Em seu novo livro, Ladislau Dowbor oferece chaves preciosas para decifrar a metamorfose do sistema e suas novas formas de dominar e concentrar riquezas. Também sugere: é possível vencê-lo – mas com outros métodos…
Cinco famílias lideradas por homens brancos agora concentram mais riqueza que metade – 3,5 bilhões – dos habitantes do planeta. Em todo o Ocidente, a democracia declina e perde apoio porque é vista, cada vez mais, como um regime dos ricos e corruptos. O aquecimento global já se materializa na forma de mega-icebergs desprendendo-se da Antártida (sem falar nas primeiras levas de refugiados climáticos), mas os governantes permanecem desinteressados ou impotentes. No Brasil, os bancos privados multiplicam seus lucros em meio à maior recessão da História – e são o setor mais bem representado em todos os governos, antes e depois do golpe. Apesar da imensa concentração de riquezas, o sistema vai mal, deparando-se com taxas de crescimento medíocres e o risco crescente de uma nova crise financeira, que seria ainda mais devastadora e possivelmente incontrolável.
O que estes fatos, aparentemente díspares, têm a ver uns com os outros? Mais importante: como decifrar os mecanismos que impulsionam em conjunto todos eles? Será possível revertê-los e escapar de uma armadilha que parece aprisionar tanto a humanidade quanto a própria ideia de emancipação social? Encontrar as respostas tem sido, desde a virada do século, o desafio difuso que persegue ativistas em todo o mundo – e que mobiliza um punhado de pensadores ligados às lutas sociais. Em A Era do Capital Improdutivo, Ladislau Dowbor revela que o crescimento abissal das desigualdades, a ausência de limites para a depredação da natureza e o esvaziamento da política podem ser faces de um só fenômeno. Uma nova metamorfose do capitalismo (para usar expressão de Celso Furtado) criou um sistema que já não pode ser compreendido – muito menos superado – manejando apenas as chaves analíticas do passado. O autor não se contenta em constatar o déficit teórico: ele adianta pistas para ultrapassá-lo, ou seja: para tramar um novo projeto pós-capitalista.
A natureza mutante do capitalismo já havia sido destacada por Karl Marx. Mais recentemente, François Chesnais formulou, em A mundialização do capital (1988) e em obras posteriores, a hipótese do declínio do industrialismo e o surgimento de um “regime de acumulação sob dominância financeira”. Ladislau está de acordo, e oferece farta documentação e dados a respeito. Para dar ao leitor noção das dimensões do cassino financeiro global, mostra, por exemplo, que só as transações financeiras com “derivativos” – aquelas em que não se negociam mercadorias, mas apenas índices (a taxa de inflação, o preço de uma moeda, a cotação de uma commodity) atingiram 710 trilhões de dólares em 2013 – ou 9,6 vezes o PIB mundial naquele ano.
Mas A Era do Capital Improdutivo situa esta transição num conjunto de outras transformações civilizatórias marcantes, que se acentuam a partir dos anos 1950. A primeira delas é uma drástica mudança na arquitetura do poder mundial. Pela vez desde a Paz de Westphalia (1648), os Estados-Nações estão deixando de ser os atores centrais. Em seu lugar, emergem as megacorporações globais – grupos financeiros gigantescos; conglomerados industriais ligados e eles; um punhado de dealers que controlam o grosso do comércio de alimentos, minérios e combustíveis no planeta.
A passagem de bastão se dá por dois motivos. Primeiro, a concentração empresarial, mais intensa que nunca. Apoiado num vasto estudo do Instituto Federal Suíço para Pesquisa Tecnológica – o renomado ETH –, Ladislau demonstra que 147 grandes corporações (75% delas financeiras) controlam hoje, sozinhas, 40% do PIB do mundo. Numa espécie de “núcleo do núcleo” estão 28 “instituições financeiras sistematicamente importantes” (SIFIs, em inglês), cada uma das quais tem capital médio de US$ 1,8 trilhão (superior ao PIB do Brasil, a sétima economia do planeta).
