“O fim do ciclo progressista deve ser situado fora da conjuntura eleitoral, porque o que se derruba é o próprio progressismo como espaço político”, diz o antropólogo.
*Entrevista de João Vitor Santos e edição de Patricia Fachin | Tradução de Juan Luis Hermida
A discussão “de fundo” quando se trata de analisar a situação dos governos progressistas na América Latina consiste em considerar que “junto com o fim” desses governos, “ou de suas narrativas, assistimos também ao fim de uma forma de fazer política”, pontua Salvador Schavelzon em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail.
Neste cenário, contudo, “a discussão central” não deve estar limitada a debater se é preciso manter ou não o apoio a um “progressismo em retirada”, mas discutir “como reconstruir ou resistir por outro caminho, entendendo melhor a complexidade do neoliberalismo e os limites de uma visão simplificada de bons e maus, ou de líderes salvadores e de máquinas políticas em que se sustentaram”.
Entre as alternativas políticas para avançar frente à agenda progressista da América Latina, Schavelzon menciona “junho de 2013 no Brasil, a recepção dos manifestantes do TIPNIS na Bolívia, na mobilização pelo Yasuni-ITT no Equador e na mobilização contra a mineração em vários países”, como “o que hoje temos para avançar em lutas pelo bem comum, no campo e na cidade”. No Brasil, que se arrasta diante da crise política, a “dinâmica” de junho, por enquanto, “está ausente”, constata. Mas caso o impeachment da presidente Dilma se concretize, seria bom que “pudesse ser aberto um momento de pensamento coletivo e criação política conectada com essa verdadeira ruptura do tempo político e abertura de possíveis”, sugere.
Na entrevista a seguir, Schavelzon analisa a atuação dos governos progressistas latino-americanos e as razões que levaram ao rompimento de suas agendas iniciais, e frisa que “a radicalização da democracia não parece algo que vai ser construído a partir dos governos, mas desde uma segurança de que a chegada ao governo e a institucionalização das lutas não é suficiente”.
Salvador Schavelzon é argentino e atualmente leciona na Universidade Federal de São Paulo. É doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ e graduado em Ciências Antropológicas pela Universidad de Buenos Aires. Sua tese de doutorado, intitulada A Assembleia Constituinte da Bolívia: Etnografia de um Estado Plurinacional, foi publicada como livro na Bolívia em 2012, com nova versão editada em 2013, pela Clacso Coediciones. Este livro e outro, sobre Bem Viver e Plurinacionalidade na Bolívia e Equador, estão disponíveis aqui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Os governos progressistas latino-americanos estão em um fim de ciclo? Por quê?
Salvador Schavelzon– Em termos eleitorais é evidente que o conjunto dos governos progressistas está retrocedendo e enfrentando-se com algum tipo de fim. O triunfo da oposição na Venezuela e na Argentina, a derrota no referendo habilitante para a reeleição de Evo Morales na Bolívia, o Congresso que surge da eleição de 2014 no Brasil, que hoje avança na destituição de Dilma Rousseff, e a renúncia na disputa da reeleição do Rafael Correa no Equador mostram que o voto popular já não os acompanha. Bachelet nunca se somou totalmente a este grupo, e também no Uruguai a substituição dentro da Frente Ampla marca um encerramento de muitas coisas.
Ainda que a maioria dos partidos do governo, hoje, não esteja fora de jogo das próximas disputas eleitorais, o que se abriu com as mobilizações e com a mudança política que fez possível os triunfos de Chávez, Evo, Lula e outros presidentes está se fechando. A análise do que se fecha, no entanto, não deveria limitar-se a uma medição de apoio eleitoral. No final, nesse plano é fácil atribuir derrotas a uma situação econômica desfavorável ou à influência dos meios de comunicação e campanhas, que é até onde chega a análise de boa parte dos governismos.
