Para a professora Erminia Maricato, ainda que alguns governantes tratem a questão de forma fragmentada, é preciso muito debate e participação popular para definir as cidades que queremos viver
Apesar de ser menos discutida do que as reformas política, agrária e tributária, a questão urbana tem voltado à agenda política nacional. Ainda que alguns governantes a trate de forma fragmentada, fato é que a questão é ampla e requer muito debate e participação popular para definir as cidades que queremos viver e deixar para as futuras gerações. Meio ambiente, transporte, mobilidade, saneamento, educação e saúde são algumas das áreas que se encontram numa discussão sobre a democratização da cidade, que passa, inevitavelmente, pela reforma política e democratização dos meios de comunicação. Para tratar da complexidade do tema o blog Padrão Brasil, em parceria com a rede Plataforma Política Social, ouviu a professora livre docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Erminia Maricato, que dedicou décadas ao estudo do tema. Ela costuma dizer que “não adianta fazer o urbanismo do espetáculo, passando por cima de décadas de demandas atrasadas”, mas vê na juventude dos movimentos sociais uma esperança na discussão do direito à cidade. Ermínia Maricato é livre docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e membro da Plataforma Política Social.
Quando se diz que o Brasil necessita de uma reforma urbana, do que se fala? Quais são os indicativos de que a reforma urbana é imprescindível no Brasil contemporâneo?
A necessidade da reforma urbana salta aos olhos quando se constata as condições de vida da maior parte dos trabalhadores que vivem segregados nos bairros periféricos ou municípios-dormitórios. Ou quando se observa o sacrifício diário que é imposto nos transportes coletivos. Um capítulo especial tem sido dedicado às mulheres e jovens. Um grande exército de trabalhadoras domésticas (aproximadamente 30% de chefes de família são mulheres nas regiões metropolitanas) abandonam seus próprios filhos em bairros periféricos para passar o dia trabalhando e circulando com a finalidade de obter salários que não passam de dois salários mínimos. Os jovens vivem uma espécie de “exílio na periferia”, já que não há transporte acessível e eficiente para sair do bairro que, muitas vezes, não tem escolas adequadas, centros esportivos e culturais. Eu ouvi queixas de jovens que não podiam ir ao centro ver um show ou filme e voltar para casa após a meia-noite, pois os ônibus não circulam após esse horário. A vida nessa “subcidade” não está imune às imposições da máquina de alienação: felicidade é consumir. A violência é um resultado absolutamente visível e previsível, potencializada por organizações criminais que ocupam o espaço na ausência do Estado ou, por outro lado, potencializada pela sua presença, por meio de uma polícia violenta que conhece raça e cor.
No mais, predomina a política do favor. Reforma urbana é direito à cidade. É a democracia urbana. É a antibarbárie. Reforma urbana é a luta de classes reconhecidas nas cidades enquanto palco de relações sociais, mas também por meio das cidades enquanto como produto e mercadoria que envolvem exploração, mais valia, alienação.
Outros aspectos da nossa realidade que reafirma a necessidade da reforma urbana dizem respeito ao meio ambiente. A forma de expansão descontrolada das metrópoles no Brasil (e elas fornecem um modelo para as demais cidades) compromete com esgotos domésticos, rios, córregos, lagos, lagoas e praias. Os mais pobres não cabem nas cidades (mais de 80% do déficit habitacional se encontram nas faixas entre zero e três salários mínimos) e como precisam inevitavelmente de um lugar para morar, ocupam encostas íngremes, mangues, dunas ou Áreas de Proteção de Mananciais (APMs).
Em São Paulo, aproximadamente dois milhões de pessoas moram nas APMs. E isso não se dá por falta de leis de proteção ambiental. Essas áreas não interessam ao mercado imobiliário devido à legislação proibitiva. São as áreas que sobram para os que não têm lugar na cidade formal: áreas de proteção ambiental e áreas de risco de desmoronamento. Outros aspectos do desastre ambiental decorrentes desse predatório padrão de uso e ocupação do solo estão na impermeabilização contínua da superfície da terra, incluindo o tamponamento de córregos, o que acarreta frequentes enchentes, poluição acentuada do ar e expansão horizontal desmedida que reforça a dependência em relação ao automóvel.
