Reportagem especial conta como a Rede de Sementes do Xingu, com dez anos de existência, contribui para recuperar áreas degradadas, gerar renda e valorizar a sociobiodiversidade da bacia do Xingu. Assista também o primeira episódio do minidocumentário “Xingu, histórias dos produtos da floresta”.
Por Marina Yamaoka (texto) e Rogério Assis (fotos)
Mãos tão marcadas pelo sol que parecem talhadas em madeira, mãos delicadas e em cujas unhas o resquício de esmalte rosa claro resiste, mãos firmes e com vincos entrincheirados nas juntas dos dedos ou, ainda, mãos inconfundivelmente manchadas por urucum e jenipapo. Basta olhar para as mãos dos coletores da Rede de Sementes do Xingu para entender a diversidade cultural dos responsáveis pela coleta, manejo e beneficiamento das sementes comercializadas pela Rede e cujo destino final é o plantio para a recuperação de áreas desmatadas e degradadas nas cabeceiras do rio Xingu e outras regiões da Amazônia e Cerrado.
Com 10 anos de existência, a Rede de Sementes do Xingu surgiu de um dos principais resultados da campanha batizada de Y Ikatu Xingu — Salve a Água Boa do Xingu, na língua Kamaiurá. Nessa campanha, houve o encontro dos mais variados atores — agricultores familiares, produtores agropecuários, pesquisadores, representantes dos municípios da região e indígenas -, que se reuniram em busca de uma solução para o assoreamento e alteração na qualidade das águas dos afluentes do Xingu, desencadeados pelo desmatamento das nascentes e matas de beira dos rios.
Ao conhecimento tradicional de povos indígenas de dentro e de fora do Território Indígena do Xingu, que notam a falta de água e outros impactos do desmatamento, unem-se trabalhos científicos que reforçam a importância de manter a floresta em pé e analisam que as árvores são fundamentais para evitar desertificação e alterações nos regimes de chuvas. É o caso do relatório “O futuro climático da Amazônia”, publicado em 2014 pelo pesquisador Antônio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que indica que a Amazônia já está perdendo sua capacidade de captar e transportar umidade para o resto do Brasil e que apenas parar de desmatar não será suficiente, também será necessário replantar e recuperar áreas de florestas.
Já uma pesquisa recente do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) mostra que, sem floresta, determinadas áreas da Amazônia podem esquentar. Na região do Território Indígena do Xingu (ou Parque Indígena do Xingu, seu nome oficial), no Mato Grosso, por exemplo, entre 2000 e 2010 a temperatura aumentou quase 0,5o C, o suficiente para desregular o regime de chuvas. Quando se olha para as áreas desmatadas ao redor da Terra Indígena, o potencial aumento de temperatura de 6oC é alarmante.
“Temos que cuidar da água, um bem fundamental cada vez mais escasso. E a recuperação dos recursos hídricos no Xingu tem sido efetiva através da coleta e plantio das sementes nativas”, explica Rodrigo Junqueira, coordenador do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA). “A questão em torno da água e as próprias sementes têm valorizado a imensa sociobiodiversidade da Amazônia e mostrado que a floresta tem muito mais valor do que apenas a sua madeira”.
Além de recuperar áreas desmatadas e preservar a água na região, a coleta e venda de sementes fortalecem a economia local e geram renda para os coletores. Em uma década foram comercializadas 175 toneladas de sementes, o equivalente a R$2,5 milhões. “A gente contribui com o meio ambiente para a nossa e para as próximas gerações e ainda garante um complemento na renda que ajuda muito, muito mesmo”, conta Acrísio Luis dos Reis, coletor e diretor da Rede de Sementes do Xingu.
Plantar o futuro
Não é apenas Acrísio, um dos coletores mais antigos da Rede, que valoriza a renda das sementes. Os jovens Milene Alves Oliveira, de Nova Xavantina, e Carlos Daniel Gomes Ribeiro, do assentamento P.A. Dom Pedro, próximo ao município de São Félix do Araguaia, também compreendem a importância do trabalho de coleta e da renda para suas famílias. “Hoje vivemos praticamente da renda das sementes”, explica Oliveira sem esconder o sorriso de satisfação e de orgulho. “A semente vira renda”, diz Ribeiro, enquanto mostra como retirar a semente do jatobá de sua casca, “a gente coleta as sementes, tem que quebrar a casca, dá trabalho demais, mas a gente quer se superar e sempre avançar no trabalho”.
