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De autoria do filho do presidente da República, PEC 80 submete a terra aos apetites do capital, segundo especialista

Por Pedro Biondi, do Brasil de Fato

Numa era em que as mudanças climáticas e o esgotamento das matérias-primas são elementos incontornáveis da equação econômica, as disputas de terras tendem a se acirrar, e caberá aos governos garantir o uso adequado do espaço e dos recursos naturais. Este é o panorama considerado por pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato sobre as tentativas de flexibilização do conceito de função social da propriedade no Brasil. Ao mesmo tempo em que se ameaça a soberania alimentar, segundo eles, caminha-se para a destruição do meio ambiente e para o aumento da desigualdade.

A preocupação mais recente dos especialistas no tema é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 80, apresentada em 21 de maio pelo senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que propõe alterar a base conceitual e jurídica das reformas agrária e urbana.

A proposição do filho mais velho do presidente da República modifica os artigos 182 e 186 da Constituição Federal com base no entendimento expresso de que a propriedade privada constitui um “bem sagrado”. A PEC 80 foi subscrita por 27 senadores e senadoras – um terço da casa, o que já garante sua tramitação.

No artigo 186, de aplicação no contexto rural, a redação mantém os parâmetros atuais: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho, exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Porém, a utilização teria de atender “ao menos” uma das exigências listadas – o que quer dizer que pode ser apenas uma.

O projeto exige que o uso se dê “sem ofensa a direitos de terceiros” e estabelece que eventuais desapropriações sejam feitas por valor de mercado. Estas só poderão ser feitas após autorização legislativa ou decisão judicial. Como justificativa, o senador alega que a propriedade privada “deve ser protegida de injustiças”. O objetivo da emenda seria, assim, “evitar arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação” nos processos de desapropriatórios. A intenção, acrescenta, é “diminuir a discricionariedade do poder público” nessa vigilância.

Às possíveis mudanças legislativas, soma-se o fato de que o próprio ministro Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem submetido a agenda ambiental aos interesses do agronegócio.

De volta aos anos 60 

“Essa emenda nos levaria para antes do Estatuto da Terra”, critica a cientista social Leonilde Medeiros, lembrando que a Lei 4.504, uma das primeira medidas da ditadura militar, já se referenciava na função social da propriedade, em termos bastante próximos aos que seriam inscritos 24 anos depois na Constituição Federal.

A professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) observa que, historicamente, poucas desapropriações se basearam no entendimento pleno da função social da propriedade, mesmo nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula (PT), quando o volume foi muito superior aos demais. O critério determinante sempre foi o da produtividade – cujos parâmetros físicos fixaram-se em 1975 e nunca foram atualizados, apesar de ensaios em diferentes períodos. Medeiros acrescenta que, ao longo dos anos, a opção prioritária do poder público tornou-se a compra de terras mediante acordo com os donos.

Os procedimentos de caráter não-conciliatório são, hoje, uma raridade. Em 2015, às vésperas do golpe contra Dilma Rousseff (PT), não houve nenhum. Sob a presidência de Michel Temer (MDB), houve uma em 2017 e quatro em 2018.

Para Guilherme Delgado, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “se a intenção fosse séria”, a PEC 80 deveria ir na direção inversa à do texto proposto, atualizando o conceito de produtividade ligado ao artigo 186 por uma lógica sustentável de produção. “Ainda mais hoje em dia, na crise climática global, é fundamental que você ligue o conceito de propriedade a questões de interesse geral do país inteiro, do planeta”, analisa.

O economista diz que, em especial nos últimos dez anos, o uso intensivo de água e agrotóxicos tem evidenciado a relevância dos critérios propostos pela Constituição de 1988: não basta que uma terra seja produtiva para que ela cumpra sua função. “A produtividade passa a ser parte do problema. Ser produtivo nas condições de insustentabilidade é um gol contra”, compara o pesquisador. “Precisamos caminhar para uma agricultura sustentável, diversificada, democratizada”.

Integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Kelli Mafort afirma que esses valores são inegociáveis. “Não só a agroecologia, mas também a agrofloresta, em que produção convive com florestas, estão no centro da agenda dos sem-terra e dos trabalhadores assentados, e também da massa dos trabalhadores urbanos”.

