A aprovação pelo Senado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Escravo, que decidiu pela expropriação de propriedades rurais e urbanas de empregadores culpados de utilização de trabalho escravo ou análogo à escravidão, foi celebrada como um avanço político e social histórico por ativistas e organizações ligados aos direitos humanos, mas não foi o ponto final do debate.
Depois de 15 anos de tramitação no Congresso Nacional, com episódios de alta tensão com a bancada de representantes do agronegócio, o grito de comemoração de alguns dos entusiastas da PEC ficará preso na garganta, ao menos por enquanto. Em Brasília e em São Paulo, o dia seguinte à aprovação foi marcado por leituras divergentes, do total pessimismo ao entusiasmo. Para que a mudança constitucional possa ser posta em prática, uma lei específica deve regulamentar de que forma, na prática, as expropriações vão ocorrer e como os bens e recursos recolhidos pelo poder público dessa forma serão direcionados à promoção da reforma agrária.
Aí começam os problemas. Nem mesmo dentro da base aliada de Dilma Rousseff há consenso sobre a necessidade de debater agora a regulamentação, um antigo pedido da bancada ruralista. O debate gira em torno do Projeto de Lei do Senado (PLS) 432, de 2013, formulado por uma comissão encabeçada pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR) para debater a consolidação da legislação federal e da Constituição.
O projeto não regulamenta apenas os mecanismos de aplicação da lei, mas inclui, por indicação da senadora Kátia Abreu (PSD-TO), presidenta da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, uma descrição “oficial” do que deverá ser considerado o trabalho escravo para efeito da nova legislação.
Jucá, relator da proposta, afirma que desde a última semana, quando foram iniciadas as negociações para votação da PEC, também começou a ser negociada a votação do PLS em caráter imediato. “Não vou dizer que há consenso, mas as negociações estão bem encaminhadas. Estou trabalhando para que a matéria seja votada e para buscar um texto que agrade, ao mesmo tempo, todos os que vinham defendendo a aprovação da PEC e as bancadas da agricultura e ruralista, que durante anos se posicionaram contrários à proposta. A lei tem que ser dura e definir de forma clara o que é trabalho escravo, para que não sejam cometidas injustiças. Temos que coibir este crime de modo firme, mas também precisamos definir bem esse conceito”, disse Jucá, representante de um estado com forte influência do agronegócio.
Contra ele pesa ainda o papel de ter sido um dos principais negociadores de pontos da PEC das Domésticas, aprovada em abril do ano passado e até hoje sem regulamentação de alguns pontos importantes. E contra a bancada do agronegócio pesam os 15 anos de ferrenha oposição ao texto e a força dentro do Congresso, com capacidade para mobilizar ao menos um terço dos parlamentares.
O projeto redigido pelos senadores considera que a escravidão existe nas relações de trabalho em que o empregado tem restringido o seu direito de locomoção, é envolvido pelo patrão em dívidas impagáveis ou é forçado a trabalhar por meio de agressões físicas e psicológicas, pelo isolamento geográfico ou por meio da retenção de documentos. Essa definição é menos abrangente do que a prevista atualmente no artigo 149 do Código Penal, que, além dessas mesmas condições, caracteriza o trabalho escravo também pelas condições degradantes de trabalho e pelas jornadas extenuantes.
Dessa forma, a aplicação das novas regras para punição de escravagistas ficaria prejudicada sobretudo nos meios urbanos, onde os setores têxtil e da construção civil acumulam inúmeros casos de abuso contra imigrantes que chegam às grandes cidades em busca de oportunidades de trabalho, mas acabam sendo vítimas de “contratos” de trabalho absolutamente precarizados. No último ano, pela primeira vez os flagrantes de escravidão em meio urbano superaram os do meio rural. No caso desses trabalhadores, o problema é principalmente a soma de jornada exaustiva (com casos registrados de até 16 horas de trabalho por dia) e condições degradantes, condições ausentes da proposta de Jucá.
A aprovação do projeto abriria ainda o precedente para que o Senado pudesse rediscutir o Código Penal, de forma a uniformizar as definições legais de trabalho escravo de acordo com o critério mais restrito do novo texto e retroceder a legislação atual sobre o assunto, que é considerada “de vanguarda” pela relatoria especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o tema.
