Por: Mauri Cruz (*)
Chegamos a um momento crítico da história brasileira. Milhões de cidadãs e cidadãos estão com suas vidas em risco e parte dos governos eleitos, começando pelo Governo Federal, negam, ignoram ou utilizam a pandemia como instrumento de disputa política para seus próprios interesses. Mais grave é que parcela do poder legislativo, do poder judiciário e do empresariado estão capturadas por esta lógica. O resultado é que não há nenhuma estratégia de combate eficaz a pandemia e as vozes que exigem medida sanitária efetivas são tratadas como quem faz o jogo da oposição.
A consequência é que chegamos a 280 mil mortes com uma estimativa de que, se não mudar a atual política negacionista, chegaremos ao triste número de 600 mil até o final do ano. Isso sem contar as mais as milhões de pessoas com sequelas temporárias ou permanentes que estão ficando incapacitadas para o trabalho e para uma vida com qualidade em consequência do covid-19. Ainda cabe ressaltar que não está havendo um acompanhamento pela mídia do aumento de mortes provocadas por outras doenças e que também estão aumentando como consequência da saturação de todo Sistema Único de Saúde no país. E, tão grave como as mortes pelo vírus e por outras doenças, é a morte pela fome, igualmente devastadora. Ela mata lentamente, ela desmonta a capacidade de reação e de resistência porque, não ter o que comer é não ter um direito humano básico. Não há como negar que os danos da crise sanitária é muito maior do que estamos acompanhando na imprensa e nas redes sociais e deverá repercutir por vários anos, mesmo após a vacinação ter atingido sua meta de imunização.
A esta altura dos acontecimentos já nos damos conta que o que está em jogo não é somente a vida do povo brasileiro, mas a existência do próprio país como nação. Sem um levante popular em defesa do Brasil não teremos como derrotar este pensamento assassino. O negacionismo que organiza o pensamento destes (des)governos está gerando fissuras profundas no sentimento de unidade nacional e não há saídas que não a completa derrota desta visão autoritária. Não é uma questão de diferenças entre projetos políticos distintos. É uma postura de negação da própria base constituinte da nação. Não restam dúvidas que é preciso uma mobilização nacional com todos os segmentos que defendem a possibilidade de existência do Brasil como nação soberana.
É óbvio que, nestes momentos agudos de rupturas é que se abrem as janelas para as transformações estruturais. Dito isso, o campo democrático e popular precisa ter capacidade para compreender os novos fenômenos sociais emergentes deste caos e seu possível papel numa nova conformação social e política da sociedade brasileira. O retorno do companheiro Lula para o tabuleiro político como real alternativa enche a todas e todos de esperança. Mas é preciso ter cautela.
É fato que o embate com o negacionismo pode nos colocar lado a lado com setores da direita neoliberal que, para se viabilizar politicamente podem assumir temporariamente bandeiras democrática e de defesa de direitos. Esse risco é altíssimo porque, na ânsia de sair deste fosso infindável podemos ser levados a aceitar alternativas que não representam as transformações necessárias.
Como nos ensina Gary Hamel em seu livro “Liderando a Revolução”[1], em tempos de transformações quem evolui lentamente está a caminho da extinção. É preciso prever os futuros possíveis, mas também conseguir imaginar os futuros desejáveis e apostar naquele que melhor nos interessa, liderando os processos de transformação. Segundo ele, em função da revolução tecnológica, pela primeira vez na história da humanidade somos capazes de construir novos ambientes não com base nos limites das conquistas e acúmulos do passado, mas a partir da imaginação de um hipotético novo futuro.
O que ele está dizendo, num dialeto técnico e quase professoral, é aquilo que sabemos há muito tempo: é a utopia que nos permite imaginar uma sociedade nova, igualitária, solidária, ambientalmente sustentável e justa. Agir acreditando que um outro mundo é possível é fundamental neste momento de crises profundas e quando o mundo parece estar indo para sua extinção. Não podemos aceitar passivamente que a única alternativa de mudança política tem como custo a manutenção de um modelo econômico agroexportador, de intensa extração mineral e de uma sociedade desindustrializada centrado nos serviços. Com um sistema político que funciona como mecanismo de exclusão social organizado por uma elite que legisla em prol da manutenção de seus próprios interesses e privilégios.
Dito isso, urge que as lideranças dos movimentos e organizações sociais, dos partidos democráticos e populares possam se reunir, não para cada uma afirmar suas teses e opiniões, mas para, literalmente, reunir dados e informações capazes de produzir interpretações mais adequadas sobre a realidade brasileira, os riscos e, principalmente, as potencialidades de transformações, quem podem ser os setores aliados de um novo projeto de nação e explicitar quem são os adversários com os quais não há possibilidade real de projetos comuns.
A pior atitude é desistir das transformações estruturais e “aceitar” alternativas mais cômodas e conservadoras abrindo mão de um futuro, não inexorável, mas possível. Há um esgotamento no ar. O negacionismo mata o presente e pode comprometer nosso futuro. Reconstruir o horizonte utópico é nossa maior responsabilidade. Senão, derrotar o negacionismo pode significar nos aprisionarmos em mais décadas de neoliberalismo que, de forma mais lenta, nos levará do mesmo modo a extinção.
[1] HAMEL, Gary – Liderando a Revolução – Ed. Campus, Rio de Janeiro, 2000.
(*) Advogado socioambiental, professor de direito a cidade, mobilidade urbana e gestão de organizações da sociedade civil. Membro do Conselho Diretor do Instituto IDhES e do CAMP, membro da Diretoria Executiva da Abong.