Logo após o primeiro turno das eleições que definiu os nomes dos prefeitos e prefeitas de vários municípios do Semiárido, lançamos um olhar sobre o papel dessas próximas gestões com relação à proposta de convivência com o Semiárido. O que esperar das novas e dos novos gestores neste tema? Quais os caminhos criativos para financiar ações de acesso à água de qualidade? Quais os riscos para as prefeitas e os prefeitos eleitos de serem induzidos a adotar as medidas que o governo federal tem anunciado para o abastecimento das populações do campo sem a participação da sociedade civil?
Estas são algumas perguntas respondidas por Marilene Alves (Leninha), da coordenação de articulação do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA NM) e coordenadora licenciada da Articulação Semiárido em Minas Gerais (ASA Minas). Leninha disputou pela primeira vez a eleição municipal na cidade-polo do Norte de Minas, Montes Claros, cujo atual prefeito Ruy Muniz (PSB) está afastado do cargo e foi preso em abril pela Polícia Federal por corrupção. Leninha obteve 25,82% dos votos válidos (36 mil votos).
Asacom – O que esperar dos gestores e gestoras municipais com relação à convivência com o Semiárido?
Leninha – O que se espera é que se tenha, de fato, uma política municipal voltada para as várias temáticas relacionadas ao Semiárido. Por exemplo, a primeira questão é da água, quando falamos de água, estamos falando de plano de manejo de bacias, de nascentes, de minas, revitalização dos rios, porque a grande questão dos candidatos a prefeitos é construir barragens e grandes obras. Não adianta fazer essas obras se não tem água, se não tem rio correndo. Mais importante é desenvolver um programa de revitalização e recuperação de bacias dos rios que nascem e passam no município.
A segunda questão é com a água da chuva, é importante pensar não só captar, armazenar e cuidar da água da chuva, mas também como a gente pode produzir água com manejo de solo para que a água da chuva infiltre, a gente tenha manejo agroflorestal que ajude no uso da água. Então é pensar em tecnologias e práticas mais rebuscadas que ajudem a gente a manter mais água nestes ambientes, da pequena agricultura, das áreas de acampamento, assentamento.
Como pensar mecanismos nas propriedades, nas comunidades, para que a água da chuva fique ali, não escorra tanto? Uma das formas são as práticas agroecológicas que ajudam, de fato, inclusive neste processo de retenção e infiltração da água e outra forma são as tecnologias sociais – barraginhas, barreiros-trincheiras, [cisternas] enxurradas, todas as tecnologias que a gente [organizações da ASA] trabalha.
A terceira coisa da convivência é pensar na questão da produção, principalmente, na que leve em conta a quantidade de água nos sistemas.
A gente tem um cardápio de políticas e possibilidades dentro do contexto do Semiárido que, com pouco investimento, consegue viabilizar a questão da água, da produção, do beneficiamento e da comercialização. Se cada prefeitura tivesse um programa de convivência com o Semiárido pra questão da água, principalmente, com certeza, diminuiria os riscos de estar enfrentando os impactos das mudanças climáticas.
Asacom: O regime brasileiro é o pacto federativo que distribui responsabilidades entre três níveis – municipal, estadual e federal. Qual a autonomia dos prefeitos para fazer essas ações na questão do abastecimento e da produção?
Leninha – A gente tem no orçamento municipal aquelas verbas que chamamos de carimbadas, um percentual para a educação, saúde, programas sociais. Por exemplo, nessa verba da saúde, nada impede que você tire um percentual para ações preventivas, inclusive, nesta questão da água como um veículo de transmissão de doenças. Nada impede que você faça um uso da verba em água de qualidade. Tem tudo a ver. Tenho impressão que falta uma criatividade, uma certa inteligência, vamos dizer assim, para compreender que saúde não é só remédio em hospital. Que a saúde é vida, o bem estar, a qualidade. Nada impede que você tire um percentual do Fundo de Participação dos Municípios, destinado à saúde, para você tratar da água como elemento de boa saúde.
As pessoas entendem tudo muito quadrado e não conseguem sair daquele quadrado para pensar nas sinergias. A educação também pode ter o viés da água. Por exemplo, educação para a segurança hídrica, para o bom manejo da água. Você tem possibilidades dentro do orçamento municipal para tratar destes temas que as pessoas querem trabalhar de forma isolada. O que acontece? A arrecadação dos pequenos municípios é muito pequena. Não existe muito dinheiro para investimento. Por isso o que falo tem que ter criatividade. As soluções são essas que a gente imagina que são possíveis de serem discutidas fazendo uma política mais sistêmica.
Asacom – Você falou da educação para uma boa gestão da água, fiquei pensando na educação contextualizada…
Leninha: A maioria dos gestores municipais trata a educação como uma educação urbana. Não existe setor, departamento que cuida da educação do campo ou contextualizada. A política pedagógica é desenhada para os centros urbanos, não pensadas para a vida no campo. Quando vamos discutir a educação contextualizada, discutimos uma educação para a convivência incorporando todas as dimensões daqueles que vivem no campo – cultura, jeito de vida, produção, mercado. Tudo isto discutimos na escola.
Asacom – O que os prefeitos e prefeitas não devem fazer pensando na convivência com o Semiárido?