A derrota do progressismo vai além da eleição
Porém a derrota vai além, não só porque o progressismo também investiu muito na disputa midiática, e porque esses países não se encontram preparados para resistir a uma crise depois de anos de bonança; essa é uma coisa a se ter em conta. Mas o fim do ciclo deve ser situado fora da conjuntura eleitoral, porque o que se derruba é o próprio progressismo como espaço político, que cada vez se mostra mais indistinguível do resto da classe política, e que depois de algumas medidas que lhe permitiram consolidar um importante apoio, não conseguiu aprofundar nas transformações que lhe permitiriam transcender o momento econômico positivo. Se olharmos o que estes governos representavam nos anos 90, aos levantes populares que os antecederam e às vozes dos subalternos que apostaram neles, o clima de fim de época é também inegável. Vejo então o final do ciclo como produto de uma virada conservadora que se situa há alguns anos, quando ainda o poder político e eleitoral desses governos era inquestionável, ainda que devamos fazer distinções entre líderes que encabeçaram ajustes ortodoxos, como Dilma, Correa e Maduro, e os que não os fizeram, como Evo Morales ou Cristina, por distintos motivos. E acrescentaria que esse balanço é necessário que seja feito desde dentro, como limite de uma época para quem foi simpático com esses processos e não como discussão mediática que busca responsáveis e se apressa a retornar aos anos 90.
Abandono das bandeiras
O esgotamento de um modelo que sempre esteve em disputa, mas que serviu para enfrentar alguns interesses ou impulsionar políticas que outro tipo de governo teria impulsionado, se reflete no abandono político, mas também discursivo – exceto em tempo de eleições – dos lugares clássicos do progressismo, a esquerda, e as agendas de lutas anteriores. Há algum tempo, os governos progressistas falam desde a autoridade estatal, do lugar do nacionalismo e do desenvolvimentismo, colocando o aumento do consumo como principal forma de medir o avanço, ao mesmo tempo que atendem a grupos de pressão conservadores e fazem alianças com o pior da política. Houve uma virada que anulou uma ambiguidade inicial e a partir de decisões bem concretas se traduziu num afastamento de bandeiras e movimentos para buscar uma governabilidade construída com aliados e caminhos conservadores.
A atuação progressista nas redes
A identidade de esquerda, cidadã, indígena ou popular deu lugar a pactos e concessões que abraçaram agendas religiosas, empresariais e poderes tradicionais regionais. Isto produziu uma desconexão evidente entre a condução dos processos, com lideranças centralizadoras e fechadas com suas bases. De partidos-movimento, ou de partidos que se integram em processos de mobilização, passamos a líderes que negociam alianças e procuram eleitores desde o lugar do marketing político. A relação com a sociedade agora é somente midiática, com discursos de campanha nos quais se calcula o que convém e o que não convém dizer, sem nenhuma relação com a política efetiva. A política sul-americana se reduziu a uma realidade televisiva de líderes e condutores que “deram” coisas ao povo e encabeçaram grupos políticos de funcionários estatais que se olham a si mesmos como “soldados”, e um núcleo duro que os apoia, mas que fica em casa com uma participação política limitada às redes sociais. A autonomia da comunicação politica deixa de lado qualquer discussão sobre relações concretas e estruturas de longa duração fechadas nos marcos de uma civilização baseada na desigualdade e segregação.
Nada a ver com os movimentos que os antecederam, onde a autonomia, a autogestão, a mobilização eram a chave para a atuação. Estes grupos atribuem a queda dos governos aos grandes meios e ao imperialismo. Mas esta narrativa não resiste à análise de até que ponto o progressismo assimila as formas e agendas dos velhos poderes, conscientes de que a mobilização contestaria o rumo decidido desde o alto, e chegando ao ponto de criminalizar os movimentos e protestos, com líderes sociais presos ou exilados na Bolívia e no Equador, ou com jovens violentamente reprimidos e ameaçados com causas jurídicas abertas no Brasil e em outros países.
Esta virada conservadora em relação aos impulsos iniciais desses processos, poderá ser descrita como pacto de governabilidade com os velhos poderes no qual se deixava governar o progressismo em troca de não haver mudanças no modelo de acumulação e nas políticas que, em momento algum, deixaram de beneficiar, sobretudo, o poder tradicional. Um capitalismo local, que o progressismo imaginava em disputa entre um empresariado nacional produtivo e outro financeiro e estrangeiro, é na realidade um único poder que soube muito bem neutralizar os novos governos com poucas concessões. É isso que novas lutas e movimentos veem com claridade, e fica fora quando se performa uma oposição política midiática sem tradução em oposição de modelos políticos concretos. Parte desses poderes nunca aceitou os novos governos, mas não faltou quem rapidamente fez negócios com a nova classe política que em quanto isso abandonava aqueles que, desde a mobilização, abriram este momento político. O encantamento pelas grandes obras de desenvolvimento foi o que foi visto desde cima como o rol histórico, como objetivo político em si, permitindo encaixar todas as peças: política desde os meios, empresários amigos, modelo colonial exportador e recursos para fazer política desde o Estado que iria garantir para sempre o apoio eleitoral.
