Francisco não deixou pedra sobre pedra ao discorrer sobre as mazelas planetárias, causadas pela ganância desenfreada e corrupções
Quanto mais Chefes de Estados proferiam discursos na Cúpula para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, mais luzes vermelhas se acendiam nas mentes que observavam criticamente aquela animada verborragia.
Com transmissões ao vivo reunindo líderes governamentais e não governamentais, e cravando capas dos principais jornais do mundo, estava claro que nos reuníamos em Nova Iorque não apenas para celebrar a adoção dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Enquanto muitos governos se aproveitavam de torções narrativas e do ambiente de negócios que há muito percorre os corredores das Nações Unidas, nas sessões oficiais e paralelas, a sociedade civil os chamavam à crítica realidade: uma vez aprovada a Agenda 2030, o foco deveria ser comoimplementar seus dezessete Objetivos e 169 metas.
Mas a análise de vários discursos, afinal, indicou que, apesar das inúmeras referências à capacidade transformadora dos objetivos, tamanha ênfase também era parte do composé de políticos experientes que jogavam com a plateia.
É realmente difícil mudar os paradigmas do desenvolvimento, ainda substancialmente dominado pelo econômico sobre o social e ecológico. Por isso, qualquer análise contundente sobre os ODS deve ter por premissa que, mesmo não sendo o ideal para resolver os graves problemas mundiais, representam um acordo não legalizado, o consenso possível, entre países – diversos em suas culturas, crenças, capacidades econômica e relações de poder – no sentido de acomodar a disputa primordial entre os interesses públicos e privados.
Por isso, nas lotadas sessões principais e nos diálogos interativos, ecoava a denúncia da sociedade civil: é preciso fazer diferente. Do contrário, o utilitarismo neoliberal, que tenciona as negociações do Financiamento para o Desenvolvimento, seguirá impedindo a efetiva implementação dos ODS e a pactuação com processos nacionais que incluam múltiplas vozes (principalmente as das populações vulneráveis e marginalizadas) e que estabeleçam mecanismos transparentes para avaliação das ações nos territórios.
O discurso que precedeu a abertura da Cúpula estabeleceu o tom sobre o tamanho do desafio. O Papa Francisco arrancou aplausos dos mais poderosos Chefes de Estado do mundo que, de pé, agradeciam a mistura de sermão e sabão que acabavam de receber.
Francisco não deixou pedra sobre pedra ao discorrer sobre as mazelas planetárias, causadas e alimentadas pela ganância desenfreada e pelas corrupções – da alma, inclusive – e permitidas por governos de interesses questionáveis.
O Papa sabia muito bem do que falava: herdeira dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio – ODM –, a Agenda 2030 se apresenta como um imperativo mínimo para uma esperança civilizatória. “Os objetivos do desenvolvimento sustentável nos desafiam a mudar paradigmas, a regular interesses privados para garantir que o interesse público prevaleça”, disse o Papa, clamando que a ética na política exige que os Estados, antes de tudo, prestem contas e priorizem suas populações, não apenas as classes que dominam, política e economicamente, as pessoas e o planeta.”
Os discursos das lideranças reforçaram o potencial da Agenda 2030. Mesmo imperfeita, ao contrário dos objetivos do milênio, é universal, isto é, refere-se a todos os países e implica que, dos mais ricos aos mais pobres, todos terão que prestar contas desse acordo. Nela articulam-se agendas bem mais complexas, a partir de um diagnóstico de que políticas alinhadas à desregulação financeira, ao endividamento público, e ao aumento da poluição apenas expandiram as desigualdades, a pobreza, a violência e a insatisfação social.
Assim, questionar esse modelo de desenvolvimento insustentável e falido é uma das oportunidades também em âmbito nacional. Esta semana tivemos as pistas de como cada Estado-Membro da ONU pretende enfrentar seus desafios.
A Presidente Dilma, por exemplo, destoou do ambiente geral na Cúpula ao focar, quase exclusivamente, no anúncio das metas para o clima. Apesar de ter atraído atenção positiva sobre a proposta, demonstrou que, ao contrário de outros estadistas, ainda não entendeu que o potencial transformador da Agenda é justamente a articulação intrínseca dos seus dezessete Objetivos.
Perdeu uma boa oportunidade frente à ausência de pautas nacionais verdadeiramente positivas e alertou para o risco que correm os ODS no Brasil: serem tratados estreitamente como uma agenda do meio-ambiente apenas.
Também soou estranho, nesta situação de desmantelamento de políticas sociais importantes, o discurso que proferiu na segunda-feira, 28, na abertura da 70ª Assembleia da ONU, no qual afirmou que “raça e gênero são prioridades do meu governo (…) que não temos problemas estruturais, apenas de conjuntura (…)”.
Prefiro líderes como o Papa que, além de reconhecer os desafios existentes, fez questão de nomeá-los, de apontar alternativas e de indicar que conjunturas são menos consequências do desejo divino do que das ações de governantes.
Assim, observando o que passa hoje a população indígena brasileira, as cifras dos assassinatos de jovens negros, das mulheres, de gays e travestis; os dados sobre aumento da pobreza; a situação da saúde, educação e os índices de competitividade que despencam, é possível afirmar que a implementação dos ODS no Brasil, mesmo sendo uma agenda básica, exigiria a transição de um Estado – e de uma sociedade – que desrespeitam direitos, para um Estado que, além de manter os avanços das últimas décadas, garanta as pautas da equidade de gênero, das igualdades raciais, do respeito étnico, da orientação sexual, da democracia econômica e do direito ao meio-ambiente.
Alinhar-se aos ODS e a outros compromissos internacionais, exigiria ainda a coragem de optar por uma política tributária progressiva, de obrigar grandes empresas, corporações nacionais e transnacionais, a atuarem sob o marco dos direitos humanos e ambientais. Implicaria em construir alianças verdadeiramente democráticas, inclusive envolvendo a sociedade civil brasileira na construção dos indicadores nacionais.
Um passo importante seria também o de atender a demanda pela criação de uma Comissão Nacional multissetorial (como são os próprios ODS), com eficiência deliberativa e dotação financeira apropriada. A sociedade civil que estava na delegação brasileira para a Cúpula dos ODS esperou em vão, tanto por uma reunião com a própria Presidente Dilma, quanto pelo anúncio dessa Comissão – como fez a Costa Rica –, mas a dança das cadeiras ministeriais tornou esse anúncio impossível.
De Nova Iorque, voltamos ao Brasil com a certeza de que aqui será missão impossível implementar os ODS sem antes revertermos o atual contexto, no qual setores descompromissados com a defesa dos direitos e bens comuns crescem via barganhas pela manutenção do poder ou da governabilidade. Estadistas são líderes com visão estratégica, comprometidos com o desenvolvimento do seu povo. Aparentemente, estão em falta por aqui.
* Alessandra Nilo é coordenadora da ONG Gestos, diretora da Abong, membro da Força Tarefa para Cairo+20, da LACCASO e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
Fonte: Brasil no Pós 2015, por Alessandra Nilo