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Os limites às “políticas participativas” evidenciam a necessidade de se construir instrumentos culturalmente adequados de participação direta e efetiva dos grupos étnicos.

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Muito se fala na América Latina sobre os incrementos democráticos que as práticas participativas geram sobre governos. Talvez um dos grandes limites à participação e/ou dos seus resultados efetivos em nossas democracias seja a sua potência transformadora quando estão em questão modelos, interesses e poderes hegemônicos, dos quais são exemplos os projetos associados à expansão da fronteira extrativista. Estes projetos trazem à tona os limites das democracias representativas liberais e também das iniciativas recentes de participação institucional extra eleitoral: o modelo não garante legitimidade política a projetos com impactos concentrados no âmbito local, muitos dos quais atingem grupos etnicamente diferenciados, que não se sentem representados pelas instâncias políticas estatais.

Os limites às “políticas participativas” evidenciam a necessidade de se construir instrumentos culturalmente adequados de participação direta e efetiva dos grupos étnicos. A consulta prévia foi concebida como um mecanismo promissor para responder a este desafio. No entanto, para que ela não se torne um espaço burocrático e tenha esvaziado seu potencial transformador, é preciso que sejam respeitadas a organização social e política e as formas tradicionais de decisão do povo consultado, daí a importância dos Protocolos, documentos em que o grupo expõe ao governo a forma como quer ser consultado.

Neste texto, discutiremos a importância do Protocolo de Consulta Mundurukupara a democratização das decisões relativas à implantação de projetos extrativos[1]. O povo Munduruku é constituído por cerca de 13 mil indígenas que vivem em mais de cento e vinte aldeias ao longo da bacia do rio Tapajós, um dos principais afluentes da margem direita do rio Amazonas no Brasil. Os Munduruku da região vivem em três terras indígenas demarcadas (Sai Cinza, Munduruku e Kayabi) e lutam pela demarcação do território Daje Kapap Eypi (Terra Indígena Sawré Muybu). O ato de demarcação representa o reconhecimento formal pelo Estado da ocupação tradicional do povo indígena sobre o território. Há pelo menos quatro anos lutam contra o projeto do governo federal de instalar sete usinas hidrelétricas na bacia do rio Tapajós, que ameaçam seus territórios e modos de vida.

Sugerimos que a importância desta experiência de participação coloca-se para além do próprio caso, e pode ser compreendida como um processo exemplar em que a própria arena pública de decisão não é imposta pelo Estado, mas construída de forma interativa no decorrer do conflito. Os conflitos socioambientais são marcados pela limitação da participação social. Isto porque aquilo que é projetado de forma hegemônica como desenvolvimento econômico implica em uma relação de exploração da natureza, compreendida enquanto recurso natural, e na interferência brutal sobre o ambiente. O conflito surge justamente do choque dessa forma de significar a economia, com outros aspectos que também estão implicados na nossa relação com a natureza, tais como, o lazer, a paisagem, a espiritualidade, o bem viver. Esses conflitos também confrontam formas de viver diversas e desenhos de mundo distintos. Em geral, estão contrapostos poderosos interesses político-econômicos e grupos socialmente vulnerabilizados.

Historicamente, as arenas formais de participação, tais como os conselhos gestores e audiências públicas, não se mostraram suficientes para a realização do confronto de forma satisfatória na percepção dos atores em conflito. Mas, as lutas de diversos movimentos, povos, comunidades e organizações abriram novas e criativas brechas para a participação. Este é o caso da consulta prévia. Criada enquanto acordo internacional entre países que compõem a Organização das Nações Unidas (ONU), a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) formalizou o direito de participação de povos indígenas e tribais na decisão sobre as mudanças e usos de seus territórios. A consulta permite introduzir os grupos possivelmente afetados no processo de decisão.

O Brasil, que é signatário desta Convenção, nunca realizou nenhuma consulta. Após forte mobilização política e por determinação de decisão judicial, a primeira consulta deverá ser realizada com o povo Munduruku, ameaçado pela construção da Usina Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, prevista para o médio curso do rio Tapajós. Contudo, a realização da consulta em si também não garante a participação, como dissemos antes, é preciso abrir o processo decisório e discutir seus termos.

Mesmo com o entusiasmo inicial que as diversas aberturas institucionais de participação social geraram a partir da proliferação de conselhos, audiências, conferências etc., as críticas produzidas pelos próprios atores e pela literatura especializada já ganham vulto. Em vista da decepção com os inúmeros processos participativos existentes no Brasil e das experiências de realização de consultas nos países vizinhos, os grupos afetados[2] pelos mais diversos empreendimentos temem que a consulta prévia possa se tornar uma forma de legitimação do empreendimento, esvaziando sua potencial capacidade de decisão.

É nesse contexto que os Munduruku reivindicam “decidir como decidir”. Eles elaboraram o Protocolo de Consulta Munduruku, (experiência iniciada no Brasil pelo povo indígena Wajãpi, no Amapá), no qual dizem ao governo como querem ser consultados. Enfatizam que querem ser consultados no próprio território, em aldeias de sua escolha, e reunidos em assembleias com a participação de Munduruku de todas as regiões do Tapajós. Esclarecem, ademais, que as decisões são tomadas após longo debate, que leva o tempo necessário para conseguir a unanimidade entre o povo.