A dedicação e o esforço, no entanto, não estão relacionados apenas à renda. Os jovens da Rede tem como motivação proteger o meio ambiente e as florestas e aprender com os mais velhos para poder dar continuidade ao trabalho. “É muita observação, precisa de tempo e de amor para fazer a semente germinar porque só o esforço financeiro não mantém a Rede”, afirma Oliveira. Parte do grupo de cerca de 40 jovens da Rede de Sementes, ela pesquisa sobre as mudanças climáticas em sua região e como as alterações de temperatura, chuva, entre outros fatores, têm influenciado a produção de sementes e a germinação de diferentes espécies.
Durante o ano de 2016, os jovens participaram do curso ‘Sementes Socioambientais’ — um dos muitos processos formativos elaborados para e com os coletores para fortalecer o trabalho com as sementes — e cada um deles registrou em um calendário quando as espécies germinaram, deram frutas, se era período de seca ou de chuva. A partir das informações coletadas, os jovens trocaram experiências sobre suas descobertas, fortalecendo a dimensão intercultural da Rede.
“Descobrimos que a falta de chuva em diferentes locais têm afetado a quantidade e a qualidade dos frutas que estão mais suscetíveis à besourinhos e outros fungos, por exemplo. O ciclo fenológico das plantas também está sendo alterado, umas produzem mais cedo, outras mais tarde”, explica Oliveira. “Nós trocamos informações sobre as pesquisas e também sobre formas de beneficiamento, conhecimentos tradicionais e tecnologias entre os jovens dos assentamentos, ribeirinhos e indígenas. Aprendemos uns com os outros, somamos conhecimento.”
As relações dentro das próprias comunidades também são reforçadas. Muitas vezes os jovens coletam com adultos mais experientes e entendem na prática quais os melhores locais e épocas para coleta. Também ouvem e registram os relatos sobre como eram as condições climáticas alguns anos atrás. “Meu tio me conta que antes a chuva era boa, dava para trabalhar na roça, plantar. Hoje, já está diferente, algo está mudando e afetando as frutas”, conta Abeldo Xavante, um dos jovens indígenas do grupo.
“Os jovens têm papel importante na coleta porque estamos aprendendo com os adultos para dar continuidade à Rede e ao trabalho”, conclui Oliveira. E se os jovens valorizam o trabalho dos mais velhos, a recíproca é verdadeira. “Nós temos que incluir os jovens. É uma riqueza enorme ver a Rede crescer e se desenvolver e temos que contar com a próxima geração para proteger a natureza, afinal, dependemos dela”, explica Acrísio.
Assista aqui o primeiro episódio do minidocumentário “Xingu, histórias dos produtos da floresta”*, com legendas em inglês, que apresenta a Rede de Sementes do Xingu:
Assista a versão com legendas em português:
Ou acompanha as Yarang ou fica pra trás
É possível entender o papel fundamental de preservação das florestas e de conservação da sociobiodiversidade desempenhado por Terras Indígenas ao sobrevoar a região do Território Indígena do Xingu. Uma série de recortes geométricos em diferentes tons de marrom que dão a impressão de terra seca domina a paisagem até o limite do Território, a partir do qual a paleta de cor muda para o verde exuberante da mata, acompanhada pela água de cor ‘esverdinhada’, como define Antonio Callado sobre o rio Culuene, um dos principais afluentes do Xingu.
Cercados por vastas áreas de pasto e de monocultura de soja, o Território é uma verdadeira ilha de proteção para a floresta e para os povos que a habitam. Dentro dele, nove aldeias de quatro etnias diferentes — Yudja, Kawaiwete, Wauja e Ikpeng — coletam e beneficiam sementes nativas. Um dos grupos mais antigos e o primeiro a coletar dentro da Território é o das Yarang, mulheres coletoras Ikpeng, que fazem parte da Rede de Sementes do Xingu desde 2008 e cujo nome significa saúva. Assim como essas formigas cortadeiras, elas recolhem as sementes do chão e as levam para limpar em casa.
