Mataram-no por volta de 1979 ou 80, não se sabe ao certo. Era um jovem de 16 anos, estudante, entregador de marmita e que vivia com seus pais e irmãos em alguma comunidade carente do nosso País. Cenário esse que poderia ser no Rio, São Paulo, Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte. Não perguntaram o seu nome e muito menos pediram identificação. A primeira bala atingiu o ombro esquerdo e a segunda o coração. Os joelhos foram ao solo. Um vermelho rubro inundou as rachaduras daquela estradinha que dava para um pontão. Mataram o Camilo!!! Mataram o Camilo!!! Mataram o Camilo!!!
A notícia logo se espalhou. Todos naquela comunidade, até o outro lado do morro onde o horizonte descansa os olhos, ficaram sabendo rapidamente do acontecido. Quando seu João e dona Maria chegaram, o corpo estava estendido e coberto por um pano qualquer. Ainda ouvia-se pelas ruelas o sonido de ossos quebrando, o estalar da chibata no couro humano, a voz rouca pedindo misericórdia, misericórdia, nada mais que misericórdia e uma dor silenciosa no peito desses pais. Mataram o Camilo! Mataram seus infinitos! Glorificaram a indecência deste País sem justiça.
Camilo é um personagem fictício. Mas a sua história é real. Ela acontece todos os dias, desde que o tempo começou a demarcar as horas e os minutos. Matam-se assim no Brasil há décadas e séculos. Basta ser pobre e negro para não ter direito a ter direitos, a amargar a sua existência como se fosse um cativeiro ao ar livre, onde asas pouco importam quando não se tem o céu para abraçar. Neste País de muitas reticências e idolatrias nas esquinas, matam-se jovens, discriminam as mulheres, enterram-se os miseráveis, humildes e esquecidos, estupram-se a razão e a vida.
A narrativa oficial que nos impuseram do sistema de segurança brasileiro sempre ocultou a verdade. Nunca há mortes de inocentes. Os que morrem são sempre os criminosos e os assassinos. “Eles resistiram à abordagem, não houve escolha, tivemos que reagir. Temos testemunhas”. Essa legitimação jurídica e racista chamada de auto de resistência foi instituída durante o regime de exceção. Naquela época de autoritarismo ferrenho e movimentação nos porões dos palácios, o povo vivia sufocado, na escuridão, sem liberdade e democracia.
Explica o desembargador aposentado, Sergio Verani, em artigo publicado em janeiro deste ano, que o auto de resistência “surge em 1969, com a Ordem de Serviço N, nº 803, da Superintendência da Polícia Judiciária do antigo Estado da Guanabara – depois ampliada pela Portaria E, nº 30, de 6 de dezembro de 1974, do Secretário de Segurança Pública – que “dispensa a lavratura do auto de prisão em flagrante ou a instauração de inquérito policial”. E determina a aplicação do art.292, do Código de Processo Penal, que prevê a lavratura do “auto de resistência” na hipótese específica de resistência à ordem legal de prisão.
O auto de resistência “é a inversão radical da realidade”. Não há indiciamento do agente de segurança que cometeu crime. Ele não pode ser considerado vítima e tão pouco “mocinho” nessa história. Ou seja, o que temos é uma farsa montada em nome da lei. E o pior de tudo isso é que essa marca do regime de exceção e de opressão ainda sobrevive nos dias de hoje, atingindo os Direitos Humanos, em pleno Estado democrático de direito e com a vigência de uma Constituição que é considerada uma das mais avançadas do mundo.
Matam com a destreza de homens do abatedouro, com o fio afiado em pedra úmida. Imagens que nos chegam pelas redes sociais e noticiários da imprensa alertam que algo está muito errado. O assassinato de jovens, principalmente de negros, é algo que está deixando a todos nós aterrorizados. Vidas estão sendo tiradas do convívio dos pais, familiares, amigos, colegas. Ainda estamos chocados com o assassinato de João Pedro, de 14 anos, no Rio de Janeiro e de Guilherme, de 15 anos, na periferia de São Paulo.
A CPI do Senado sobre assassinato de jovens negros, que foi finalizada em 2016, mostrou, já naquela época, que mais de 23 mil jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados no Brasil, por ano. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos. Conforme o Atlas da Violência de 2019, 75,5% das vítimas de assassinato em 2017 eram negras. Houve uma piora da situação em relação a 2016: aumento de 4%. Negros e pobres são as principais vítimas. Somente em São Paulo, mortes provocadas por ações da polícia subiram 53% em abril em comparação ao mesmo período do ano passado. Foram 119 casos, ou seja, um a cada seis horas.
Em 2017, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou o PLS 239/2016, que altera o Código de Processo Penal, suprimindo do artigo 292 o chamado “auto de resistência”. Esse projeto é fruto da CPI sobre assassinato de jovens negros. Pelo projeto, havendo feridos ou mortos no confronto com as forças de segurança, será instaurado inquérito. A proposta está pronta para ser votada no Plenário. A iniciativa assegura, entre outras medidas, a eficaz realização de perícia por meio da preservação dos meios de prova, conservação e exame de vestígios, instaurando procedimentos relevantes para o sucesso da investigação criminal.
Creio que as polícias militares deveriam inverter a lógica de atuação e se programarem para uma nova etapa e um novo tempo, baseado num processo educativo e democrático, com olhar mais humano e de respeito às diversidades e às diferenças. Esse é o grande salto que o País precisa dar: virar essa página infeliz e escrever outros melhores dias. A vida humana deve ser prioridade; jamais, a barbárie. Sabemos que os maus exemplos sempre acabam contaminando o todo, e os números estão aí, não nos deixam mentir. Quando uma vida é levada, todos nós perdemos um pouco da nossa própria vida.
Acabar com o chamado auto de resistência é dar um enorme passo no combate à impunidade, à violência, à discriminação e ao racismo. É dizer não ao genocídio de jovens negros e pobres. É resistir, fazer a boa luta, combater o bom combate, avançar na conquista dos Direitos Humanos e sociais. Não há tempo a perder… O País não pode mais ignorar as dores das ruas e dos morros. A democracia só se efetivará quando os grilhões forem rompidos e quando a sociedade desvendar os olhos e ouvir o canto e lamento do jovem negro Camilo para se encontrar com sua própria história.
Senador Paulo Paim (PT/RS). Presidente da Comissão de direitos Humanos do Senado.