O problema não é só o gigantismo. As megacorporações atuam em todo o mundo, enquanto os Estados-Nações são limitados por fronteiras. Todas mantêm sedes e filiais em “paraísos fiscais” (um capítulo do livro é reservado a examiná-los), onde podem articular oligopólios, evadir impostos ou praticar fraudes “livres” do constrangimento de governos ou Judiciários. Mais recentemente, diversos acordos comerciais permitem-lhes formar tribunais paralelos (Investor-State Dispute Settlement, ou ISDS, em inglês), nos quais podem exigir indenizações de Estados que adotem normas consideradas hostis a seus interesses (por exemplo, a redução da jornada de trabalho ou uma nova lei de proteção da natureza…).
O resultado é o esvaziamento rápido da democracia. Porque surgiu – acima dos Estados e com força superior à deles – uma nova esfera global de poder. Está inteiramente colonizada: em seu interior, o capital reina absoluto; não há eleições, parlamentos, governos escolhidos pela sociedade, transparência. Quem conhece a agenda do FMI, ou sabe como votam os representantes brasileiros na Organização Mundial do Comércio? Como frisa o autor, “o poder mundial realmente existente está nas mãos de gigantes que ninguém elegeu e sobre os quais há cada vez menos controle”.
A terceira grande transformação está ligada às novas relações entre a natureza, ser humano e conhecimento; ao advento do que passamos a chamar de Antropoceno. Ladislau insere-se claramente entre os autores que o veem como resultado do predomínio das lógicas mercantis. O livro resgata, à página 24 um gráfico desconcertante e pouco conhecido, em que está representada a evolução de fenômenos normalmente não relacionados: aumento da população humana, PIB, concentração de CO² na atmosfera, número de automóveis, consumo de papel, extinção de espécies, destruição das florestas e outros.
As curvas são coincidentes: tudo dispara a partir de 1950, num claro sinal de que entramos em outra fase. O autor analisa: “todos querem consumir mais, cada corporação busca extrair e vender mais, e tecnologias cada vez mais potentes permitem ampliar o processo (…) Para a maioria dos economistas, o crescimento é tão necessário quanto o ar que respiramos”. Duas consequências dramáticas, já visíveis, são o declínio abrupto da vida marinha e os sinais de uma sexta extinção em massa das espécies: “em apenas quarenta anos, de 1970 a 2010, destruímos 52% da fauna do planeta”.
A devastação da natureza é facilitada pelo “avanço” tecnológico, mas em mais de um trecho o livro demonstra: esta mesma técnica ameaça, perigosamente, criar uma sociedade cada vez mais desigual e alienada. A concentração de riquezas é possível, em escala nunca vista, porque um pequeno número de corporações controla e processa informações sobre os mercados e inclusive sobre nossas vidas. O sinal mais evidente de que as questões social e ambiental se entrelaçam está expresso numa formulação ao mesmo tempo feliz e terrível: “estamos destruindo o planeta (…) de forma muito particular para o proveito do 1%”.
Em muitos de seus textos recentes, Immanuel Wallerstein tem sustentado que o capitalismo, tal como o conhecíamos, vive em crise terminal; mas que não é possível saber, o que o substituirá – e não se deve afastar a hipótese de que seja um sistema ainda mais desigual, mais hierárquico, mais alienante e menos democrático. Em seu novo livro, Ladislau Dowbor parece sugerir que este cenário de pesadelo está sendo montado agora, diante de nossos olhos.
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O próprio livro fornece, porém, elementos para enxergar como tal construção é instável; como resta, portanto, espaço para a resistência e a busca de alternativas. O livro trata, em especial, de duas vulnerabilidades. A primeira é o declínio do próprio crescimento econômico – objetivo essencial da lógica mercantil –, acompanhado de riscos novos de terremotos financeiros avassaladores.