Desde esta lógica, Evo Morales chegou a propor que, no lugar do direito constitucional à consulta aos povos indígenas afetados, grandes projetos de desenvolvimento que violentavam o território deles e o seu meio ambiente fossem submetidos a referendo nacional.
Boa parte das lutas atuais que surgem contra os governos progressistas tem a ver com a relutância à megaobras, mineração sumamente destrutiva do meio ambiente, alianças com um agronegócio a favor do desmatamento, todas impostas de maneira ilegal e violenta. Ainda que o financiamento fosse da China ou do BNDES brasileiro, em obras como Belo Monte, o canal transoceânico da Nicarágua ou a estrada no TIPNIS, na Bolívia, é muito difícil ver outra coisa que não seja a expansão do capitalismo com o apoio e recursos do Estado, sem diferenças com o que se vê em países sem os governos progressistas da região ou com o que se via no passado. É fato que houve redução da miséria e políticas sociais numa escala inédita. Mas faltou discutir modelo de desenvolvimento e quem o faz recebe todo o ódio dos aparelhos midiáticos e de polícia política do progressismo.
Mesmo se Evo Morales conseguisse o triunfo de um sucessor nas próximas eleições, ou se Cristina e Lula mantivessem sua popularidade, é muito difícil não ver o fim de um ciclo quando o governo do PT suspende a expansão universitária e propõe aumentar a idade da aposentadoria; ou quando o governo do MAS reprime uma marcha indígena e se alia às elites do Oriente, que pouco antes buscavam bloquear a Assembleia Constituinte; ou quando se escuta Rafael Correa aderir ao discurso homofóbico e contrário aos direitos das mulheres nas igrejas.
As derrotas eleitorais e a abertura de um momento político para a aparição de novos e velhos atores conservadores são o resultado dessas mudanças, que se soma a uma conjuntura econômica em que o dinheiro acaba para fazer política, ao mesmo tempo em que o novo poder se mostra com os mesmos problemas que o velho, envolto em tramas de corrupção que não soube quebrar, e num panorama onde as políticas progressistas não garantiram uma sobrevida sem governos progressistas e bonança econômica.
Outro caminho
O ciclo que se fecha abre a necessidade de pensar num outro caminho, quando fica claro que a política estatal se orientou muito mais na comunicação midiática que na procura de mudanças apoiadas desde a mobilização. O fim do ciclo não deve situar-se, então, na conjuntura eleitoral e econômica, ou nos sempre superdimensionados “erros políticos” que agora os governos progressistas admitem; deve ser visto com raízes nesses limites do progressismo como projeto histórico que um dia acordou rodeado de inimigos e longe dos que tinham sempre sido companheiros de caminhada.
A discussão central não é se tem que manter o apoio num progressismo em retirada, que pelo menos garanta alguma coisa aos mais pobres. O tema é como reconstruir ou resistir por outro caminho, entendendo melhor a complexidade do neoliberalismo e os limites de uma visão simplificada de bons e maus, ou de líderes salvadores e de máquinas políticas em que se sustentaram.
O fim do ciclo situa-se no momento em que os poderes tradicionais e a lógica neoliberal conquistam desde dentro os novos governos que, desconectados das lutas e neutralizados como força do povo, abandonaram o caminho da mudança. Se nos perguntarmos como isto foi possível, o debate é mais amplo e necessariamente abre a discussão de uma crise de horizonte e de olhar da qual o progressismo faz parte, visível nos consensos entre o progressismo e o velho poder das oligarquias, que faz com que hoje vejamos novas lutas que o progressismo não compreende nem pode responder, a começar pela falta de questionamento da ideia do “progresso” que inspira a denominação destes governos.
Uma política de cúpulas, uma visão paternalista do social, um desenvolvimentismo que se apresenta como uma solução, mas é, melhor dizendo, parte do problema. Exige-se escutar as vozes que o progressismo deixa de fora: lutas das mulheres pela igualdade, dos indígenas e das comunidades pela autonomia, das periferias contra a violência policial ou de cidades por outras formas de participação, outras formas de metrópoles, outras formas de representação são discussões que hoje se dão necessariamente contra o progressismo, por tudo o que ele tem renunciado em representar.