Os aspectos em discussão e a condução desta levam em consideração as suas formas de pensar, não querem ser pautados simplesmente pelos problemas dos pariwat (léxico na língua munduruku que se refere aos não indígenas), mas pelas suas próprias demandas. Eles querem coordenar as reuniões, pois produzem seus próprios sistemas participativos e nestes as crianças, jovens e idosos também são parte. Exigem respeito às temporalidades e dinâmicas sociais e, por fim, reivindicam a palavra final sobre a medida proposta. É importante mencionar que as ações de resistência dos Munduruku extrapolam as fronteiras institucionais da legalidade e estas práticas não podem ser criminalizadas, pois são formas tradicionais legítimas de ação política.

O processo constitutivo da deliberação envolve muitos outros elementos que vão além da elaboração mental e racional da vontade, conforme impõem nossos dispositivos democráticos. Tão importante quanto a fundamentação racional do argumento, são os gestos, as expressões e experimentações de sentimentos e moralidades que se performatizam em dinâmicas públicas de decisão. Antes que insultos ao bem viver e à democracia, as ações diretas e outras formas de expressividade de racionalidades diferenciadas, tais como as protagonizadas pelo povo Munduruku, podem ser entendidas como aquilo que Giorgio Agamben chama de “contra-dispositivos” (ou profanação do dispositivo), pois revelam as circunstâncias nas quais os dispositivos democráticos tornam-se insuficientes, ou autoritários e violentos. Não se pode fazer da consulta um “dispositivo” que ordene as ações em legítimas/ilegítimas, toleradas/criminalizadas.

Igualmente importante é o espaço estar aberto para a inclusão de outros agenciamentos, como por exemplo, a participação da natureza enquanto “agente natural”. A construção da natureza em uma dimensão social, espiritual e estética a partir das cosmologias locais precisa estar possível em tais arenas. A observação da mudança da dinâmica das águas ou no comportamento dos peixes, e outras formas de expressão da natureza podem introduzir elementos significativos para a elaboração da decisão. Segundo Paul Little o agente natural pode ser considerado como uma espécie de ator que participa dos conflitos ambientais e, assim, altera os processos de ação coletiva. Mas esse processo precisa estar aberto para além dos agenciamentos naturais compreendidos pela matriz ocidental e considerar a multiplicidade de conhecimentos e significados inscritos no espaço. O Protocolo Munduruku chama atenção para a importância do conhecimento tradicional na identificação e questionamento dos impactos (“Porque nós é que sabemos dos rios, da floresta, dos peixes e da terra”, trecho do Protocolo) e rechaça o “tecnicismo” de feição etnocêntrica.

Os Munduruku estão dando uma oportunidade ao governo de fazer diferente. Dispostos a continuar resistindo contra o projeto que os ameaça, entregaram o Protocolo ao governo em fevereiro de 2015. A este restam duas opções: respeitar a decisão (e a forma de decidir) dos Munduruku ou recrudescer a maneira autoritária e antidemocrática com que vem tratando os grupos culturalmente diferenciados. Como reflete Jacques Rancière, a igualdade na enunciação é condição para o exercício da política e da democracia. Frente à alteridade, não há democracia em processos regulados unilateralmente pelas normas e instituições estatais. Os Munduruku esperam que o governo não aja novamente “como a sucuri gigante[3], que vai apertando devagar, querendo que a gente não tenha mais força e morra sem ar” e deram provas suficientes de que a luta não arrefecerá.


[1] Os projetos extrativos no contexto latino-americano atual foram definidos por Eduardo Gudynas dentro do que seria um modelo econômico “neoextrativista”, que se caracteriza, entre outros aspectos, pela exploração em larga escala de recursos naturais para a produção de commodities que abastecem o mercado internacional com grãos, minério, petróleo etc. Esses projetos envolvem uma cadeia de produção altamente impactante (que vai da extração em si ao transporte), que usa os recursos naturais até sua exaustão, tomando os territórios de povos indígenas, ribeirinhos, pescadores, camponeses entre outros.

[2] De um pouco mais de uma década para cá observa-se, de forma geral na América Latina, um crescimento de movimentos intitulados como “atingidos” ou “afetados”, emergentes em conflitos ambientais gerados por megaprojetos de desenvolvimento cujos impactos sobre as populações locais são dramáticos. Os empreendimentos mais recorrentes são as mineradoras, grandes hidroelétricas, gasodutos, portos, etc.

[3] Sucuri é uma espécie de cobra que vive na América do Sul. A metáfora com o governo se deve à extensão (chega a 10 metros de cumprimento) e à forma como ataca suas presas, enrolando-se no corpo, sufocando e quebrando os ossos para em seguida comê-las.

Fonte: Open Democracy, por Cristiana Losekann e Rodrigo Oliveira

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