A concentração de riquezas, explica o autor, acaba convertendo-se num obstáculo à reprodução do ciclo do capital. Sob o regime de dominância financeira, cresce o rentismo – a capacidade de apropriar-se da riqueza social sem nada produzir. O Brasil (a que Ladislau dedica dois capítulos) é um exemplo extremado. O sistema financeiro estende seus tentáculos tanto sobre o orçamento público (de onde são desviados R$ 400 bilhões, ou cerca de treze programas Bolsa-Família ao ano) quanto sobre as famílias e empresas (reduzindo a capacidade de consumo e as margens de lucro). Em meio ao terceiro ano seguido de recessão, os lucros dos bancos não cessam de crescer.
Mas o resultado desta punção é, em todo o mundo, a economia estagnada. Desde os abalos de 2008, não houve recuperação efetiva. O autor explica, dando tintas atuais às ideias de Marx sobre as crises de superprodução: os mais ricos entesouram seu dinheiro; são as maiorias que gastam quase tudo o que recebem – mas se elas são atingidas pela desocupação e pela queda dos salários, quem manterá a economia girando? Que empresários ousarão investir, se os consumidores finais estão quebrados?
A segunda debilidade crucial é a ineficiência das empresas. Para desenvolver o tema, Ladislau recorre a seus estudos e experiência como gestor e planejador – algo raro entre a esquerda. A intensa concentração empresarial, explica, criou conglomerados enormes e disformes, movidos cada vez mais pela lógica única da rentabilidade financeira, incapazes de atender às demandas sociais e mesmo de evitar fraudes e tragédias. O exemplo emblemático é o do desastre de Mariana: “entre o engenheiro da Samarco que sugere o reforço na barragem e a exigência da rentabilidade da Vale, Billiton e Bradesco, a relação de forças é radicalmente desigual”. O resultado é o soterramento do distrito de Bento Rodrigues.
Os exemplos de ações fraudulentas entre as grandes corporações, aliás, multiplicam-se. O sistema financeiro é líder, mas a Justiça garante blindagem: “Praticamente todos os grandes grupos [internacionais] estão com dezenas de condenações, mas em praticamente nenhum caso houve sequelas judiciais como condenação pessoal dos responsáveis (…) Basta a empresa fazer, enquanto pratica a ilegalidade, uma provisão financeira para enfrentar os prováveis custos do acordo judicial”. A velha mídia cumprirá seu papel, ocultando sempre que possível os crimes e construindo, contra todas as evidências, a imagem de corporações responsáveis e de famílias saltitantes, felizes com seu banco. Mas as enxurradas de publicidade não apagam os fatos: tem futuro um sistema que não é capaz sequer de cumprir sua promessa de crescimento e eficiência?
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Por outro lado, é possível enfrentar este capitalismo metamorfoseado com as ideias e personagens dos séculos passados? Ladislau Dowbor tem pistas também para esta questão. Em certo trecho, ele recomenda “aos sindicatos e movimentos sociais” examinar melhor as novas formas de extração de mais-valia. Explica: “A forma tradicional – o patrão que produz mas paga mal, ensejando lutas por melhores salários – foi brutalmente agravada por um sistema mais amplo de extração do excedente produzido pela sociedade”. Nos novos tempos, “todos somos explorados, em cada compra ou transação, seja através dos crediários, dos cartões, tarifas e juros abusivos, seja na estrutura injusta da tributação”. Há aqui uma fraqueza por excesso: “O rentismo é hoje, sistematicamente mais explorador, e pior, um entrave aos processos produtivos e às políticas públicas. (…) Sua grande vulnerabilidade está no fato de ser improdutivo, de constituir dominantemente uma dinâmica de extração sem contrapartida à sociedade”.