Ágeis, elas saem em grupo para diferentes áreas de coleta com baldes e facões e cantam uma música em Ikpeng. Oreme Ikpeng, responsável pela Casa de Sementes das aldeias Moygu e Arayo, explica que elas estão apresentando o trabalho que fazem e que dão o recado “somos muito trabalhadeiras, ou acompanha as Yarang, ou fica pra trás”. A voz aguda das Yarang parece tomar a floresta. Enquanto caminham ou buscam as sementes no chão, não param de conversar, contar histórias e dar risada. Falam sobre a matrícula dos filhos na escola, das idas para a cidade quando precisam, por exemplo, ir ao hospital, e aproveitam para recolher raízes e outras plantas medicinais.
Ao retornar para a aldeia, cada uma das Yarang beneficia o que foi coletado com martelos, tesouras ou facas, acompanhadas por seus filhos que aprendem desde cedo o valor das sementes. “As crianças participam junto com as mães e aprendem com a gente. Os brancos estão destruindo a floresta e estão chegando cada vez mais perto, por isso eu oriento meus netos a aprenderem comigo e a estudarem para poderem lutar em defesa do nosso território”, explica Magaro Ikpeng, liderança Yarang da aldeia Moygu.
As Yarang entregaram de 200 a 300 quilos de sementes para a Rede de Sementes do Xingu apenas em um ano. “Assim como as formigas, nós gostamos de coletar as sementes para que os brancos possam reflorestar as matas que destruíram. Nós comercializamos as sementes para que os brancos replantem e também reflorestamos na aldeia para garantir os recursos para as próximas gerações”, conclui Magaro.
Mais saúde para as crianças Xavante
Indígenas também coletam sementes fora do Território Indígena do Xingu. Desde 2011, os Xavante da aldeia Marãiwatsédé, na Terra Indígena Marãiwatsédé, fazem parte da Rede de Sementes do Xingu. Já a aldeia Ripá da mesma etnia, na Terra Indígena Pimental Barbosa, se juntou ao trabalho de coleta e comercialização de sementes florestais para a recuperação de áreas degradadas em 2013.
Os benefícios para a aldeia já são notados mesmo com pouco tempo de coleta. O cacique José Guimarães Tserenhomo relata que, além de conseguirem gerar renda da floresta de forma sustentável, o trabalho de incursão e coleta no cerrado e na floresta aproximou os mais novos da tradição cultural das sementes e que já nota mudanças nos hábitos alimentares. “As crianças estão mais saudáveis, elas pedem mangaba, caju, e estão vendo a importância de replantar essas espécies para garantirmos a soberania alimentar da aldeia”, ele explica.
A coleta de sementes dentro das Terras Indígenas ajuda a conservar o território e a manter o modo de vida dos povos da floresta. Além disso, os ganhos obtidos com a proteção da sociobiodiversidade da Amazônia impactam todo o país. Ao manter a floresta em pé, a política nacional de clima, por exemplo, se beneficia de estoques de carbono e a emissão de gases de efeito estufa, os principais responsáveis pelas mudanças climáticas, é evitada. Para se ter uma ideia, estima-se que os territórios indígenas na Amazônia brasileira representem uma reserva de cerca de 13 bilhões de toneladas de carbono, 30% do que existe estocado na floresta.
“Se tem baru eu corto”
Parte dos quase 500 coletores dos 13 núcleos coletores da Rede de Sementes do Xingu são agricultores familiares de assentamentos da região do Araguaia Xingu que coletam as sementes próximas às suas residências. João Carlos Ferreira dos Santos, coletor do assentamento Dom Pedro, ressalta que, além da renda para as famílias, o trabalho com as sementes ajuda a conscientizar a população sobre o reflorestamento.
