Por unanimidade, os conselheiros do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) votaram na última quinta-feira (20/9) pelo reconhecimento do Sistema Agrícola Tradicional das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP)
Maravilhados com a paisagem que se via das janelas da sala de eventos do Forte de Copacabana (RJ), Oswaldo dos Santos e dona Elvira Morato aguardavam esperançosos o início da reunião dos conselheiros do Iphan, na última quinta-feira (20/9), que julgaria o processo de reconhecimento do Sistema Agrícola Tradicional (SAT) das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (sudeste do Estado de São Paulo). Oswaldo, do quilombo Porto Velho, em Iporanga, e dona Elvira, do quilombo São Pedro, em Eldorado, vestiam, orgulhosos, as camisetas da Campanha Tá na Hora da Roça, lançada em meados de agosto para pressionar as autoridades do governo paulista a agilizar as licenças ambientais para abertura de roças – que chegam sempre atrasadas, impedindo o plantio e acarretando a perda de sementes, e ameaçando a segurança alimentar.
Ao final, comemoraram, felizes e emocionados, o reconhecimento do SAT, por parte dos conselheiros. Uma vitória na luta das comunidades pelo fortalecimento de sua cultura, ligada diretamente ao modo de fazer as roças de coivara, que integram o sistema, e são parte central do manejo dos recursos naturais do Vale do Ribeira. Há mais de 300 anos as comunidades quilombolas promovem a conservação da Mata Atlântica nessa região, seguindo o legado de seus ancestrais.
O processo foi relatado pela antropóloga e conselheira Manuela Carneiro da Cunha que ao término da leitura pediu o reconhecimento e a inclusão do SAT no Livro dos Saberes do Iphan – modalidade de bens culturais ancorado no Decreto nº3551 de 2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), além de consolidar o Inventário Nacional de Referências Culturais (INCR). (Veja quadro no final do texto).
Em seguida, os conselheiros fizeram suas observações e um debate iniciado pelo conselheiro embaixador Marcos Azambuja questionou se o reconhecimento, demandado por 19 comunidades quilombolas, valeria para as mais de 80 existentes no Vale do Ribeira. Ficou esclarecido que a prática tradicional é que estava sendo reconhecida e valia, assim, para todos os quilombos que a praticam na região. Por unanimidade, a presidente do Iphan, Kátia Bogéa, proclamou o SAT como patrimônio cultural imaterial brasileiro, a ser inscrito no Livro dos Saberes.
Os representantes quilombolas agradeceram aos conselheiros e deram seus recados. Oswaldo contou que na juventude deixou sua comunidade em busca de oportunidades de trabalho na cidade. Não gostou da experiência e voltou alguns anos depois. Para ele, o reconhecimento do SAT como patrimônio cultural imaterial brasileiro levanta a autoestima dos quilombolas e vai estimular os jovens a serem agricultores e a permanecer em suas comunidades.
Dona Elvira Morato não fez por menos. Do alto dos seus 70 anos, emocionada, ela veio ao microfone para dizer que o reconhecimento vai resultar em políticas públicas para as comunidades. “Nós corremos atrás e queremos nossos direitos respeitados e as nossas roças tradicionais que vêm de muito, muito tempo. É delas que a gente vive, é da nossa cultura”, disse. “Queremos que os grandes governantes, principalmente nessa época de eleição, olhem para as pessoas que vivem no mato, que são seres humanos. Não é fácil viver no mato e não conseguir plantar um pedacinho de terra”, desabafou. “Se nós não temos dinheiro, nós plantamos verdura, milho, arroz, feijão e temos tudo. Se não liberar o plantio não temos como viver” [referindo-se ao atraso recorrente nas licenças ambientais para fazer roça concedidas pelo governo do Estado de São Paulo].
Modo de vida é reconhecido pela sociedade
Também acompanharam o julgamento a superintendente do Iphan em São Paulo, Maria Cristina Donatelli Pinto e o técnico Marcos Rabello – ela foi responsável por supervisionar o processo e ele acompanhou todas as etapas da confecção do dossiê que embasou o pedido de reconhecimento a partir de 2014. “O registro das práticas tradicionais das comunidades quilombolas tem grande abrangência na manutenção do modo de vida dos quilombolas. Ter esse registro é uma vitória das comunidades. Eles vão se sentir representados e ver seu modo de vida reconhecido pela sociedade geral como patrimônio nacional”, avaliou a superintendente. “Espero que isso reforce as condições que eles tenham para se manter. Nosso grande sentimento é este, de poder colaborar para que as comunidades se mantenham vivas e se aprimorando”.