Mafort lembra o aumento do uso de agrotóxicos e das intoxicações no seu manejo, bem como os casos de câncer e mortes associados a essas substâncias: “São questões que se encontram na centralidade das necessidades quando a gente pensa hoje em saúde, trabalho, terra e alimentação”. Para a dirigente, considerar esse conjunto não exclui a necessidade da reforma agrária. Pelo contrário, ela mantém-se como um imperativo.

Avanço interrompido

Delgado lembra que, no período FHC, após os massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, foram atingidos os maiores números de desapropriações. No segundo mandato do tucano, foram 287,9 mil. No primeiro governo Lula, o ritmo manteve-se acelerado, com 381,4 mil desapropriações, combinadas a uma série de ações para melhorar as condições dos assentados e da produção. Após a reeleição do petista, deu-se mais ênfase a essas melhorias e a políticas de compra, o que teria se estendido aos primeiros quatro anos de Dilma. A reversão começa no segundo mandato da petista, segundo a análise do pesquisador, e se aprofunda com Temer e Bolsonaro.

No governo Temer, o dever constitucional de prover terra para quem precisa foi mantido “inerte”, e agora a intenção seria descartá-lo. “A lição que a gente tira: há um sujeito oculto atrás disso”, pontua o economista, analisando que, conforme a correlação de forças se alterou, o pacto com o agronegócio sufocou a “concertação” que contemplava também a agricultura familiar. Delgado identifica os ruralistas entre os mentores do golpe que derrubou Dilma, ao lado dos sistemas financeiro e midiático.

“A reforma agrária é uma questão nacional e depende do rompimento desse pacto. Na hora em que esse governo maluco cair e se instaurar um governo de salvação pública, não podemos repetir os erros cometidos”, alerta.

Pressões

Para a professora Leonilde Medeiros, a Lei 13.465, conhecida como Lei da Grilagem, que entrou em vigor no fim do governo Temer, é um elemento complicador quando se pensa em reforma agrária. A nova legislação garantiu agilidade na titulação dos lotes, dando prioridade à emissão de títulos definitivos. O produtor ou produtora pode vendê-los após dez anos, ao passo que, na Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), a negociação da terra e de suas benfeitorias exige anuência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O MST e outros movimentos populares do campo defendem a titulação coletiva, com contratos de CDRU para os assentados e assentadas.

“Houve uma verdadeira corrida de titulação, com técnicos do instituto sendo premiados por colaborar com essa aceleração”, recorda Medeiros. “Começou-se a titular assentamentos que nem sequer cumpriam as condições que a legislação estabelece, de um padrão mínimo de desenvolvimento que lhe permita caminhar pelas próprias pernas. Por esse caminho, essas terras voltam ao mercado”, lamenta.

Na análise da pesquisadora, o resultado é a fragilização dos acampamentos e assentamentos da reforma agrária.

Kelli Mafort, do MST, sobe o tom ao citar a Lei da Grilagem. “Ela legaliza em toda a Amazônia Legal – estamos falando de quase metade do Brasil – propriedades de até 2 mil hectares. Terras públicas da União que deveriam ser repassadas para a reforma agrária seriam entregues para grandes grupos de empresários com abatimentos de até 90%”, critica. A dirigente também chama atenção para o estímulo ao pagamento direto, em vez de títulos da dívida agrária, na aquisição de terras pelo Incra. “Isso coloca o órgão como operador de mercado, como balcão de negócios”, resume.

Produção de alimentos em acampamento do MST em Rio Bonito do Iguaçu (PR). (Foto: Wellington Lenon)

“Essa lei e a PEC 80 estão em consonância com uma necessidade do capital, em relação ao nosso país, de um reordenamento fundiário. A intenção é tornar nossas terras rurais e urbanas subordinadas a esses interesses”, acrescenta Mafort. Ela reconhece que o cotidiano fica ainda mais duro para as famílias acampadas nesse contexto. “Apesar disso, as pessoas se mantêm no acampamento porque é um lugar de moradia, é um lugar de garantia de alimentação e, muitas vezes, de plantio. E é um lugar onde elas podem ter convivência comunitária”, diz.

Objetivo oculto?