“Muito pequeno agricultor quer imitar o grande e pensa em derrubar as matas e usar agrotóxico, mas com o trabalho das sementes ele passa a entender que é possível ter renda da natureza e que, se replantar, terá de onde tirar mais semente e melhorar sua renda. É uma forma de sustento para as famílias, de fazer as pessoas sentirem amor pela natureza e de conscientizar as próximas gerações”, relata.
O quintal de João é um exemplo de rica biodiversidade. De espécies como o jatobá de brinco, do qual ele coleta as sementes, aos pés de acerola e às flores vermelhas que decoram sua casa, ele reflorestou boa parte de sua parcela de terra. Cheio de energia, ainda construiu um espaço ao lado de sua casa para poder beneficiar as sementes e buscar novas técnicas para aprimorar seu trabalho.
“Para beneficiar algumas espécies eu uso um chinelo e uma peneira bem fina. Foi testando e procurando a melhor solução que cheguei nessa forma de limpar a semente”, ele explica. Já para o baru, cuja semente é envolta por uma casca muito dura, ele construiu uma espécie de foice. “Eu não canso, enquanto tiver baru eu corto”, diz enquanto mostra um saco repleto de sementes. “Fico muito feliz de saber que as sementes dos pequenos produtores vão ajudar a recuperar áreas de floresta.”
Muvuca de qualidade
A diversidade das origens socioculturais dos coletores da Rede de Sementes do Xingu representa uma rica integração de realidades, identidades e culturas que marcam toda a cadeia de valor. Ela está presente nas diferentes áreas de coleta na bacia do rio Xingu, na variedade de atores, conhecimentos e saberes envolvidos, e também na abrangência de espécies de sementes que são coletadas. São cerca de 200 espécies nativas que passam pelas mãos dos coletores e chegam às nove Casas de Sementes espalhadas nos núcleos coletores.
Além de armazenar e comercializar as sementes, as Casas possuem técnicos responsáveis por um rigoroso controle de qualidade do que foi coletado e testes de emergência em campo são realizados antes da disponibilização das sementes para o mercado. “As sementes são avaliadas em várias etapas, do momento da coleta até a Casa de Sementes e com os testes de germinação. É fundamental garantir que as sementes utilizadas na restauração florestal possuam boa qualidade. É dessa forma que vamos conseguir cumprir a legislação e comercializá-las”, explica Guilherme Henrique Pompiano do Carmo, responsável técnico pela Associação Rede de Sementes do Xingu.
A Rede também possui uma parceria com a Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), que disponibiliza um time de pesquisadores para a realização de testes em laboratório que controlam luz e temperatura, fatores que influenciam na germinação das mesmas. Dessa forma, é possível entender qual a melhor forma de quebrar a dormência das sementes de algumas espécies, como realizar o plantio e garantir a melhor restauração florestal possível.
Diferentes técnicas podem ser utilizadas para a recuperação de áreas degradadas e a muvuca de sementes tem se popularizado. Mistura de sementes nativas e de adubação verde com areia que forma um insumo homogêneo propício para a formação da estrutura da floresta, a muvuca consegue colocar de quatro a dez vezes mais árvores por hectare e com metade do custo do que seria um plantio com mudas. “É possível ver que a estrutura da área recuperada fica mais semelhante à estrutura de uma floresta em regeneração natural. Há árvores de diferentes tamanhos, em vários extratos”, explica Eduardo Malta Campos Filho, especialista em restauração florestal do ISA. Nos últimos dez anos, entraram em processo de recuperação quase 4 mil hectares com as sementes da Rede. [Acesse aqui o Guia da Muvuca]
“Hoje pouco se conhece das nossas florestas e das espécies nativas que aí estão e não será possível recuperar a Amazônia sem o insumo básico que é a semente florestal. A Rede de Sementes tem conhecimento acumulado para poder propiciar restauração florestal com qualidade para que a gente possa ter a Amazônia reflorestada no futuro”, conclui Rodrigo Junqueira, do ISA.
O mini-documentário “Xingu, histórias dos produtos da floresta”, produzido no âmbito do projeto “Sociobiodiversidade Produtiva no Xingu”, foi apoiado pelo Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES).
Fonte: Instituto Socioambiental (ISA)