“Quem serão os atores sociais” aptos a enfrentar este poder? Pergunta Ladislau em outro ponto, que talvez merecesse ser mais destacado no livro. Ele mesmo responde: “Os partidos, os governos – mesmo democraticamente eleitos – e até os sindicatos estão fragilizados e sem credibilidade. O que era uma classe trabalhadora relativamente homogênea e com capacidade de articulação (…) é hoje extremamente diversificada pela multiplicidade e complexidade de inserção nos processos produtivos”. A esperança estaria numa espécie de novo proletariado, já entrevisto por autores como David Harvey e Toni Negri: “Os prejudicados do sistema são a imensa maioria, e não faz sentido o 1% pesar mais que o 99%”.
Como inverter a balança – ou seja, como abordar a luta pela emancipação social na Era do Capital Improdutivo? Aqui, Ladislau destoa tanto do pensamento econômico tradicional quanto de grande parte dos economistas de esquerda, tão autolimitados pelo mito segundo o qual “não há orçamento” para atender às demandas sociais. É preciso, mostra o livro, opor, às lógicas contábeis da “austeridade” e dos “ajustes fiscais”, outras realidades.
“Se há uma coisa que não falta no mundo são recursos”, lembra Ladislau – e aqui ele parece atualizar a ideia de Marx sobre a contradição entre a técnica (as “forças produtivas”) que avança, e o sistema social (as “relações de produção”) que se vê obrigado a limitá-la – porque podem ser uma ameaça aos privilégios. O livro ressalta: “O imenso avanço da produtividade planetária resulta essencialmente da revolução tecnológica que vivemos. Mas não são os produtores destas transformações que aproveitam. Pelo contrário, ambas as esferas, pública e empresarial, encontram-se endividadas nas mãos de gigantes do sistema financeiro, que rende fortunas a quem nunca produziu e consegue nos desviar radicalmente do desenvolvimento sustentável, hoje vital para o mundo”.
O autor resgata dados desconcertantes – mas sempre ocultados, porque incômodos. “Se arredondarmos o PIB mundial para 80 trilhões de dólares, chegamos a um produto per capita médio de 11 mil dólares. Isto representa 3.600 dólares por família de quatro pessoas, cerca de 11 mil reais por mês. É o caso também no Brasil, que está exatamente na média mundial em termos de renda. Não há razão objetiva para a gigantesca miséria em que vivem bilhões de pessoas, a não ser justamente o fato de que o sistema está desgovernado, ou melhor, mal governado e não há perspectivas no horizonte”.
Mas como ir além do sistema? Ladislau frisa, desde o início, que sua experiência o ensinou a passar ao largo das ideologias – os “ismos”, como ele as chama. Quer saídas práticas. Porém, a radicalidade do que propõe, sempre com base em um imenso volume de dados articulados, convida a especular: tais respostas não cabem no sistema a que estamos submetidos. Por isso, talvez não haja heresia em dizer que o autor pratica um “pós-capitalismo discreto”. É como se dissesse, à moda de Leminsky: não se afobem: “distraídos, venceremos”.
O livro termina com o “Esboço de uma Agenda”, um brevíssimo ensaio construído em coautoria com Ignacy Sachs – um dos propositores do conceito de “ecossociodesenvolvimento – e Carlos Lopes – pesquisador africano, ex-subsecretário-geral da ONU.
Proposto em 2010, o rascunho chama a atenção por sua atualidade. Nele, propostas estruturais – como a instituição Renda Básica da Cidadania, a redução da jornada de trabalho, a reorganização do sistema financeiro, a reorientação dos sistemas tributários e a livre circulação do conhecimento (em oposição à “propriedade intelectual” e aos sistemas de “copyright”) – figuram lado a lado com mudanças de atitude decisivas (como a “moderação do consumo” e a “generalização da reciclagem).
É pouco, certamente – e é ótimo que seja assim. Reconstruir um projeto de emancipação social será obra de multidões e exigirá décadas de imaginação, sondagens, tentativas, erros, novas reflexões e criações. O que o livro de Ladislau Dowbor reitera é que o esforço começou; que já somos capazes de nos perceber submetidos à Era do Capital Improdutivo – mas também de buscar as saídas; que, em oposição ao futuro distópico que hoje nos ameaça, podemos tatear o pós-capitalista.