Na quarta-feira 28, os trabalhadores paulistas foram às ruas contra o ajuste fiscal do governo federal, mas marcharam cada qual com sua turma. Apesar de unidas na crítica às medidas de austeridade, as centrais sindicais divergiram quanto ao tom dos ataques ao “pacote de maldades” do ministro Joaquim Levy. Em um ato unificado na Avenida Paulista, liderado por um caminhão de som a propagar o contraste entre a Força Sindical e a Central Única dos Trabalhadores, o grupo de Paulinho da Força, aliado de Aécio Neves nas eleições do ano passado, não poupou o governo. “Dilma mentiu, a vaca tossiu”, gritavam os integrantes do cordão laranja, ao lembrar a promessa da presidenta durante as eleições de não mexer, “nem que a vaca tussa”, em direitos e benefícios sociais. A Força chegou a invadir o pátio do prédio da Petrobras na Paulista, enquanto lideranças pediam a demissão da atual direção da estatal. Os integrantes da CUT, ligada historicamente ao PT, dispersaram-se. Unificado, o ato terminou dividido.
Os sindicatos vinculados à CUT cindem-se entre a defesa do legado petista e o desconforto com as medidas de austeridade propostas no novo mandato. Em meados do ano passado, sindicalistas foram informados pelo então ministro da Fazenda, Guido Mantega, da necessidade de ajustar benefícios, entre eles o seguro-desemprego, o abono salarial, a pensão por morte e o auxílio-doença. Apesar da sinalização pretérita, o governo propôs as mudanças em dezembro de 2014 sem abrir um canal de diálogo com os trabalhadores, nem mesmo com aqueles historicamente vinculados ao PT.
Uma das propostas mais criticadas pelas entidades é a mudança nas regras para o pedido do seguro-desemprego. Anteriormente, o trabalhador poderia requisitar o benefício após receber seis meses de salários do empregador. Em busca de uma economia de 9 bilhões de reais, os ministérios da Fazenda e do Planejamento querem exigir um período mínimo de 18 meses de trabalho para o profissional recorrer ao seguro-desemprego pela primeira vez. Diante da pressão das centrais, o governo estuda diminuir o período de carência. Além do seguro-desemprego, as mudanças nas pensões também assustam. As novas regras para o cálculo podem resultar em um corte de 50% do benefício, no caso de o cônjuge não possuir filhos.
A união contra o ajuste fiscal não esconde as divergências políticas do movimento sindical. Após a passeata, um integrante do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, filiado à CUT e berço político do ex-presidente Lula, disse não ter gostado do que viu. “Bateram na Dilma demais, mal falaram da crise hídrica de São Paulo.” Mesma impressão teve Rafael Marques, presidente da entidade histórica, que defende uma política sindical mais antenada com a realidade local do trabalhador. “A influência política do movimento sindical é concentrada na esfera federal”, analisa. “Precisamos também de uma pauta focada em São Paulo. A crise hídrica fecha empresas e reduz a produtividade industrial.”
Ao evocar a relevância das pautas estaduais e municipais para os trabalhadores, Marques recupera um velho expediente por vezes esquecido pelas entidades sindicais: o vínculo direto com as demandas das fábricas. Foi na construção de uma sólida base de funcionários de montadoras e do setor de autopeças que as greves do ABC floresceram na década de 1970. Funcionário há quase 30 anos na Ford, o sindicalista afirma que o mesmo trabalho de base garantiu o sucesso da greve dos trabalhadores da Volkswagen. Em 6 de janeiro, a montadora demitiu 800 funcionários. Os piquetes de dez dias resultaram na readmissão dos dispensados e no respeito ao acordo de garantia de emprego até 2017. Em um momento sensível para a classe trabalhadora, a vitória do sindicato serve de estímulo às lutas sindicais que afloram no início deste ano.
Ao longo da carreira, Marques testemunhou mudanças importantes na categoria. Seus primeiros contatos com política ocorreram em 1985, na unidade da Villares, que fabrica aços especiais de alta liga. Alguns colegas eram vinculados ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), organização que participou da luta armada e aproximou-se do movimento sindical nos últimos anos da ditadura.
Apesar dos laços com a militância que conviveu com a repressão, Marques considera-se um típico operário dos anos 90. Assistiu, ao longo do governo de Fernando Collor de Mello, à reestruturação produtiva do setor automotivo. Embora lembre com pesar do período da desestruturação da indústria local, o sindicalista testemunhou a substituição do método fordista, baseado na subespecialização dos operários, pelo toyotismo, no qual há maior integração e diversificação das atividades.
Segundo Marques, a multifuncionalidade do metalúrgico atual modificou seu perfil político. Com melhor formação, o operário tornou-se mais crítico e desenvolveu uma consciência histórica aguçada. Os trabalhadores da Volks que entraram após 2006, ano da última greve realizada na montadora, sentiram-se desafiados a resgatar as lutas de 1970, diz. “Muitos queriam reeditar o que os mais velhos fizeram.” A solidariedade marcou a greve. Funcionários da Scania, fabricante de veículos pesados, aderiram mesmo com emprego garantido e reajustes salarias em dia.
A categoria tem sido conduzida de forma pragmática. No caso da greve da Mercedes-Benz, que demitiu 244 funcionários em 6 de janeiro, o movimento abandonou a paralisação por não vislumbrar possibilidade de vitória. A Realpolitik do sindicato contrasta com a ousadia de agremiações com maior trânsito entre os movimentos sociais. Influenciado pelos métodos de ação do Movimento Passe Livre, o Sindicato dos Metroviários pagou um alto preço por não respeitar a determinação legal de interromper uma greve da categoria, em junho do ano passado. Como consequência, 42 funcionários foram dispensados e não foram readmitidos. “Em uma greve que envolve um bem público fundamental, é necessário obedecer aos processos democráticos brasileiros”, defende Marques.
Filiado ao PT, o metalúrgico não deixa de criticar o governo. Embora consiga compreender as razões para o ajuste fiscal, não ficou satisfeito com o encaminhamento das medidas. “Ninguém nega que os nossos programas sociais têm de ter um bom uso”, afirma. “Mas, da forma como foram anunciadas as medidas, no dia 29 de dezembro, nos puseram para correr atrás. Isso nunca é bom.” Apesar das críticas, o sindicalista confia na atuação de Miguel Rossetto, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, para contrabalancear o ímpeto poupador de Levy. Na quinta-feira 29, Rossetto admitiu que o governo poderá rever em parte as alterações nas regras de acesso aos benefícios trabalhistas.
Embora preze o pragmatismo na condução das ações sindicais, Marques entende que falta ao governo manifestar-se simbolicamente em favor dos trabalhadores brasileiros. Segundo o sindicalista, o governo poderia ao menos propor a taxação das grandes fortunas brasileiras, prevista na Constituição, mas jamais aplicada. Apesar de não acreditar na possibilidade de o Congresso aprovar o tributo, seria um gesto para indicar que Dilma quer estender o ajuste fiscal a todas as classes.
Nas fábricas, o que mais incomoda os trabalhadores são os aumentos concedidos ao Judiciário em dezembro de 2014. “Não há um trabalhador que não reclame disso. O ajuste não pode ser apenas do governo. Tem de ser do Estado.” Por conta do arrocho salarial imposto pela ditadura aos trabalhadores, o movimento sindical do ABC tornou-se uma poderosa força de oposição. Diante da perspectiva de recessão, o apoio de sindicatos e movimentos sociais ao governo atual não é imperecível. Muito foi feito pelos trabalhadores nos últimos 12 anos. Resta saber o que os espera nos próximos.
Fonte: Carta Capital