Ativistas temem que governos usem episódio para criminalizar ocupações; desabrigados criticam prefeitura por ‘desviar’ doações para abrigos
A montanha de pedaços de concreto e formas retorcidos de metal que havia sido um edifício de 26 andares no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, ainda soltava fumaça quando o governador Márcio França (PSB) declarou, na manhã desta terça (1/5), que promotores e juízes precisavam ter “boa vontade” para “não dar liminares” a favor de pessoas que ocupam imóveis vazios e que “essas pessoas precisam ser tiradas daí”.
Horas depois, o ex-prefeito e candidato a governador João Dória (PSDB) foi além. “O prédio foi invadido e parte desta invasão financiada e ocupada por uma facção criminosa”, declarou.
“Uma tragédia como essa é um prato cheio para criminalizar os movimentos de moradia”, afirma o militante Eli Carlos Mariano, da União dos Movimentos de Moradia. O padre Júlio Lancelotti, vigário episcopal para a população de rua, concorda: “As declarações do governador e do ex-prefeito indicam que há um risco muito grande de criminalizar as ocupações”. Para ele, não se pode culpar os sem-teto por tragédias como a do Paissandu. “Se houvesse respostas adequadas do poder público na questão da moradia, não ocorreria uma tragédia dessas.”
O edifício Wilton Paes de Almeida foi atingido por um incêndio que começou no quinto andar e daí se espalhou. Por volta de 2h50, o prédio desabou. Pertencente ao governo federal, o imóvel estava abandonado e, há aproximadamente seis anos, havia sido ocupado por sem-tetos do MLSM (Movimento de Luta Social por Moradia).
Atualmente, havia no local cerca de 150 famílias, que ocupavam os dez primeiros andares. Os moradores ouvidos pela Ponte contaram que pagavam uma taxa de contribuição para a manutenção do prédio, que podia variar de R$ 150 a R$ 450.
“Esse edifício não estava ocupado por um movimento organizado. Muitas dessas ocupações sem organização são feitos por oportunistas que usam as ocupações para obter lucro por meio do aluguel”, afirma o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, que foi relator do Plano Diretor Estratégico de São Paulo. Segundo ele, o prédio havia se tornado “uma grande favela vertical” e não poderia ser usado como moradia.
“Ali era uma laje de concreto, sem divisórias de alvenaria, com parede de vidro, que não tinha condição que permitisse abrigar famílias. Colocaram uma série de tapumes para ocupar e espaço e criaram condições favoráveis a um incêndio. E havia uma estrutura de aço que, com grande temperatura, fica comprometida”, afirma Bonduki. Para o arquiteto, é preciso distinguir ocupações como a do prédio que desabou no Paissandu daquelas feitas por movimentos de moradia organizados, que “ocupam prédios com condições de virar moradia” e “conseguem melhorar as condições” dos locais que ocupam.
Presidente do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, Maurílio Ribeiro discorda da avaliação de que o edifício não serviria para habitação. “O prédio é moderno, estava em boas condições e, com algumas adaptações, poderia servir para moradia. Quando um movimento ocupa, ele cuida do prédio. O que ocorreu foi um acidente”, afirma.
Atualmente, segundo a Prefeitura, há cerca de 70 prédios ocupados na região central por aproximadamente 4 mil famílias sem-teto, a maioria em prédios particulares. Sobre o edifício do Largo Paissandu, informa que “a Secretaria Municipal de Habitação atuava na ocupação do edifício por meio do grupo de Mediação de Conflitos, uma vez que no local estava previsto haver a reintegração de posse, movida pela Secretaria de Patrimônio da União”. Uma vez desocupado, o imóvel seria cedido à Prefeitura.
Vida de sobrevivente
Diante da multidão de famílias carregando pouco mais do que a roupa do cargo, amontoados com seus filhos no Largo do Paissandu, soa estranho quando as palavras “podia ser pior” saem da boca de um dos desabrigados, o vendedor ambulante Celso José dos Santos, 54 anos. Mas podia.
Celso conta que, quando o incêndio começou, a porta do prédio estava trancada com um cadeado. “No meio da fumaça, fogo pegando, vai achar chave onde?”, diz. A salvação veio de um rapaz que conseguiu estourar o cadeado. “Deus abençoou, porque quase que não escapou ninguém.”
Até o momento, há uma morte confirmada: a de Ricardo, o Tatuagem, um jovem, fã de skates e tatuagens. Segundo os moradores, Ricardo já havia conseguido escapar do incêndio, mas decidiu voltar ao prédio em chamas para salvar outros moradores. Por questão de segundos, esteve muito perto de ser resgatado pelo cabo jogado por um bombeiro, mas o edifício desabou antes que pudesse ser içado até um prédio vizinho.