Se o fim do ciclo deixa algo de positivo, deverá se procurar longe de partidos que já não se apresentam como ferramenta para a mudança, na memória política do povo que foi provavelmente ativada e poderá combater um possível retrocesso, exigir mais e lutar nas ruas pela transformação que os progressismos foram deixando de lado.
IHU On-Line – Quais os limites dos governos progressistas latinos para sustentar a narrativa desenvolvimentista?
Salvador Schavelzon – O progressismo encontra limites no prometido acerca do que se alcançaria pelo caminho do desenvolvimento. As imagens da classe média, o acesso ao consumo como forma de inclusão e cidadania, e de um crescimento econômico que renderia frutos para todos, encontra limites na realidade, e não só nos questionamentos sobre se esse deve ser realmente o caminho. Na crítica ao progressismo também não pode faltar o reconhecimento da luta contra a miséria extrema. Mas seria pouco para o progressismo e a esquerda limitar-se a uma luta contra a pobreza. Em se tratando disso, os avanços na Bolívia deveriam ter matizes com retrocessos nos governos de Dilma, Cristina e Maduro. Por outro lado, os progressistas mostram-se nesta discussão com total consenso em relação às forças conservadoras, às igrejas e aos organismos internacionais.
Desenvolvimentismo
O capitalismo sabe que funciona melhor sem miséria, ainda que existam expressões de direita que se propõem a governar com segregação urbana, violência policial e cárcere como resposta à pobreza. Se em momentos de eleições vemos uma polarização entre o campo progressista e o conservador, na gestão cotidiana fica claro que a esquerda governista adotava o desenvolvimentismo de grandes obras e exportação de commodities como caminho político. Isto possibilitava alianças políticas com a velha política que representa diretamente os interesses dos poderosos, e também mostrou como o progressismo podia estar rapidamente do lado da repressão de manifestações contra a poluição, mega-mineração e soja, ou deixando de denunciar violações de direitos ambientais, de populações próximas a sítios de exploração, e ativo na repressão e combate direto contra ONGs críticas e movimentos indígenas e sociais que não aderiam ao consenso desenvolvimentista.
Depois de uma década fica claro que neste tema os governos serviram mais para neutralizar resistências do que para defender posições de base e movimentos no Estado. Nem sequer a indústria teve incentivos, ainda que discursivamente assistimos como o progressismo converteu-se em promotor da venda de carros e televisores de plasma.
O desenvolvimento impulsionado pelo progresso nem sequer mostrou a habilidade de uma variante que pudesse impulsionar uma verdadeira redistribuição, a não ser nas políticas sociais que, se forem um legado do progressismo, ainda que tenham origem nos governos anteriores, serão continuadas pelas novas direitas porque o seu custo não é significativo em relação à brutal injeção de recursos estatais destinados aos setores empresariais e ao mercado financeiro.
Para além desse consenso desenvolvimentista progressista–conservador, já existe toda uma série de pesquisas que, com um diálogo direto com lutas que se conectam continentalmente, permitem achar bases para pensar na política a partir de outro ângulo. Uma série de pesquisadores, como Eduardo Gudynas, Martinez Allier, Maristella Svampa, Alberto Acosta, vem trabalhando cenários de transição pós-extrativista e alternativas conectadas com o aporte dos povos indígenas na discussão, que falam desde as suas comunidades, do bem viver, a partir da resistência à mineração mais contaminante, e da possibilidade de pensar além do crescimento e do desenvolvimento.
Num outro plano, esta linha de reflexão se articula como um pensamento sem Estado, considerando a autonomia dos povos e questiona não só o capitalismo, mas também as suas instituições, sua concepção de natureza e de sociedade, como base para pensar desde a nossa América, desde os índios, negros e desde as margens de uma sociedade que exclui todos os que não se integram às formas dominantes.
As lutas desde a diferença e a autonomia se encontram também nos trabalhos de autores como Eduardo Viveiros de Castro, Marisol de la Cadena, os teóricos da modernidade-colonialidade, que mostram a continuidade do racismo constitutivo de nossa sociedade, e da necessidade de pensar um mundo formado por muitos mundos, como dizem os zapatistas.
As agendas pós-desenvolvimentistas, por outro lado, se articulam com discussões que procuram achar novas ferramentas para compreender uma política que não se identifica com o Estado Nação, os sindicatos e partidos, a ideia de um sujeito político que representa um sujeito social numa luta pela acumulação e hegemonia, que vê o Estado como espaço exclusivo da política e a economia como dimensão única para a gestão sobre a vida.