Rabello passou a acompanhar o processo na metade do caminho. “Já havia um trabalho anterior que foi o inventário quilombola e originou essa demanda pelo registro do SAT. Os quilombolas construíram o processo a partir dos bens culturais associados ao fazer roça”, explicou. “O trabalho técnico de campo foi feito pelo ISA, nós ficamos no acompanhamento. O material produzido é de excelente qualidade, ficou bem caracterizado como bem cultural para patrimonialização. E as propostas de salvaguarda, daqui para a frente, para que o sistema continue vigente, já aparecem no dossiê de maneira bem explicada”.
A relatora do processo, antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, disse à reportagem do ISA que a importância no reconhecimento dos sistemas agrícolas em geral e em particular das populações tradicionais, como são os quilombolas do Vale do Ribeira, é enorme. “Implica também a reabilitação da roça de coivara como técnica tradicional, pela sua escala, pelos cuidados que envolve através do pousio e recuperação do solo, e pela contribuição para a diversidade agrícola, porque a agrobiodiversidade é guardada pelas comunidades tradicionais, grandes produtoras da diversidade agrícola. Por tudo isso e sobretudo para defender os quilombolas, que estão sujeitos a muitas ameaças – monoculturas, invasões, mineração, Pequenas Centrais Hidrelétricas – e que muitas comunidades sequer estão reconhecidas pela Fundação Palmares e muito menos tituladas pelo Incra, o reconhecimento deverá fortalecer sua importância e sua relevância.”
No caso específico dessas comunidades, Marcos Rabello destacou que resta agora a questão do ‘fazer roças’ pelos quilombolas, ainda não bem afinada com o governo do Estado de São Paulo. “O reconhecimento como patrimônio cultural brasileiro vai fortalecer os diálogos com os órgãos ambientais paulistas de forma que sejam produtivos para os dois lados”.
Para os quilombolas, o reconhecimento do SAT será uma grande contribuição para a Campanha Tá na Hora da Roça, que cobra do governo paulista a concessão de licenças para fazer roças no tempo certo, sem atrasos.
Agrobiodiversidade e mudanças climáticas
Para a coordenadora do Programa Vale do Ribeira, do ISA, Raquel Pasinato, além de representar uma força na luta das comunidades quilombolas do Vale ao valorizar suas práticas tradicionais, o reconhecimento do SAT significa garantir a permanência nos territórios e contribuir para que políticas públicas cheguem aos quilombos. “Assim, irão conseguir manter seu modo de vida, sua cultura. Isso se estende a outras comunidades quilombolas e tradicionais do Brasil e do mundo, porque graças à diversidade agrícola que elas guardam e que resulta em diversidade alimentar, com muitas variedades de sementes, elas se tornam aliadas fundamentais no enfrentamento das mudanças climáticas”.
A antropóloga Anna Maria Andrade, responsável pelo Inventário Cultural dos Quilombos do Vale do Ribeira (que começou em 2009 e demandou três anos de trabalho de campo, originando a demanda das comunidades pelo reconhecimento do SAT), finalizou o dossiê enviado ao Iphan, iniciado pelo também antropólogo Alexandre Kishimoto e com a colaboração de diversos pesquisadores da universidade sobre os elementos que compõem as práticas agrícolas na Mata Atlântica. “Percebemos que o SAT era a base de sustentação de outras práticas, celebrações, lugares, espaços de valorização dos produtos agrícolas, e o tipo de trabalho feito nas roças era fonte de sociabilidade. Uma vez definido que o SAT era o bem cultural a ser registrado seguimos em frente na patrimonialização. Revisitamos o inventário e todos os bens para aprofundar essa relação e sair desse discurso que criminaliza a roça de coivara considerando-a prejudicial à floresta e a todos os processos ecológicos daquele meio ”, contou.
Anna Maria espera que o reconhecimento fortaleça internamente as comunidades contribuindo para que os jovens permaneçam nos territórios. Raquel Pasinato faz coro. “As práticas tradicionais como os mutirões, por exemplo, são salvaguardas que deverão ser repassadas para os jovens, é a transmissão de saberes”, explicou. “Sendo patrimônio cultural agora, as comunidades e o Grupo de Trabalho (GT) da Roça, composto por representantes de vários quilombos da região, terão o Iphan mais próximo. Entre outras ações propostas, o GT decidiu que será importante elaborar material didático a ser distribuído nas escolas das comunidades para que as crianças saibam o que é o SAT”. Dona Elvira concorda que a valorização das roças, por meio do reconhecimento, vai contribuir para a fixação das novas gerações no território e fez questão de ressaltar aos conselheiros: “Se não plantar, a gente não come. A comunidade vive da roça. Todos precisamos da roça. Não queremos que nossos jovens morram baleados nas favelas das cidades”, concluiu, aludindo à busca por empregos e trabalho que empurra a juventude para uma vida difícil nas periferias urbanas.
(Foto: Marília Garcia Senlle – ISA)