Leninha – Os prefeitos não devem, de imediato, cair nesta armadilha das velhas práticas de combate à seca. Nós pensamos que havíamos virado esta página da história, mas parece que não se virou. Olhar com muito carinho, refletir bem, sobre aquelas propostas que estavam no contexto há 20, 30 anos que retomam na pauta do desenvolvimento da cidade. Avaliar se o recurso é pra abrir poço, mas o poço é, de fato, a obra que vai aliviar o problema, não de imediato, mas no futuro? Pensar em soluções duradouras e, acima de tudo, pensar em estratégias que a comunidade esteja envolvida naquela ação. Por isso que a gente acredita na participação. O prefeito é aquele que, de fato, cria mecanismos de participação social, fazendo uma gestão democrática, transparente. Pra isso, qualquer obra, qualquer investimento deve ser definido na comunidade, não no gabinete.
Asacom – Esse caminho de diálogo da gestão com a sociedade civil deve ter atenção de um prefeito e uma prefeita comprometido/a com o bem comum…
Leninha – Com certeza, nada melhor de quem vive os problemas e enfrenta as dificuldades para construir a política local de desenvolvimento. É preciso garantir esses canais de participação, precisa fazer pressão popular para que estes conselhos municipais funcionem, para que as pessoas que dele participem, de fato, possam ter um posicionamento claro de defesa do bem comum, não de interesses de grupos políticos, nem do prefeito, da prefeita… Isso é fundamental. Acreditamos que esta força é o que foi capaz de mudar o Semiárido e que vai se manter firme frente às ameaças colocadas neste contexto.
Asacom – Quais os riscos dos prefeitos e prefeitas serem influenciados pela política que está sendo adotada pelo governo federal que reforça a indústria da seca?
Leninha: Infelizmente, o gestor não reflete muito sobre qual tipo de política que o governo federal está acessando. Vamos ter alguns poucos que vão perceber que é uma política do retrocesso, insustentável e que o Estado volta aquele velho esquema de enriquecer alguns à custa da miséria do povo, ao invés de fazer uma política mais voltada para a realidade que estamos vivendo no Semiárido nos últimos 15 anos.
O que a gente construiu, conquistou, elaborou e mudou na vida do povo, de certa forma, o que o governo está adotando como política joga fora o que foi construído. Isso é muito ruim na perspectiva de pensar o Semiárido viável. Me parece não querer enxergar tudo o que foi construído ao longo destes anos. Tenho a impressão de que a sociedade civil que está mobilizada em torno da convivência com o Semiárido está num momento de fazer pressão.
Quando se trata de perfuração de poços, o que a gente percebe é um esgotamento de um lençol numa região em função de uma ação sem controle, sem licenciamento, sem estudo ambiental que pode comprometer o futuro das comunidades. Demorou muitos anos para formar essa água lá no fundo, ela é uma reserva para quando acabar a superficial. Temos relatos de comunidades que abriram poços e que a vazão não é suficiente para a retirada da água.
É a volta da velha política da seca. Temos a esperança de que pelo menos alguns gestores possam refletir e propor usar os recursos que seriam para esta atividade sejam direcionados para outras como da convivência.
Asacom – Qual deve ser o olhar do gestor e da gestora municipal para as mudanças climáticas, que afetam todo o planeta e estão tão presentes nos municípios do Semiárido?
Leninha – O gestor deve ter em mente que pode contribuir a partir de seu município e começar a construir práticas sustentáveis e virar referência. O município pode ser muito dinâmico na medida em que ele mesmo possa construir uma política sobre a questão da água, ter um programa, ter uma plataforma para a educação contextualizada, uma economia ativa, criativa, que pudesse valorizar o potencial de cada lugar. Ou seja, o gestor tem em mãos muitas possibilidades para transformar a sua cidade numa referência neste contexto de mudanças climáticas. Tem a ver com o consumo local, quanto mais perto [o produtor do consumidor], melhor para o meio ambiente, a história das compras [dos agricultores familiares do município] para a alimentação escolar.
A educação ambiental com as crianças e adolescentes é uma chave com relação às mudanças climáticas, desde a produção e tratamento do lixo, o aterro sanitário, o saneamento básico. Tem formas, mecanismos e condições de fazer da sua cidade uma pequena experiência frente às mudanças climáticas, mas que prepare a população para revolucionar com relação ao contexto geral. Um bom gestor é aquele que cuida da cidade, mas que está conectado com questões mais amplas.
Asacom – O que vem dando certo no Semiárido?
Leninha – Primeiro, a ação de estocar água não só para consumo humano, mas também para produção e para os animais. Estocar comida que também é uma estratégia que ajuda muito no contexto da propriedade. Não é reinventar, mas observar a estratégia de sobrevivência que as famílias que sempre viveram neste lugar têm e transformar esse conhecimento tradicional em tecnologias de acesso universal, mais baratas e que permitem a participação da comunidade nestes processos. É fazer o debate da política pública incluindo pessoas, politizando, trazendo cidadania e, de certa forma, apoiando aquilo que elas já fazem como estratégias de sobrevivência.
As pesquisas indicam que, nos últimos anos, onde as tecnologias sociais chegaram, além de resguardar e manter com segurança hídrica e alimentar as famílias, também demonstraram a possibilidade de ampliação da renda a partir do aumento da produção por meio das tecnologias sociais. Boas pesquisas demonstram que redução da migração é retorno das famílias e filhos para casa porque as condições sociais melhoraram e, efetivamente, as pessoas estão participando mais das políticas de seus municípios através da participação em conselhos. Temos que acreditar nesta força, daqueles que estão nos municípios e não vão permitir retrocessos. Será uma dura batalha.
Fonte: Asa Brasil