De forma mais dinâmica que na área do pensamento teórico, aqueles que realmente se encontram neste lugar político além do progressismo são os jovens que ocupam as ruas e têm muito clara a semelhança entre os diferentes partidos. Junho de 2013 no Brasil, a recepção dos manifestantes do TIPNIS na Bolívia, na mobilização pelo Yasuni no Equador e na mobilização contra a mineração em vários países, são o que hoje temos para avançar em lutas pelo bem comum, no campo e na cidade.
IHU On-Line – Como compreender a relação dos governos – autointitulados progressistas – da América Latina e os movimentos sociais (movimento de massa e da multidão)? Como o projeto desenvolvimentista impacta nessa relação?
Salvador Schavelzon – Em lugares como Equador e Bolívia, a chegada de novos governos se deu num contexto de mobilização popular. Movimentos e correntes de opinião e posição crítica com o desenvolvimentismo permitiram abrir um momento político novo. Também havia fortes demandas de um modelo de inclusão social que não questionavam os efeitos sobre o ambiente e o modelo desenvolvimentista. No entanto, havia ambiguidade, que se perde quando o pior desenvolvimento se mostra para esses governos como uma chave para obter recursos e governabilidade. Aqui encontramos o lado repressivo desses governos frente a tudo o que se opunha ao que era visto como questão de interesse nacional.
A oposição à construção de uma estrada no TIPNIS (parque nacional e território indígena) converteu-se na Bolívia em ponto de rompimento com as organizações indígenas históricas, antigamente aliadas, que foram reprimidas pela polícia. O mesmo ocorreu com aqueles que operaram contra a abertura do Yasuní-ITT para a exploração petroleira no Equador.
Nos primeiros anos do governo Correa, havia uma proposta nova que procurava uma compensação do mundo para deixar o petróleo debaixo da terra, e assim preservar a selva e povos indígenas sem contato. Quando o governo decidiu interromper esta campanha e abrir o parque para exploração, tudo o que tinha sido dito sobre os direitos da natureza introduzidos na nova Constituição, ou o Bem Viver, como filosofia e prática alternativa ao desenvolvimento, se converteu em direitos e conceitos que o governo teve de tirar do debate público. Falar-se-ia então de interesses da maioria, que na realidade eram, em muitos casos, interesses de empresários e de novos aliados do progressismo.
O mesmo quadro é possível de ser encontrado no Brasil, quando quem se opunha aos negócios e violações dos direitos das obras da Copa do Mundo de 2014 se deparou com doutrinas de segurança repressivas, combate propagandístico, por todos os meios de comunicação estatais, contra dissidências e processos criminalizadores de protestos, e discursos ufanistas, exaltando o crescimento do país pelo caminho do desenvolvimento capitalista.
Por trás do perdão fiscal para a FIFA, esteve a proibição aos vendedores ambulantes de se beneficiarem do movimento nas proximidades dos estádios, corrupção em grande escala, com lobbies de empresas e capital internacional que não encontravam nenhum obstáculo nos governos de origem, e de passado anticapitalista e ideais progressistas. Propostas que se discutem em outros lugares, como impostos sobre fortunas, regime tributário mais progressivo, controle da atividade do agronegócio e da mega-mineração em territórios de selva, são impossíveis num progressismo que não pode mostrar-se mais como instrumento da luta contra a desigualdade e as injustiças, que foi o que permitiu seu acesso às instituições.
Junto à deterioração de uma experiência política, também se registra hoje um esgotamento da própria forma como se pensava invadir os céus e abrir um caminho de emancipação. Ações em rede sem liderança definida ou permanente, confluências de forças abertas e participação direta desde repertórios variados e coloridos, deixam para trás o velho partido, o velho modelo de intelectual e de universitário, além de movimentos centralizados cujos membros põem-se em ação somente quando a sua participação é decidida desde cima.
A crítica ao progressismo é importante na medida em que se conecta com essa busca e se diferencia da caricatura que apresenta os meios, sempre cuidando para que a corrupção progressista não seja associada a outra do mesmo tipo, e que comprometa os partidos da oposição, os que buscam se beneficiar do debate progressista.
IHU On-Line – Como radicalizar a democracia? Que caminhos deveriam ter sido adotados pelos governos progressistas? Como pensar em saídas à esquerda na América Latina hoje?
