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‘Querem colonizar também nosso pensamento, como se existisse apenas uma forma de pensar; somos impedidos de levar para os cursos a nossa visão como povo indígena, não há abertura para outras discussões na academia’, afirma Rodrigo Mariano, indígena Guarani Mbya

Por Daniela Silva Huberty, da Cardume(*)

Na história, nas pessoas, no trabalho sentimos e vivemos, ainda hoje, diversos aspectos coloniais. Para os povos indígenas, essa colonialidade é ainda tão perversa quanto o foi antigamente. “O que conhecemos sobre o país é uma versão hegemônica criada dentro da academia, a qual afirma que tudo começou em 1500 e apenas são lembrados nomes de homens brancos. Não se considera a diversidade linguística e de povos indígenas que aqui viviam”, afirma Edson Kayapó, liderança e ativista do movimento indígena e docente no Instituto Federal da Bahia (IFBA) campus Porto Seguro e no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

O processo histórico colonizador imposto aos povos indígenas deixou e ainda deixa marcas na forma como nos relacionamos e trabalhamos com as pessoas indígenas. Rodrigo Mariano, indígena Guarani Mbya da comunidade Tekoa Ka’aguy Porã, Terra Indígena Guarita (Erval Seco/RS), e estudante do curso de Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), afirma que esse processo é naturalizado e reproduzido de várias formas. “Fomos colônia e continuamos sendo, principalmente em relação aos povos indígenas, devido às várias tentativas genocidas de apagar toda a nossa existência, cultura e conhecimentos tradicionais. A colonização acabou com muitas maneiras de resistir dos nossos povos e ainda somos invisibilizados”, reitera. Como exemplo, o estudante traz a vivência de estar em um espaço universitário, ocupado majoritariamente por pessoas não indígenas. “Querem colonizar também nosso pensamento, como se existisse apenas uma forma de pensar. Somos impedidos de levar para os cursos a nossa visão como povo indígena, não há abertura para outras discussões na academia”, afirma Rodrigo.

Da esquerda para direita: Rodrigo Mariano, indígena Guarani Mbya da comunidade Tekoa Ka’aguy Porã, Aline Ngrenhtabare Lopes Kayapó e Edson Kayapó | Foto: Daniela Silva Huberty

É preciso lembrar que, até 1500, os milhares de povos indígenas que viviam no território que hoje chamamos de Brasil tinham seus espaços de vida e reprodução cultural assegurados. É a partir da invasão europeia que se dá início a um violento processo de colonização sobre esses povos, desenvolvido, principalmente, por meio da imposição da cultura e dos costumes europeus e cristãos, da expulsão das comunidades indígenas de seus territórios, da escravização e do extermínio de milhões de pessoas indígenas. Dessa forma, o espaço que até então era dos povos indígenas passou a não lhes pertencer mais devido ao interesse pela exploração das riquezas e do próprio território. “Mas, como dizem nossos ancestrais, sempre estivemos aqui, estamos e estaremos”, ressalta Edson.

Muitas situações retratam a colonialidade ainda em 2019. Isso é visível, por exemplo, nos diversos preconceitos construídos e ainda disseminados diariamente pela sociedade não indígena em relação às pessoas e à cultura indígena. Entre eles, a ideia de que “índio é preguiçoso”, “índio é do passado”, “índio é incapaz”, “são todos iguais”, “lugar de índio é na aldeia” e que “há muita terra pra pouco índio”. Além de ser necessário desconstruir esses equívocos e estereótipos criados em torno dos povos indígenas, para avançar no debate é preciso reconhecer o quanto a cultura indígena contribuiu e contribui no cotidiano e nos costumes das pessoas não indígenas. Mais do que isso, é preciso dar visibilidade às pessoas indígenas; afinal, o preconceito que sofrem também vem do desconhecimento da sociedade.

Superar a visão eurocêntrica e o padrão hegemônico imposto pela colonialidade acarreta buscar um pensamento e uma prática decolonial. Edson acredita que isso pode ser feito por meio de um diálogo intercultural que seja crítico. “Estamos aqui desde tempos imemoriais. Esse é o momento de audibilidade e visibilidade dos grupos que estão silenciados, mas é preciso que ele aconteça com protagonismo e um novo posicionamento político e acadêmico. Vejo uma possibilidade potencial de avançarmos em termos políticos com nossas alianças que dá otimismo e força. Não basta constatar que somos diversos, é preciso repensar o caminho”, diz.