Muitas das pessoas que precisam lutar pelo sonho de um dia ter um teto sobre a cabeça colecionam histórias dos dias em que perderam tudo, seja por fogo, seja por bomba. “Você vê essa cena, é só sofrimento. Já estou até acostumado com isso”, diz Celso, apontando para as pessoas amontoadas no Largo. Antes do incêndio, ele já havia passado por cinco reintegrações de posse, muitas delas marcadas pela violência policial, como a desocupação de um edifício da Avenida São João, em 2014, que transformou a região central numa praça de guerra.
“Sei o que é doer na pele, você estar num quarto, querendo arrumar uma moradia, e a polícia chegar e jogar bomba, sem querer saber se tem idoso, criança, nada”, conta. Como muitos sem-teto, faz questão de dizer que quer uma casa, mas não de graça. “Eu trabalho, sou marreteiro, tenho condições de pagar um preço razoável.”
Abraçada ao filho pequeno, que ainda chorava no seu colo, mais de dez horas após o desabamento do prédio onde viviam, a doméstica Janaína Gomes, 35 anos, lembra que acordou com os gritos de “fogo” e desceu correndo, sem parar para ver o que estava acontecendo. “Eu nem fui ver nada, já desci. Eu sei como é, porque já passei por isso antes”, conta. Antes de vir para o Paissandu, ela morava na Favela do Moinho, atingida por um incêndio que destruiu 80 dos 560 barracos do local, em 2012.
De tudo o que a auxiliar de limpeza Marta da Cruz, 54 anos, perdeu no incêndio, o que mais lhe doeu foi perder sua amiga, a gata Menina. “Acordei com o povo gritando e ouvi uns estalos. Me vesti rapidinho e desci, só com a bolsa e o RG. Deixei a porta aberta, mas não sei se a Menina saiu. Não vi mais”, contou. Marta passou a viver como sem-teto, de ocupação em ocupação, após ser expulsa de casa pela patroa com quem trabalhava como doméstica. “Depois de 17 anos, eu coloquei ela no pau e ela me jogou na rua”, relatou, sentada na calçada, sobre um cobertor.
Guerra de doações
Ao longo da madrugada, do dia e da noite desta terça, os sobreviventes do incêndio e do desabamento se abrigaram no Largo do Paissandu, diante da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Funcionários da Smads (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social), cadastraram as famílias desabrigadas e ofereceram a oportunidade de levá-las aos abrigos da Prefeitura. A maioria se recusou. A Smads também anunciou que entregaria aos cadastrados uma bolsa aluguel no valor de R$ 400 mensais.
“A prefeitura está querendo enfiar a gente num canil. Se a gente for para os albergues, vão deixar a gente lá e esquecer da gente”, esbravejou o manobrista Valtair José de Souza, 50 anos. Carregando pouco mais do que documentos e as roupas do corpo, os desabrigados resolveram “ficar e resistir”. O militante Eli Carlos Mariano explicou a estratégia: “Se eles forem para albergues, não terá o impacto que necessitaria para resolver o problema deles. Eles estando aqui, isso vai incomodar as autoridades e obrigá-las a se mexer”.
Com a recusa dos sobreviventes em ir para os abrigos, começou uma guerra entre os funcionários da Smads e as famílias desabrigadas diante da igreja pelas doações de roupas, alimentos e remédios que voluntários levaram ao Largo do Paissandu. Os funcionários da Prefeitura recolhiam as doações para levá-las a abrigos, mas as famílias queriam que os mantimentos fossem deixados em suas mãos.
“Em vez de dar para a gente, que precisa, eles estão levando tudo para albergue. Nem leite, que eu pedi para darem para as nossas crianças, eles quiseram dar para a gente”, reclamou um desabrigado.
O jeito encontrado pelas famílias e por movimentos de moradia que as apoiavam foi postar apoiadores diante do Largo para avisar às pessoas interessadas em doar que, se quisessem que suas doações chegassem às mãos das vítimas do prédio que desabou, precisavam evitar os servidores da Prefeitura e ir para a porta da igreja, onde estavam as famílias.
“Doações independentes, deixem na porta da igreja!”, gritavam os apoiadores.
Entre os doadores que evitaram as famílias na porta da igreja e preferiram deixar suas cestas com roupas, remédios e alimentos com a prefeitura, estavam grupos de evangélicos neopentecostais da Igreja Universal do Reino de Deus. Todos se postaram em uma vistosa fila, de mãos dadas, diante das vans da Prefeitura, fazendo vídeos e tirando fotos com as doações.
Uma mulher que via a cena ficou irritada. “Eu não vejo vocês dando essas mãos para proteger essas famílias da polícia que taca bomba e massacra essa população, igreja hipócrita”, gritou.