Salvador Schavelzon – Houve avanços que não foram aprofundados. Elementos que se apresentaram nas novas constituições do Equador e da Bolívia, ainda que não desenvolvidos, eram parte de agendas criadas em muitos anos de construção coletiva fora do Estado. Era um caminho político difícil, de instabilidade e assédio, mas, no balanço da época, os resultados obtidos pelo caminho do co-governo, com as elites deslocadas, estão na base da análise da queda.
A discussão mais de fundo, no lugar de achar culpáveis ou de imaginar caminhos que não foram tomados, é a de ver que junto com o fim dos governos progressistas ou de suas narrativas, assistimos também ao fim de uma forma de fazer política. Este limite é muito visível nas discussões que percorrem as novas lutas, desde as praças, ruas, ou instrumentos políticos que questionam as formas clássicas da participação e da representação. Mais que questionar as decisões de líderes e cúpulas que centralizaram a agenda política em suas mãos, hoje se questiona a ideia de instrumentos políticos tão dependentes de uma discussão que não é socializada, e que se presta facilmente à cooptação e à neutralização pelos piores caminhos.
Radicalização da democracia
A radicalização da democracia não parece algo que vai ser construído a partir dos governos, mas desde uma segurança de que a chegada ao governo e a institucionalização das lutas não é suficiente. Houve levantamentos e revoltas antes de cada um dos governos progressistas: as guerras da água e do gás na Bolívia, o ‘caracazo’ na Venezuela, seguida do levantamento de Chávez antes de ser reeleito, e as assembleias e mobilizações na Argentina posterior a 2001. O que as experiências de governos posteriores mostraram é que esse poder social tem que permanecer ativo se não quisermos assistir ao regresso de lobbies e famílias donas do poder regional.
Junto a isso é necessário pensar na necessidade de propostas de modificação das formas políticas e institucionais às quais se tem acesso, caso contrário possivelmente os instrumentos de mudança acabarão modificados pelo poder, mais do que o poder alterado pela chegada de forças de renovação e mudança. Uma saída para a esquerda hoje, parece-me, não pode repetir o modelo que hoje vemos nos governos desconectados dos caminhos e experiências de onde nasceram.
Em contextos conservadores com retrocessos de direitos, como os que se abrem na Argentina e no Brasil, por exemplo, deve-se resistir ao progressismo que terá setores e vontades na nova conflitividade e outras já inexoravelmente cooptadas pelas lógicas do Estado. Ao mesmo tempo em que assistimos que suas alianças de governabilidade não foram realmente um caminho que permitiu avançar com mudanças, nem garantir estabilidade, como se justificava; nos perguntamos e medimos novamente nas ruas até que ponto podemos caminhar juntos com quem pouco tempo atrás foi tolerante com muito do que hoje serão elementos de discórdia. Muito mais como confluências pontuais do que marchando atrás de líderes que nos exigem disciplinamento em nome da “unidade”, fica para trás a ideia de que se deve empreender um caminho de acumulação de força com vistas à substituição de um governo que está desprestigiado. Este é o horizonte de uma parte da esquerda que reduz a sua visão do social a demandas, reduz a sua concepção de atores relevantes aos partidos, que terão solidariedade de intelectuais e de personalidades da cultura, para que uma classe média se incorpore na mobilização dos mais pobres; estes, sem voz individual, senão somente como exércitos deslocados na rua em mobilização conduzida desde cima, em acordos e confluências dos quais participam só os notáveis de movimentos e partidos que se preparam para ocupar funções no Estado. Ali virão mudanças de cima, que os de baixo agradecerão. Ou não virão, se a avaliação estratégica do novo poder não encontrar seus caminhos.
Política de afetos
Numa outra direção, alguns falam de uma política de corpos e afetos, significando a necessidade de uma política que não seja dos grandes líderes, nem dos quadros preparados, nem de processos que se limitariam a sistemas fechados de instituições abertas ou fechadas a processos mecânicos de atores e demandas, como muitas vezes os movimentos são descritos pelas ciências sociais.
A América Latina avança hoje em espaços de experimentação política em cidades, comunidades afastadas e territórios indígenas, que se articulam em redes antidesenvolvimentistas, ou de movimentos na rede, feministas, antirracistas, horizontais e envolvendo uma discussão sobre as formas de vida, sem política de programa e sacrifício militante, que procura conscientizar a classe trabalhadora com direções de movimentos que indicam o caminho e um plano de intervenção.
