Por Jacques Alfonsin*, no blog Direito Social
Quando um edifício inteiro desaba, como aconteceu no Largo do Paissandu em São Paulo, na madrugada de 1º deste maio, tirando a vida ou desabrigando dezenas de pessoas, as responsabilidades pelas tragédias daí decorrentes imitam Adão e Eva. Saem a procura de uma serpente que lhes sirva de desculpa e as isente de indiciação. A busca necessária e honesta das causas do acontecido perde longe para a habilidosa cobertura dos sinais indicativos de onde se encontram, pois esta é a primeira preocupação de quem sabe ou pelo menos teme ser encontrado na origem do fato danoso, devedor de reparação justa e legal.
Uma das saídas mais sórdidas é a de responsabilizar as próprias vítimas de qualquer sinistro à prevenção do qual algum representante do Poder Público possa ser chamado a se explicar. No caso do desabamento deste edifício, não faltou esse desprezível expediente. O site Forum está publicando o seguinte:
“O ex-prefeito de São Paulo e pré-candidato ao governo do estado, João Doria (PSDB), falou nesta terça-feira (1) sobre o prédio que desabou em chamas no centro da capital paulista. {…} Sua primeira fala, no entanto, só deu conta de responsabilizar os moradores do prédio pelo incêndio e desabamento, sem citar as perdas das famílias ou as possíveis vítimas. “A solução é evitar as invasões, o prédio foi invadido, e parte dela por uma facção criminosa”, disse, complementando ainda que o local funcionava como “um centro de distribuição de drogas” e que sua gestão na prefeitura de São Paulo tentou, sem sucesso, desocupar o prédio. Somente alguns minutos depois que o ex-prefeito percebeu sua falta de sensibilidade e convocou os repórteres novamente para “complementar” sua fala e dizer que presta “solidariedade às famílias desabrigadas”.
Até pela tentativa de remendar declaração manifestamente desastrosa e de todo inoportuna se desvela a hipocrisia predominante em certas autoridades, quando tentam se fazer passar pelo que não são. Que o povo já está mais consciente disso e frequentemente avisa estar cansado, impaciente e desgostoso com esse tipo de manobra, ficou provado na “visita” que o próprio presidente da República (?) pretendeu fazer no local dos escombros onde os bombeiros ainda trabalhavam em busca de outras vítimas. Viu-se forçado a se refugiar, embarcando apressado num automóvel, tão sério sentiu o risco de ser expulso dali a força.
Tanto pela declaração de João Doria, quanto por essa humilhação a que foi submetido Michel Temer, o povo pobre do país está cada vez mais convencido de que conta, mesmo, é com as suas organizações de base, comunitária, política e eticamente dedicadas a não se submeter mais à resignação dos fatalistas e desanimados frente as injustiças que sofrem. Essas vêm de longe e de mais longe ainda foram ou estão sendo enfrentadas por essas autoridades.
O direito a moradia não está sendo queimado só em São Paulo. Está sendo desmontado pelo Congresso Nacional, com vários projetos de lei em andamento para reduzi-lo às cinzas. Pretendem punir, nisso contando com a conivência do Poder Executivo e até do Judiciário, quem ousar protestar contra esse estado de exceção, pintado de democracia. Comprova o fato uma estatística do IBGE de 2015 – se existe outra mais recente desconhecemos – apontando um déficit habitacional de mais de seis milhões de moradias necessárias para um direito como este ser garantido às famílias pobres que dele não gozam, mas não pretendem ficar inertes diante desse mal:
Se um tal escândalo não fosse suficiente para se repensar, planejar, executar em prazo condizente com a urgência de ser satisfeita a necessidade vital de toda a pessoa ter um teto, a prioridade de uma política pública dedicada a esse direito não poderia seguir prorrogada indefinidamente como o país vem testemunhando nos últimos anos.
Os movimentos populares que defendem o direito humano fundamental a moradia não estão sozinhos quando, em desespero de causa, apoiam – a custa inclusive da dura repressão do poder econômico privado mandando e desmandando nos três Poderes Públicos, exceções raras e fracas a parte – ocupações de imóveis como o daquele edifício de São Paulo, promovidas por famílias abandonadas à própria desventura das suas carências. Essas jamais confundirão a defesa a própria vida com violação de lei, busque o poder privado ou público aí o seu socorro, pois lei infiel à vida de todas/os trai a sua própria razão de ser e finalidade.
* Jacques Alfonsin é procurador do Estado do Rio Grande do Sul (Aposentado). Mestre em Direito pela Unisinos. Professor de Direito Civil da Unisinos. Advogado e assessor jurídico de movimentos populares como o MST e ONGs ligadas aos direitos humanos: catadores e sem-teto, que defendem alimentação, moradia e ambiente saudável para o povo pobre. É coordenador da ONG “Acesso – Cidadania e Direitos Humanos”, em Porto Alegre e integrante da RENAP.