Como o nível de desenvolvimento brasileiro contribuiu com a atual situação urbana dos grandes centros brasileiros?
A marca do subdesenvolvimento está presente tanto nas características da rede de cidades com grandes metrópoles que centralizaram e centralizam as relações econômicas com o interior e o exterior (esse foi um dos principais objetos do livro Imperialismo e urbanização na América Latina, organizado por Manuel Castells) como também nas características intraurbanas. Apesar da reestruturação produtiva, globalização, financeirização e ideário neoliberal, eu continuo achando que o viés patrimonialista assegurou às elites brasileiras uma relação vantajosa diante dos interesses capitalistas internacionais na produção das cidades. Estou de acordo com Lessa e Dain (1983) que captura da renda fundiária ou imobiliária são prerrogativa dessas elites locais ou nacionais. Um mercado altamente especulativo de um lado e a segregação, exclusão ou apartheid territorial que remete grande parte da população para fora das cidades (ou para favelas), são partes da mesma moeda.
A autoconstrução ilegal da moradia fora das áreas urbanizadas é determinada pelos baixos salários (Francisco de Oliveira, 1972) e pelo mercado restrito e excludente. À industrialização dos baixos salários corresponde a urbanização dos baixos salários. Devido a esse problema estrutural o Estado não tem o controle sobre o uso e a ocupação do solo urbano em toda sua extensão. A legislação urbanística se aplica apenas a uma parte da cidade que é dominada pelo mercado imobiliário capitalista, strictu sensu. Esse padrão de uso e ocupação do solo, que tem um exemplo nos municípios-dormitórios, das regiões metropolitanas, não pode ser desligado da baixa e precária mobilidade decorrente da pouca importância dada aos transportes coletivos.
É possível vencer esse atraso?
Durante muitos anos eu achava que era. Retomamos a proposta de reforma urbana iniciada em 1963 e, na luta contra a ditadura, construímos um movimento nacional, forte e diverso com participação de lideranças sociais, sindicais, ONGs, e também pesquisadores, professores universitários, urbanistas, engenheiros, advogados, assistentes sociais, sanitaristas, etc. Elegemos parlamentares, prefeitos e até senadores. Conquistamos um significativo arcabouço legal (Constituição Federal de 88, Estatuto da Cidade, Planos Diretores Participativos, Marco Regulatório do Saneamento, Lei Federal dos Resíduos Sólidos, Lei Federal da Mobilidade Urbana) e institucional (Ministério das Cidades, Conferência Nacional das Cidades e centenas de conselhos participativos em todos os níveis de governo). Enquanto os investimentos estavam escassos (anos 1980 e 1990) vivemos um período muito criativo nos governos locais, com experiências que ficaram famosas no mundo todo, como o orçamento participativo, CEUs, urbanização de favelas etc. Estamos falando de reformas que podem conviver com relações capitalistas numa sociedade mais democrática. Quando o governo federal retomou os investimentos – chamado por alguns de neodesenvolvimentismo – as cidades foram tomadas de assalto por alguns capitais: empreiteiras de construção pesada (infraestrutura, em especial rodoviária), incorporadores imobiliários e indústria automobilística.
A taxa de desemprego nunca foi tão baixa desde que é registrada, nos moldes atuais. Mas as cidades explodiram, seja pelos incríveis congestionamentos viários (o que atingiu também a classe média), seja pelo aumento fantástico dos preços dos imóveis e aluguéis reproduzindo, em novas bases, a segregação e a exclusão urbanas. Com as obras da Copa do Mundo (e especulação imobiliária), esse impacto nas cidades se aprofundou. Os subsídios aos automóveis duplicou seu número em poucos anos. Os subsídios à moradia, em contexto de mercado fundiário e imobiliário sem controle, impactaram o preço da terra e dos imóveis.
