, começou a ser aplicada em 2004, se repetindo de cinco em cinco anos. De 2004 para 2009 houve um crescimento da insegurança alimentar leve, enquanto caíram os percentuais da moderada e grave. Já de 2009 para 2013, os índices caíram nos três níveis.

Em 2013, de acordo com o relatório Segurança Alimentar do IBGE, 52 milhões de pessoas estavam com algum nível de insegurança alimentar no Brasil. No ano seguinte, o Brasil saiu do Mapa da Fome da FAO. “Como resultado direto do programa Fome Zero, o Brasil deixou de ter mais do que 5% da população em condições de fome, e, antes disso, houve também a inclusão da alimentação adequada na Constituição brasileira, isso é uma coisa importante, porque a população pode cobrar a garantia desse direito do Estado, ela deixa de ser uma política ligada a governos e passa a ser de Estado”, explica Blanco.

No entanto, relatório da ONU de 2019 já mostrava indicativos de que o Brasil pode estar retrocedendo e deve voltar a compor o Mapa da Fome da organização. “Os próprios dados do IBGE vêm mostrando um crescimento da extrema pobreza, que a gente chama de pobreza monetária, que é um rendimento que não permite que as famílias tenham acesso às necessidades básicas, como alimentação, vestuário…”, explica Francisco Menezes, economista do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas).

No mundo, de acordo com o Relatório Global de Crises Alimentares 2020 publicado pela ONU, o número de pessoas que enfrentavam insegurança alimentar em 2019 era de 135 milhões de pessoas. E pode duplicar, chegando a 265 milhões no final deste ano, devido à crise do novo coronavírus.

Apagão nos dados

Em julho do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que passar fome no Brasil era uma grande mentira. “Você não vê gente aí pelas ruas com um físico esquelético como a gente vê em outros países pelo mundo”, afirmou. O período era quando, justamente, pesquisadores do tema aguardavam a divulgação da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) do IBGE. “Essa pesquisa é bastante reconhecida, pela própria FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura], como talvez a mais adequada para avaliar a situação de insegurança alimentar”, explica Menezes.

Isso porquê, a POF é a pesquisa mais complexa do IBGE que analisa de forma aprofundada alguns hábitos dos brasileiros, entre eles o da alimentação. No entanto, dois anos depois da realização da pesquisa, os dados ainda não foram divulgados. Ela também vai agrupar o relatório que era vinculado à PNAD sobre insegurança alimentar, segundo o IBGE, por causa da afinidade dos temas dessas duas pesquisas.

De acordo com o instituto, a divulgação está dentro do cronograma, os dados de Consumo Alimentar estão previstos para serem publicados no final de agosto, já os de Segurança Alimentar e Perfil das Despesas da Família ainda não têm data prevista, mas devem acontecer ainda este ano. Tanto os dados de 2009 quanto de 2003 foram divulgados no ano posterior à realização da pesquisa.

Para Menezes, a falta de dados prejudica inclusive o atual momento com a crise do Covid-19. “Permitiria, por exemplo, a gente fazer um mapeamento da fome, porque ela [a pesquisa] é realizada em um número representativo de municípios. Poderíamos, pelo menos, localizar onde estão os bolsões da fome”.

Legenda: Presidente da Caixa Econômica Federal diz que número de pessoas “invisíveis” pode chegar a 50 milhões no Brasil (Imagem:…)

A falta desse mapeamento fez com que o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, chamasse os 42,2 milhões de brasileiros que se cadastraram no Auxílio Emergencial de “invisíveis”.  Ou seja, trabalhadores autônomos e informais que estavam fora dos cadastros de vulnerabilidade social do governo federal, mas que não quer dizer que não estejam numa situação de insegurança alimentar e dependam da ajuda emergencial do Estado.

A fome invisível

Irlaine Coelho (doe aqui – lannycoelho@outlook.com), o marido e três filhos são moradores de Pirituba, bairro da zona norte da capital paulista. A família tinha uma vida confortável antes da pandemia, Irlaine trabalhava em um salão de beleza, o marido e o filho em restaurantes, e a filha como operadora de telemarketing. Os pais e a filha ficaram desempregados e o filho está afastado, e deve receber no próximo mês auxílio do INSS. Irlaine e o marido solicitaram o Auxílio Emergencial, mas ambos foram negados com algumas justificativas, entre elas a de que ela não era chefe de família, sendo que a solicitação não foi feita nessa modalidade. Refizeram o pedido, que continua em análise.