“Se a reforma agrária recebia algum impulso, mesmo notoriamente insuficiente, dos governos anteriores, a sua execução tem ficado parada na tramitação administrativa ou na judicial das desapropriações”, constata o advogado Jacques Alfonsin, que assessora movimentos populares. “A lerdeza presente, tanto nos processos administrativos que preparam as desapropriações de terra, como nos tribunais, depois que elas são ajuizadas, é muito grande”.

Ex-procurador estadual no Rio Grande do Sul, ele inclui nessa conta o empenho da doutrina jurídica posterior ao Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 2015) em aprimorar os meios de defesa de direito sob ameaça ou já violado. Assim, conforme sua leitura, juristas vêm procurando fazer prevalecer na doutrina jurídica – e juízes priorizam em suas decisões – o lado conservador de instrumentos como as tutelas de urgência, que buscam resguardar direitos fundamentais diante do risco de danos. No caso da ocupação de uma fazenda, por exemplo, uma aplicação seletiva e elitista tenderia a considerar o risco de estragos em construções ou pastos em detrimento da segurança alimentar e mesmo da integridade física dos sem-terra.

Alfonsin conclui que, a exemplo de outras leis e normativos, a PEC 80 tem o objetivo oculto de garantir a ineficácia de instrumentos que oficialmente busca proteger e aperfeiçoar. Ele destaca que, para quem vive em sociedade, a própria condição individual não seria possível sem a participação de outras pessoas. E, por ser essencial à vida de todas e todos, um bem como a terra interessaria diretamente a todas e todos. “Existe todo um território não dominial, portanto, que deve ser respeitado em cada pedaço de terra, bastando lembrar-se o ar, o clima, a fauna, a flora, a água, enfim, todas as condições de vida em relação às quais o proprietário tem uma obrigação superior ao seu interesse próprio”, argumenta.

Quem age em desacordo com tal responsabilidade infringe, portanto, essa função social. “Uma infração tão grave que se tornou devastadora no mundo de hoje, a ponto de todas as atenções da humanidade consciente deste risco estarem voltadas agora para a defesa e a preservação do que ainda nos sobra de meio ambiente saudável no planeta todo”, pontua. O mesmo valeria para o interesse social difuso de acessar os bens essenciais à satisfação de necessidades vitais como alimentação e moradia – aquelas protegidas pelos direitos humanos fundamentais sociais.

Em nota enviada à reportagem, o senador Flávio Bolsonaro alegou que as mudanças pretendidas pela PEC 80 diminuiriam o número de conflitos, beneficiando todos os interessados. “A função social da terra é importante, mas não pode ser desculpa para desrespeitar algo fundamental como o direito à propriedade”, diz o texto, prometendo maior “razoabilidade” aos processos. “Garantir um procedimento mais adequado vai, inclusive, diminuir a litigiosidade e reduzir potenciais prejuízos para quem for desapropriado e para quem se beneficiar dessa operação”.

O Brasil de Fato pediu ao Incra e ao Ministério da Agricultura posicionamentos sobre a PEC 80, a violência no campo e a possibilidade de aprimorar a regularização fundiária, mas não obteve resposta. As instituições também não enviaram os dados da reforma agrária em 2018. Com exceção da quantidade de decretos desapropriatórios, eles ainda não constam nas séries históricas no site da autarquia.

Exemplos de fora

Conselheiro da organização não governamental (ONG) Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, Alfonsin chama atenção para o caráter das Constituições aprovadas neste século por três nações vizinhas: Bolívia, Equador e Venezuela. “Se tivéssemos a humildade de olhar para os lados, constataríamos que elas procuram resgatar a terra das prisões que lhe impõem os apetites do capital e do mercado. A Constituição da Bolívia, por exemplo, trata a terra como mãe – ela é sujeito de direito”.

Em relação ao vizinho, governado por Evo Morales, Medeiros ressalta o autorreconhecimento como país interétnico. Ela também cita como exemplo o apoio estatal à agricultura familiar em diversos países europeus, com o fortalecimento da identidade regional dos produtos pela criação de selos de origem.

Delgado aponta França, Alemanha, Itália e Portugal como experiências exitosas e nota que a adesão a uma política comum há seis décadas (no caso dos três primeiros) fez com que formulassem seus planos agrícolas e agrários em consonância com o Acordo de Paris e outros tratados assinados pela União Europeia.

(Foto: Agência Senado)

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