Aline Ngrenhtabare Lopes Kayapó, escritora e ativista dos movimentos das mulheres e dos direitos dos povos indígenas, lembra que a interculturalidade sempre ocorreu entre os diferentes povos indígenas e ainda é muito presente. “A presença colonizadora foi muito depois, já tínhamos relações. A palavra interculturalidade surgiu depois, mas é muito antiga para nós”. Para ela, a atuação decolonial deve partir da sociedade não indígena. “Decolonialidade já fazemos há séculos, por isso quem deve fazê-la agora não são os indígenas e sim quem colonizou. A sociedade está decadente e seguirá assim enquanto não ouvir os povos indígenas e nós nos propomos a um diálogo respeitoso, coerente e cheio de amor”, garantiu.

Rodrigo lembrou ainda que a articulação dos próprios povos indígenas foi essencial para que fossem obtidas diversas conquistas significativas aos povos originários – como o artigo 231 da Constituição Federal de 1988, o qual rompeu com a lógica da tutela indígena e reconheceu a organização social, os costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas, além do direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Por isso, o estudante entende que é preciso superar o colonialismo a partir da vivência daquelas e daqueles que sempre estiveram em posição de submissão. “Aos poucos, se começa a perceber que é necessária outra atuação em relação aos povos indígenas: não de assistência, mas que legitime as crenças e culturas dos povos”, afirma.

Esse tipo de atuação deve primar o trabalho das ONGs e dos órgãos indigenistas – instituições que trabalham junto aos povos indígenas na promoção de políticas e direitos indígenas: ações que privilegiem o protagonismo indígena e a ocupação dos espaços por pessoas indígenas, reconheçam sua história mesmo antes de 1500, expressem a diversidade dos povos e suas culturas, tenham muito diálogo e trabalhem com a perspectiva da atual conjuntura. A indigenista e assessora de projetos do COMIN – Conselho de Missão entre Povos Indígenas, Kassiane Schwingel, afirma que é preciso diferenciar inclusão e integração. “Incluir os povos indígenas não é fazer com que abandonem seu modo de ser para estar em nosso mundo: isso é integrar”, ressaltou. Por isso, o desafio é pensar como incluir e acolher esses povos respeitando sua diversidade, culturas e os diferentes modos de viver. Sandro Luckmann, indigenista e assessor de projetos na organização, reitera o pensamento: “É preciso acolher e respeitar, tendo disposição para aceitar o outro”.

O COMIN assessora e coordena trabalhos juntos aos povos indígenas desde 1982, tendo como compromisso apoiar as prioridades colocadas pelas comunidades indígenas, respeitando seu jeito de ser e sua cultura. Para isso, atua criando parcerias e dando apoio nas áreas de educação, saúde, terra, organização, sustentabilidade e defesa de direitos a partir de uma equipe interdisciplinar dividida em quatro campos de trabalho: Acre e sul do Amazonas, Rondônia, leste e norte de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A organização atua também por meio do Programa de Formação e Diálogo Intercultural e Inter-religioso (PROFORDI), que tem o objetivo de mostrar a realidade dos povos indígenas às pessoas não indígenas. Vinculado à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), o COMIN é atualmente um dos programas da Fundação Luterana de Diaconia (FLD) – associada da Associação Brasileira de ONGs (Abong).

*Aline Ngrenhtabare Lopes Kayapó, Edson Kayapó e Rodrigo Mariano participaram, nos dias 22 e 23 de outubro, como assessora e assessores do Seminário de Formação Interna 2019 do COMIN que teve como tema “(De)colonialidades: que atuação queremos?”.

(Foto: Daniela Silva Huberty)

(*)CARDUME – Comunicação em Defesa de Direitos é uma rede que reúne organizações e movimentos da sociedade civil para ações articuladas de comunicação que potencializem a promoção e defesa de direitos e bens comuns.

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