Em entrevista, a editora da Agenda Cultural da Periferia e moradora do Grajaú Elizandra Souza fala sobre a força das periferias e suas manifestações político-culturais
Por Marcela Reis
“Está uma luta árdua para defender a democracia, mas nós que somos da periferia já nascemos lutando”. A fala é de Elizandra Souza, jornalista e editora da Agenda Cultural da Periferia, iniciativa da ONG Ação Educativa. Moradora do Grajaú e poetisa, Elizandra mostra como as manifestações culturais das periferias têm sido importantes para “fazer as pessoas se reconhecerem e terem o sentimento de pertencimento do seu local de morada”.
“A gente tem se feito existir e o reflexo disso é no dia a dia, quando você vai ao bar da Cooperifa, o bar do Zé Batidão, e tem aquela pessoa que trabalha o dia todo e vai lá recitar e ouvir poema e vê que aquilo é importante”, afirma. “A cultura vigente e erudita não era para nós, periferia, a gente não se via ali. Então ainda é uma mudança de pensamento, uma resignificação, é tudo muito novo. Então não é todo mundo que está sabendo da movimentação e isso depende muito do bairro, da região”, explica.
Leia a seguir a entrevista completa:
Qual a importância das manifestações culturais para as periferias e para sua construção de identidade?
Acredito muito que essas manifestações culturais que surgem desde os anos 90 com o hip hop – que tem papel central no que hoje chamamos de cultura de periferia – e com a proliferação dos saraus nos anos 2000 – e que tem crescido mais – têm o papel de fazer as pessoas se reconhecerem e terem o sentimento de pertencimento do seu local de morada. E o hip hop também fala da identidade negra.
Até os anos 90, as pessoas não falavam o bairro que moravam. Isso não acontecia. Hoje, as pessoas falam que moram em tal bairro, em tal quebrada e falam com orgulho. Os Racionais, principalmente, tratam disso nas letras. Nos shows, mandavam um salve pros bairros e ouvir o seu bairro em uma letra de música era muito impactante. A gente até brinca, porque eu sou do Grajaú, mas frequento muito o Jardim Ângela e São Luis, e agora a galera fala que mora no “Grajauex”, por causa da música do Criolo, então é importante se ver no mapa.
Quando a gente fala de periferia é bem complexo. Não é a periferia toda que está pensando culturalmente e pensando no pertencimento e na sua região, mas essa movimentação deu uma resignificada no local. Entra também a questão de identidades diversas como a negra e a nordestina. Essas manifestações fortalecem essas identidades e várias bandeiras de luta.
A gente tem se feito existir e o reflexo disso é no dia a dia, quando você vai ao bar da Cooperifa, o bar do Zé Batidão, e tem aquela pessoa que trabalha o dia todo e vai lá recitar e ouvir poema e vê que aquilo é importante. A cultura vigente e erudita não era para nós, periferia, a gente não se via ali. Então ainda é uma mudança de pensamento, uma resignificação, é tudo muito novo. Então não é todo mundo que está sabendo da movimentação e isso depende muito do bairro, da região.
Qual o papel das organizações da sociedade civil em relação a essas manifestações?
Participando, principalmente. Quando as ações das periferias acontecem, as comunidades recebem de braços abertos. Como a mostra da Cooperifa, uma parceria entre escolas e professores. Falo muito do sarau porque frequento o sarau da Cooperifa há muito tempo e desenvolvi minhas poesias com mais intensidade lá. Além de jornalista aqui da Ação Educativa tenho com a Agenda um trabalho literário. E dificilmente tem uma rejeição da comunidade quem vem de fora, então o apoio é fundamental.
E a divulgação ainda é muito invisibilizada, então as pessoas não sabem tanto sobre. Tem muitos jornalistas que não conhecem a Agenda, mesmo com a internet ainda é restrito, se não sai na Agenda é como se o evento não existisse, não tem espaço. Tem eventos que a gente coloca de capa que poderia ser capa da Ilustrada, dos grandes guias, são eventos muito bem estruturados, mas isso não interessa para ninguém.
Há incentivo do poder público em relação a essas atividades culturais no sentido de difundir e expandir o projeto?
Tem o VAI (Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais), que era focado em jovens da periferia e agora outros movimentos que não eram contemplados podem acessar também. Pensar em um edital focado no jovem da periferia é sinal de mudança, de conquista. Também tem o ProAC Saraus, que é mais direcionado. Tem outro, que atua no sistema de bibliotecas, o Literatura Periférica: Veia e Ventania, quando os saraus ocupam as bibliotecas públicas, para que seja vista como espaço cultural e não só um espaço público. E tem em trâmite a Lei de Fomento à Periferia, que é um projeto maior para fortalecer o espaço cultural, o espaço físico, que são poucos para a juventude acessar.
Nesse contexto atual, não é todo mundo que está se movimentando e participando dessas manifestações, mas a periferia tem feito barulho e o poder público tem olhado para essa produção cultural. Os grupos e coletivos que fazem essas atividades têm pensado nas políticas públicas da periferia, conhecem os editais como os que eu falei e têm se feito existir. Quando você fala em políticas públicas, quer dizer brigar por dinheiro também e a periferia precisa. E o que tem se produzido na periferia são coisas incríveis e inéditas.
Qual a importância da periferia se organizar politicamente, em especial na conjuntura de uma ameaça de golpe com o impeachment da presidenta Dilma? Essas atividades colaboram nesse sentido?
A gente se posiciona há muito tempo já. Nossa luta contra o golpe é questão de sobrevivência para o jovem negro periférico e para a gente que está ali no front. E, afinal, foram os movimentos sociais que reelegeram a Dilma no segundo turno e sabemos como foi o governo Lula e suas conquistas importantes. Nós nos organizamos no projeto Periferias Contra o Golpe, porque tem jovens morrendo, a questão é sobrevivência. A gente sabe que já foi pior, mas sabemos também que a corda sempre arrebenta para o nosso lado. Nós não estamos do lado de quem quer o golpe, quem detém os meios de comunicação e as cadeiras do Congresso. Está uma luta árdua para defender a democracia, mas nós que somos da periferia já nascemos lutando.
Ideologias e fascismos, coisas bem ruins da nossa história, ameaçam voltar, então a periferia que já passou por várias coisas sabe o quanto é ruim para a gente. O preto, o que não tem traços europeus, incomoda quando tem acesso às mesmas coisas que poucas pessoas tinham. A questão do impeachment carrega esse ódio de classe, esse privilégio da elite.
Como surgiu a Agenda Cultural da Periferia e como ela funciona?
A Agenda surgiu por necessidade. A gente via que os eventos estavam acontecendo na periferia, mas não eram divulgados. Vamos completar nove anos mês que vem, vai ser nossa 100ª edição e, ao mesmo tempo em que pensamos que é mais do mesmo há esse tempo todo, é muito novo na sociedade, ainda é transformação.
Tem linguagem que não temos acesso, que não ficamos sabendo. A cena de forró e hardcore, por exemplo, não sabemos bem o que está acontecendo. E escolher as seções é uma escolha política também. Acreditamos que essas linguagens que a gente aborda são as linguagens políticas, de transformação. O funk, por exemplo, é muito espontâneo, lá na minha comunidade mesmo, um liga o som do carro, logo depois já tem um monte de gente, não tem evento marcado.
Hoje já temos um calendário das periferias, a gente já se prepara melhor e tem eventos que estão se tornando históricos já como a Noite dos Tambores, as Festas Juninas, o aniversário das rodas de samba, o “Estéticas das Periferias”, a consciência negra e a Feira Preta.