A família carioca se mudou para São Paulo há cerca de um ano, sem rede de apoio familiar aqui, a insegurança se vão ou não comer é constante. No dia que nos falamos por telefone, eles tinham comido arroz com ovo, e para render, tinham que escolher uma das refeições do dia. Além disso, o valor do aluguel de abril foi coberto com o depósito feito no início do contrato. “A fome chega para todos, já passei aperto, mas nunca pelo que estou passando, nem teto a gente sabe se vai ter no mês que vem”. Até a última quarta-feira, 22, a Caixa Econômica Federal liberou o Auxílio Emergencial para 31 milhões de brasileiros.

Do outro lado da cidade, na zona sul, Marina Ribeiro é moradora da Vila Roschel em Parelheiros. A situação antes da pandemia já não era boa para ela e a filha de 10 anos. Desempregada, Marina sustentava a casa com bicos de faxina e o auxílio do Bolsa Família de R$ 130. Com a crise, a alimentação agora se resume ao básico: arroz e feijão, que vem da doação de cestas básicas, organizada pelos próprios moradores do bairro (doe aqui – telefone +55 11 94015-1811).  “Essas crianças que tinham uma alimentação de qualidade garantida, estão tendo que comer em casa, e os pais que já estão com a renda comprometida, piora a situação ainda mais”, explica a pesquisadora Lis Blanco.

Marina e a filha Rhaiany; com a crise, alimentação se resume a arroz e feijão (Rhaiany e Marina/Arquivo pessoal)

No Estado de São Paulo, se optou por transferir a verba da merenda escolar para famílias que estão no Bolsa Família ou no Cadastro Único. O programa Merenda em Casa distribui R$ 55 por criança matriculada na rede estadual, no entanto, para conseguir o benefício, a família precisa criar uma conta no aplicativo PicPay. “O recurso recebido provê uma alimentação adequada dentro da escola, porque você tem um baixo custo, mas se você transfere esse recurso para as famílias, ou vai ser tão baixo que elas não conseguem garantir a mesma alimentação que os filhos tinham antes, ou você faz escolhas, como em São Paulo, que optou por transferir para as famílias mais pobres. E as que não estão nesses cadastros que ficaram sem renda de uma hora para outra?”, questiona o economista Francisco Menezes.

Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) receberá aporte extra de R$ 500 milhões por causa da crise do novo coronavírus (ASCOM/Ministério da Cidadania)

Solução vem do campo

Ambos pesquisadores apontam o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que adquiri produtos da agricultura familiar e distribui para escolas e instituições que cuidam da população vulnerável. No entanto, assim como outros programas sociais, o PAA sofreu um enxugamento com a aprovação da PEC 95/2016, que limita o gasto público por 20 anos.

Para Menezes, essa é uma das explicações para o Brasil ter invertido a curva da fome no Brasil. “Eu acho que as políticas macroeconômicas, que se autodenominaram de austeridade, elas geraram desemprego, e isso é claro pelos dados, por outro lado, a emenda constitucional 95, do teto dos gastos, foi provocando um sufocamento das políticas sociais”.

De acordo com o Ministério da Cidadania, responsável pelo programa, o orçamento do PAA caiu 24,8%, sendo R$ 247,61 milhões aprovados em 2019 e R$ 186,17 milhões este ano. Se comparado com 2014, a queda é ainda mais brusca, naquele ano, o orçamento foi de R$ 1,36 bilhão.

Em decorrência da crise do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia Paulo Guedes assinaram no último dia 27, a Medida Provisória 957/2020 que determina um crédito extraordinário para o PPA de R$ 500 milhões.

Os recursos, segundo a Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo (SAF), irão beneficiar cerca de 85 mil famílias de agricultores familiares, além de 12,5 mil entidades e 11 milhões de famílias em vulnerabilidade social que receberão esses alimentos.

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