A proposta de reforma urbana tinha como núcleo central a reforma fundiária. Mas a função social da propriedade ficou apenas no papel. Ainda que esse papel seja a Constituição Federal e a Lei Federal Estatuto da Cidade. É preciso ainda dois aspectos políticos que contribuíram com essa derrota da utopia da reforma urbana, além, evidentemente, da conjuntura capitalista internacional: 1) as forças que propuseram a reforma urbana foram engolidas pela institucionalidade, assim como alguns partidos de esquerda, e perderam a capacidade transformadora; 2) o financiamento das campanhas eleitorais, especialmente na escala local, está imbricado com as forças que têm nas cidades seu grande negócio.
Isto posto, o que é possível fazer para vencer a barbárie que se instalou nas cidades brasileiras? Na escala da política urbana, e isso é competência do poder municipal, aplicar as leis, os programas e planos diretores que ficaram nas gavetas e nos discursos. O transporte coletivo, por exemplo, é prioridade legal em todos os planos diretores, mas na prática é o carro e o rodoviarismo que comandam a mobilidade e os investimentos em consonância com o mercado imobiliário. Isso quer dizer que túneis, pontes, viadutos, novas avenidas, além de se prestarem para a visibilidade que o marketing eleitoral explora e render dividendos para campanha eleitoral, agregam valor às propriedades localizadas nos seus arredores. A proposta de reforma urbana, com ênfase na função social da propriedade e no IPTU progressivo, não foi implementada com a finalidade de democratizar as cidades.
Na escala metropolitana, precisamos avançar numa gestão compartilhada. Evitar que cada município aponte um rumo diverso, ou sem levar em consideração o outro, numa região em que a urbanização é contínua e desconhece limites institucionais. Nas metrópoles não há mais solução municipal para políticas de habitação, transporte, saneamento ambiental, drenagem, coleta e disposição final do lixo, coleta e tratamento de esgoto, captação e distribuição da água, além de saúde e educação. A Constituição de 1988 remeteu à esfera estadual a competência da definição de regiões metropolitanas e sua gestão. Mas os governadores e os legislativos estaduais não querem afrontar os municípios e suas políticas paroquiais. Esses desafios ainda se mantêm atualizados.
Assim como outras questões sociais, econômicas e políticas estruturais, como uma reforma urbana pode contribuir com o desenvolvimento (em seu sentido mais amplo) da sociedade brasileira?
A luta salarial não dá conta de melhores condições de vida nas cidades. Os governos Lula e Dilma lograram melhorar a taxa de salários. No entanto, essa melhora que permite comer melhor, comprar motos, carros, eletrodomésticos, não permite a compra de melhores transportes coletivos (porque o automóvel não resolve o problema). Também não impede o avanço de epidemias como a dengue. Há que se fazer reformas e uma delas passa pela terra urbana ou terra urbanizada. Além do que foi apontado, poderíamos calcular o custo social dessa cidade espoliada que beneficia apenas alguns. Acho incrível que os economistas não reconheçam o impacto que a especulação imobiliária tem na inflação. Eu vivo isso cotidianamente no meu bairro com o preço dos aluguéis, do estacionamento, do cafezinho etc.
Temos alguns estudos que revelam o custo das aproximadamente 40 mil mortes anuais e perto de 400 mil feridos no trânsito ao sistema previdenciário. Temos estudos que mostram o impacto e o custo da poluição do ar na saúde das pessoas. Temos ainda estudos que mostram o custo das horas paradas no trânsito, mas como disse alguém “tudo isso contribui para aumentar o PIB”. Até mesmo os doentes nos hospitais. A professora Tania Bacelar lembra sempre dessa invisibilidade do espaço, do território, em nossos debates nacionais. No entanto, sei que a resposta a essa pergunta não é simples.
