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Judiciário acumulou quase 700 processos sobre conflitos nessas áreas só em 2017. Lideranças de etnias se dizem em clima de tensão e risco de confrontos criados por ruralistas

Por Hylda Cavalcanti, da Rede Brasil Atual

As perspectivas reais de conflitos entre índios e ruralistas, depois da decisão do governo Bolsonaro de não mais demarcar terras indígenas, têm preocupado especialistas, parlamentares, lideranças e governos de vários estados. Teme-se que uma “bomba-relógio” esteja prestes a explodir. Além dos embates que costumam ser observados com frequência, o país tem mais de 700 mil indígenas vivendo em 721 áreas reconhecidas pela União como terra indígena (TI), divididos em 254 povos. Há ainda 129 áreas com o processo de demarcação em ritmo adiantado e 116 são alvo de estudos para outras ações de demarcação.

Enquanto o governo paralisa este trabalho, caminham em ritmo contrário, mas com números proporcionais, os processos ajuizados no Judiciário envolvendo conflitos indígenas. Só em 2017, foram 699. Os dados referem-se a processos ajuizados em todos os tribunais do país e são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que ainda não concluiu levantamento referente ao ano passado.

Os processos estão separados em três tipos. Os que tratam de ações sobre violação de direitos indígenas de um modo geral são 212 no total (aqueles que, apesar de passarem pela questão da demarcação, tratam de reclamações sobre ausência de cuidados básicos como saúde e educação, por exemplo).

Os crimes relacionados a violação do direito de crianças e adolescentes dessas tribos computam 214 processos. E outros 273 são referentes a conflitos de terras.

Em junho do ano passado, o CNJ publicou um provimento que regulamenta regras para registro de terras indígenas, como forma de facilitar o andamento dos registros após as demarcações.

A norma foi negociada com as corregedorias dos tribunais estaduais e duas outras entidades ligadas a cartórios de registro imobiliário. Surgiu a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) para facilitar a fiscalização desses registros e a observação de alguma morosidade ou devolução de documentos feita de forma proposital, mediante denúncias de acordos entre donos de cartórios, empresários e produtores rurais.

A principal queixa era que a Fundação Nacional do Índio (Funai) enfrenta dificuldades para registrar essas áreas, mesmo quando são apresentados requerimentos bem fundamentados para subsidiar a solicitação. Há muitos casos, até hoje, de registros negados e pedidos de alteração pelos mais diversos motivos, numa forma velada de protelar ainda mais a situação dos índios, conforme reclamou o advogado Carlos Albuquerque Santiago, de Brasília, que já atuou em alguns desses processos.

“O provimento estabelece prazos e documentos que devem ser apresentados na entrega do requerimento para abertura da matrícula, quando não houver registro anterior, ou de alteração, no caso da existência de matrícula prévia. Entre eles está a certidão de conclusão de processo administrativo expedida pelo órgão competente da União, planta e memorial descritivo do perímetro da terra indígena demarcada e homologada e a certidão de conclusão de processo administrativo expedida pelo órgão competente”, explicou, na época da edição do provimento, o juiz auxiliar do CNJ Márcio Evangelista.

Os cartórios também ficaram proibidos a partir dessa regra, de pedir ou exigir apresentação de certidão dos assentos existentes em sua própria serventia, o que até então vinha acontecendo. “Com isso, as corregedorias de Justiça locais poderão fiscalizar com mais segurança os registros, assim como a celeridade e precisão de cada um deles”, explicou o magistrado.

Invasões 

Um dos casos que mais tem preocupado indigenistas é o conflito existente no Oeste do Paraná. No ano passado, um grupo de trabalho chegou a ser convocado pela Funai e o Ministério Público para realizar laudo detalhado sobre a demarcação das terras com prazo de 12 meses. O conflito envolve 14 comunidades indígenas Avá Guarani, ocupantes de territórios no entorno das cidades de Guaíra e Terra Roxa.

Desde que os índios retornaram ao local, onde existia antes a aldeia Marangatu, 14 áreas foram recuperadas, mas a situação conflituosa entre poderes Executivo e Judiciário está equilibrada e “travada” na área. Existem 15 ações de despejo emitidas contra os famílias indígenas que não foram cumpridas por intermediação do Ministério Público. O MP aguarda laudo para servir de base a um acordo. Enquanto isso não acontece também não podem ser feitas novas ocupações pelos índios.

“É uma situação muito complicada, muito próxima de um confronto. Eles estão esperando o resultado desse laudo em elaboração, só que com o novo governo não se sabe se o laudo representará algum andamento no caso, uma vez que o presidente da República foi taxativo”, diz Jaíra Pascoal, integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

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O direito a demarcação das terras das populações originárias são uma obrigação constitucional

Em Mato Grosso do Sul, caso semelhante é observado por índios da etnia Guarani-Kaiowá. Eles vivem, segundo informações do Cimi, em clima de suspense, temendo alguma ação por parte de proprietários de terra no sentido de expulsá-los a qualquer momento.