Trabalhadores de um mundo com direitos precários, mas melhor conectados, ou aqueles que se juntam às lutas a partir dos espaços que o progressismo deixou de lado, como o da luta contra a violência policial nas periferias, sintonizam com uma política que deixou para trás o jogo midiático de partidos que fingem oposição para governar por consensos comuns. Estas novas lutas na busca pelo comum não podem ser deixadas de lado em troca de um objetivo final que promete chegar no futuro.
Estas forças que, por outro lado, não têm dúvida do esgotamento do progressismo e da sua aproximação com os partidos conservadores, poderão confluir na abertura de um processo constituinte, poderão intervir nas instituições ou se converter em movimentos de opinião e construção coletiva, que questionem uma civilização, um sistema e vários consensos, a partir de fora, que desde as margens permita refrescar também o centro.
IHU On-Line – É possível afirmar que o ciclo na América Latina hoje é de retomada do poder pela direita? E como compreender essa nova direita?
Salvador Schavelzon – A direita nunca se foi. Houve políticas que não teriam existido sem o progressismo: de contribuir para a memória histórica com justiça real na Argentina, encarcerando repressores da ditadura, a ampliação de universidades no Brasil, direitos territoriais e pluralismo jurídico na Bolívia, reversão de latifúndios e criação de comunas na Venezuela, entre outros. Mas quando o crescimento se interrompe, o fluxo de dinheiro da China fica reduzido e os preços internacionais caem. Dá para ver com clareza que não estavam construindo as bases de uma economia mais justa.
Uma nova direita ocupa o espaço de um progressismo que se vai pela sua própria dificuldade de iniciar um processo de mudanças, e que também não teve êxito em mostrar uma forma de gestão do aparato estatal diferente. E os novos governos conservadores chegam a se fazer como administradores pós-ideológicos e “técnicos”, igual ao fascismo na sua origem, como melhores gestores de um neoliberalismo que percorre todo o corpo social, o qual o progressismo não consegue atacar desde o estímulo e a proximidade pelas lógicas do coletivo, na contramão do mercado, das igrejas, mas também do Estado e do horizonte da classe média, onde antes encontrávamos movimentos descolonizadores ou vizinhos reunidos em assembleias, como membros de uma política que perdeu espaço quando líderes progressistas ocuparam todo o espaço.
Quando o progressismo estimula valores alheios, no sentido do individualismo e do consumo, é natural que estas bases eleitorais, em parte criadas e beneficiadas pelas políticas do progressismo, deixem de necessitar dos partidos que mantêm uma significação de esquerda meramente nostálgica e simbólica.
A nova direita é, então, por um lado, uma que nunca se foi, que o progressismo manteve como parte de seu armado político. Por outro lado, a direita é nova no sentido em que cada vez mais existe uma evidência de uma lógica política que é indistinta de quem ocupa a presidência e está num neoliberalismo que modela subjetividades e avança destruindo um tecido social e formas de vida.
IHU On-Line – Que relação é possível estabelecer entre a chegada de Mario Bergoglio no comando da Igreja, e seu pensamento político e econômico enquanto Papa Francisco, com a necessidade de reorientação da esquerda – e de governos – na América Latina?
Salvador Schavelzon – Não é uma casualidade a chegada de Bergoglio e sua confluência com grande parte do progressismo. É eleito papa dias depois da morte do presidente Chávez, o qual Bergoglio, enquanto cardeal na Argentina, havia repudiado veementemente. Creio que tem sentido pensar que esse cenário pós-chavista que se abriu, ajudou Bergoglio a chegar ao papado, pensando também na importância da América Latina para a Igreja, num contexto de disputa aberta com outras igrejas que avançam. Depois da sua eleição, houve uma reconversão interessante de um religioso conservador ao qual o kirchnerismo opunha-se, com a figura midiática de discurso social que surge em 2013.
Neste marco, a aproximação dos progressismos a Bergoglio pode ser vista como parte do panorama de agendas conservadoras aumentando sua importância dentro desses governos. O papa virou à esquerda enquanto o progressismo foi a seu encontro na direção contrária, propondo família e harmonia onde antes ouvíamos chamados de guerra que partiam do antagonismo e desejos de mudar este mundo. Ainda que seja verdade que um papa latino-americano representa uma mudança no contexto do Vaticano, no caso dos governos e as novas narrativas que neste momento se tornam visíveis, vemos um retrocesso. Quando presidentes como Correa e Maduro assumem posições conservadoras que antes não se expressavam sobre minorias, casamento homoafetivo e aborto, abandonando agendas de mudança como o poder das comunas, os direitos indígenas de autonomia, de reforma agrária e emancipação, o retrocesso é inegável.