Em recente artigo publicado na revista Política Social e Desenvolvimento você menciona que “exceção é mais regra do que a exceção e a regra é mais exceção do que regra”, no cotidiano das cidades. O que isso significa?
Essa frase do teatrólogo Bertold Brecht expressa bem a dialética presente nas cidades brasileiras, onde a lei se aplica de acordo com as circunstâncias. Grande parte da população urbana, exatamente a de mais baixas rendas, mora ilegalmente, desconhecendo legislação de parcelamento do solo, ambiental, zoneamento, código de obras e edificação etc. Essa ilegalidade parece fornecer um chão para todas as outras: não há polícia, cortes ou tribunais para a solução de conflitos. Os direitos básicos previstos em lei não são observados. A proporção dessa população varia conforme a cidade e a região do país. No Norte e parte do Nordeste mais de 50% da população urbana moram na cidade ilegal onde “a exceção é mais regra que exceção”. Isso é, sem dúvida, chão fértil para a violência.
Interessante lembrar como contraponto: a legislação e os planos diretores são detalhistas e os procedimentos de controle do uso e ocupação do solo são profusamente burocráticos.
A sociedade brasileira que se sente cada vez menos representada por seus governantes pode delegar as discussões e realização de uma tarefa dessa magnitude exclusivamente aos políticos?
Não há a menor dúvida de que precisamos de uma reforma política no país. Os interesses do agronegócio e da especulação imobiliária são dominantes no Congresso Nacional e isso tem a ver com financiamento de campanha.
Para a reforma urbana precisamos também combater o analfabetismo urbanístico ou geográfico que atinge também muitos economistas, advogados, etc. A terra é um componente que se renovou na globalização financeirizada. Cada pedaço de cidade é único. A aplicação da função social da cidade, da função social da propriedade e do IPTU progressivo é fundamental. A especulação imobiliária empobrece as cidades. Mas, muitos a veem como progresso e desenvolvimento. A universidade teria uma tarefa importante aí.
Na década de 1960 os partidos de esquerda defendiam a necessidade de uma reforma urbana no Brasil. Hoje, quem são os defensores?
Penso que num determinado momento, entre 2007 e 2013, a reforma urbana ficou totalmente esquecida. Parecia a alguns que um montão de obras iria resolver os problemas do desenvolvimento do país e das cidades. Acontece que as obras não obedeceram a alguns pré-requisitos: a precedência de uma reforma fundiária/imobiliária e a obediência a um planejamento baseado nas necessidades sociais. Eu costumo dizer que são obras sem plano e plano sem obras. Estamos em dívida com o transporte coletivo há décadas. Não adianta querer fazer o fetiche (urbanismo do espetáculo) do futuro trem bala, monotrilho – passando por cima de décadas de demandas atrasadas. Os lobbies atuam nas câmaras municipais, assembleias legislativas, antecâmaras de governos e partidos sem descanso. Mas acho que uma nova geração vem aí. Jovens do MPL, Intervozes, Levante Popular da Juventude, MST, entidades de mulheres, de negros, estão começando a construir uma unidade popular que tem muito a ver com cidade e democracia. Constatei a busca dessa unidade em algumas cidades, já que sou muito demandada para falar a eles. Claro que o momento é de muita tensão, já que o jogo dos conservadores é pesado, o que inclui, evidentemente, a grande mídia.
Como a questão urbana é muito complexa, vejo como muito importante o papel dos profissionais de arquitetura, urbanismo, engenharia, assistência social, agrônomos, paisagistas, médicos, sanitaristas, economistas, entre outros. Mas é uma minoria que tem o pé na realidade e tem propostas concretas para a solução de problemas. Abundam profissionais que vendem ideologia sob a forma de resultados práticos. No Judiciário, a legislação urbana é majoritariamente desconhecida. Mas existe no Brasil uma expertise considerável ligada a problemas urbanos.
Fonte: Rede Brasil Atual