A situação temida pelos Guarani Kayowá já começou a acontecer no Pará e no Amazonas. Na quarta-feira (16) índios desses dois estados denunciaram à Funai que existem áreas sendo desmatadas desde o início da semana por cerca de 40 pessoas armadas, na região onde vive a etnia dos Uru Eu Wau Wau. A região tem 1,8 milhão de hectares e sete aldeias.

Nas últimas horas foi a vez do Maranhão ser o alvo mais próximo de um grande confronto. Lá, onde está localizada a terra indígena dos Awá Guajá, os índios denunciaram à Funai a invasão da área que ocupam. O caso no Maranhão é considerado o mais grave porque envolve uma área já demarcada.

Motivo pelo qual está sendo acompanhado de perto pelo secretário estadual de Direitos Humanos do Maranhão e por equipes da Polícia Federal. A presidência da Funai, em Brasília, divulgou uma nota dizendo que estão sendo adotadas as providências necessárias para retirar os invasores dessas terras e confirmando a demarcação feita em 2014.

O secretário maranhense de Direitos Humanos, Francisco Gonçalves, considerou a invasão de agricultores à área, que há anos é tida oficialmente como território indígena, consequência imediata da decisão do Governo Federal de rever as atribuições da Funai e parar os processos de demarcação no país.

“A situação legal da terra em questão já foi pacificada. Esse pessoal (os invasores dos últimos dias) acha que diante do novo ambiente político criado no país, será possível rever a decisão tomada em 2014 e conseguir voltar a ocupar as terras. Precisam avaliar que a decisão foi do Judiciário, não do Executivo. Além disso, é uma decisão que segue todos os protocolos internacionais de defesa e manutenção dos povos indígenas em suas terras de origem”, explicou Gonçalves.

Marco atemporal

Um dos grandes problemas que os índios vinham enfrentando desde o ano passado foi a questão do “marco temporal”, tese assinada pelo então presidente Michel Temer a partir de parecer da AGU. Sugere que só deveriam ser demarcadas as terras que estivessem sob posse das comunidades indígenas em outubro de 1988, quando foi promulgada a  atual Constituição Federal.

O “marco temporal” leva em conta ponto de vista adotado pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, durante o julgamento de caso referente à Raposa Serra do Sol. Mas no julgamento os ministros explicaram que o entendimento dizia respeito apenas ao caso Raposa, não devendo ser observado em outras situações.

“Muitas terras indígenas estavam invadidas por ruralistas no período da promulgação da Constituição, não dá para aceitarmos a tese. Sem falar que essa possibilidade, ao lado da situação apresentada hoje pelo presidente, que nada mais é do que uma tentativa de entregar estas terras para o agronegócio, coloca o país sob um risco grande de ebulição desses conflitos”, afirma a líder indígena Sônia Guajajara (candidata à vice-presidência da República nas últimas eleições pelo Psol). Ela integra a coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Para um magistrado do STJ, que preferiu falar em reservado com a reportagem, a demarcação das terras pode até vir a ser retomada, diante dos recuos do governo e da pressão social para ver respeitada a Constituição. O problema, segundo esse ministro, é que só as declarações iniciais do presidente já levam a um clima de demora, atrasos e até burocracias que vinham sendo combatidos há anos e que por si só provocam conflitos.

Nos últimos dias de dezembro, índios da região Norte cogitaram viajar em caravana a Brasília, com seus trajes de guerra, para protestar na Esplanada dos Ministérios durante a posse de Bolsonaro. Desistiram após terem sido aconselhados por parlamentares e lideranças a evitar esse confronto.

Mas prometem fazer essa mobilização assim que forem iniciados os trabalhos do Congresso, em fevereiro. Estão se articulando, também, em busca do apoio de alguns governadores.

“Vamos resistir”

“Não vai ser fácil nosso trabalho, mas vamos resistir”, afirmou a primeira índia eleita deputada federal, a advogada Joênia Batista de Carvalho (Rede-RR), que assume uma vaga na Câmara na legislatura que se inicia em fevereiro. “Vivemos um momento crítico, em que garantias constitucionais estão em risco. Não só para os povos indígenas, cujo direito de terem suas terras demarcadas e protegidas é descumprido, mas para os direitos sociais em geral. Há uma forte tentativa de emplacar retrocessos e vamos combater esta tentativa”, destaca.

Por enquanto, o governo tem evitado se manifestar sobre o tema, até porque o Palácio do Planalto ficou de divulgar na próxima semana as ações do Executivo para os próximos 100 dias em todas as áreas.

A Funai, cujo presidente assumiu nesta quinta-feira (17) sem se manifestar a respeito, saiu do Ministério da Justiça e agora faz parte da alçada do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, enquanto as demarcações de terras indígenas saíram da alçada da Funai. Daqui por diante, passarão a ser feitas pelo Ministério da Agricultura.

(Foto: Fábio Nascimento/MNI)

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