Num nível mais profundo podemos ver uma afinidade entre as tradicionais Nacional Popular, de transformação desde o Estado, e uma hierarquia disciplinada dos jesuítas, com uma visão de preocupação pela pobreza que é autêntica, mas que só se pode expressar como paternalismo que enquadra o social, não questiona as bases de um sistema injusto e que está na contramão das lutas pela diferença e contra uma civilização colonial que não pode deixar de colocar-se na hora de falar das reformas pendentes na nossa sociedade. Paternalismo nacionalista ou multiculturalismo liberal, o encontro do progressismo com Francisco deixa de lado a possibilidade de um terceiro lugar, da comunidade que não se realiza nem no Estado nem no Mercado e que constrói coletivamente mas sem abrir mão da diferença, o antagonismo onde se impõe o racismo e a naturalização da expropriação, em projetos de mudança num mundo material e terrenal.
IHU On-Line – Como vem acompanhando e analisando os recentes acontecimentos políticos do Brasil? Que análise é possível fazer da polarização das manifestações populares desde os últimos acontecimentos políticos?
Salvador Schavelzon – Algumas polarizações podem ser úteis. É importante, por exemplo, identificar tendências fascistas, integristas, contrárias a direitos presentes no possível governo que surgirá no caso de se concretizar o impeachment, e se opor a elas sem duvidar, ainda que grande parte da esquerda não se identifique com as políticas conservadoras do governo Dilma. Mas o problema da polarização entre manifestantes verde-amarelos anticorrupção e vermelhos governistas pela democracia, é que se trata de uma polarização midiática totalmente fictícia em termos políticos concretos. Os verde-amarelos não podem falar com legitimidade de corrupção, de liberalismo, ou inclusive do “Brasil”, na medida em que os que hegemonizam e convocam as mobilizações representam a violência colonial, o racismo, o país de uma elite que nunca se preocupou com as maiorias que hoje seguem sem a participação política e institucional, e sem verdadeiro acesso a direitos universais básicos.
Ao mesmo tempo, hoje as mobilizações governistas não podem se atribuir o lugar da democracia, quando o progressismo brasileiro decidiu governar justamente com e para os representantes dessa elite que agora pode prescindir de quem foi um eficiente administrador de seus interesses. O problema da polarização, num sentido que preserva o PT como instrumento dos mais pobres, como narrativa que permitiu nas eleições de 2014 manter o governo, é a impossibilidade de pensar um país onde sejam contemplados os milhares de mortos pela polícia na periferia, com quem o governo do PT nunca se solidarizou nem se comprometeu em defender, ou os indígenas com os seus territórios invadidos pelo agronegócio, símbolo mais cruel dos problemas de um Brasil ainda colonial e que não se permite pensar fora do capitalismo e a civilização dos carros.
Com a polarização narrada em termos governistas, fica de fora a imaginação política mais poderosa que foi vista no Brasil há muito tempo. Junho de 2013 foi uma mobilização efervescente que logrou frear o aumento das passagens que se apresentava como sem negociação e revitalizou a política por um caminho bem diferente ao dos atos atuais, de oposição ao golpe. Em junho a lógica era a da interconexão, a mobilização permanente e a abertura de caminhos políticos onde tudo se mostrava como possível. Hoje vemos desconexão entre direitas e esquerdas perdidas em disputas jurídicas e de compra de votos, com mobilizações difíceis e limitadas, nascidas de pautas artificiais mal explicadas e pouco convincentes. Na dinâmica atual junho está ausente, mas no ar, como grande ausência que, no entanto, a qualquer momento talvez possa reaparecer, contra o extremo fascismo, levando para a rua as pautas mais importantes que o poder político não consegue acompanhar sem negar o armado político e de financiamento no qual se ergue. Criação política conectada com essa ruptura do tempo político e abertura de possíveis é hoje uma insurreição necessária. Sem ela teremos terrorismo de estado em forma de políticas de austeridade e um cemitério político de lutas abandonadas e nostalgia.
Fonte: Adital