O senador Paulo Paim (PT-RS), vice-líder do PT no Senado, nega que o governo tenha dado aval ao acordo sugerido por Jucá para garantir a votação. “A presidenta Dilma, a ministra de Direitos Humanos (Ideli Salvatti) e o ministro do Trabalho (Manoel Dias) foram muito hábeis ao pautar este assunto neste momento. O outro lado, que não morre de amores pela proposta, não pôde absorver o ônus eleitoral de ir contra a PEC. Foi uma estratégia corajosa e bem-sucedida”, pondera. “Não existe acordo conosco. Trabalho escravo você não ‘regulamenta’, você proíbe. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Consolidação das Leis do trabalho (CLT) já asseguram a proteção contra a escravidão.”
Ainda de acordo com Paim, é cedo para falar em votar a regulamentação das novas punições contra o trabalho escravo, com ou sem os artigos que tentam redefinir os conceitos legais do trabalho escravo ou análogo à escravidão. “É necessário debater os aspectos práticos das novas punições, não há por que ter pressa para regulamentar. Não vejo necessidade de realizar essa votação em 2014”, avalia.
Já o líder do PT no Senado, senador Humberto Costa (PE), afirma que o partido está disposto a fazer os ajustes que são necessários ao texto do PLS. Para ele, o ideal é chegar a um consenso nos próximos dias e levar a matéria a votação na próxima semana. Segundo Costa, o PT não quer que a lei tenha duplo sentido, nem para que os proprietários reclamem de terem sido injustiçados, nem também para deixar “frouxo demais” o que significa trabalho escravo e impedir que este crime seja punido com o rigor que deve ter. O líder do governo no Congresso, senador José Pimentel (PT-CE), é outro que defende a apreciação do projeto rapidamente, postura encampada também pela articuladora da aprovação da PEC pelo Executivo.
A ministra Ideli Salvatti deixou claro que a matéria continua sendo tida como prioritária para o governo Dilma. Segundo ela, a PEC, juntamente com a sua regulamentação, deixará o Brasil numa situação de protagonismo mundial em relação ao tema. “Estamos muito satisfeitos de participar da 103ª Conferência Internacional do Trabalho tendo a emenda sobre o assunto promulgada pelo Congresso”, ressaltou a ministra. A conferência será realizada em Genebra pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O deputado Moreira Mendes (PSD-RO), representante da bancada ruralista, que diz ser favorável à votação também rapidamente, deixou claro como pensa a sua bancada. “Não queremos passar a mão sobre nada nem somos a favor do trabalho escravo. Essa história foi plantada para criar uma falsa imagem dos agricultores e produtores rurais no país. O que não queremos é que qualquer fiscal passe a ter o direito de expropriar uma fazenda por considerar que lá se pratica trabalho escravo. Se um trabalhador estiver comendo embaixo de uma árvore ou bebendo água de um poço que esteja sujo, isso pode ser considerado trabalho escravo? Já tivemos casos de fiscais que consideraram dessa forma. Precisamos acabar com essa subjetividade e deixar o conceito de forma clara para todos”, colocou. “Tomar o que é dos outros por questão ideológica não está correto. Somos e seremos contra isso.”
Por conta de depoimentos como o de Mendes, alguns parlamentares ponderam que seria melhor dar mais tempo para o Senado decidir sobre a matéria. É a visão da senadora Ana Rita (PT-ES), presidenta da comissão de Direitos Humanos do Senado, para quem não deve haver pressa no debate. “A regulamentação não pode significar retrocesso à PEC. E o texto, do jeito que está atualmente, significa retrocesso. Então, precisamos de um melhor debate”, defendeu.
Fora do Congresso, a notícia da aprovação da PEC foi recebida com reticência por quem acompanha o tema. “Embora tenha sido um grande avanço, depois de 15 anos de tramitação, muita gente entende que ainda não há o que comemorar. A questão só pode ser dada como vitoriosa, mesmo, depois da aprovação da lei que regulamenta a PEC”, afirmou um fiscal do trabalho.
Elizabete Flores, da coordenação da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), concorda que a regulamentação que suaviza o conceito de trabalho escravo ou análogo à escravidão é um retrocesso: seria uma forma de fazer desaparecer o trabalho escravo no Brasil pela “canetada”. “Estamos nos articulando, buscando apoio junto a outras entidades, como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), para não deixar que essa regulamentação passe”, afirma.
“A PEC remete para uma regulamentação e não há nada de estranho nisso. O problema é a regulamentação que defendem os empregadores. Aí nós somos terminantemente contra. E vamos lutar nesse segundo momento para que não haja um retrocesso. A aprovação é um grande avanço, mas não pode originar um retrocesso”, concorda Rosa Maria Campos Jorge, presidenta do Sindicato Nacional dos Auditores, funcionários que realizam a fiscalização das condições de trabalho.
Os fiscais também estão na mira da bancada ruralista: os porta-vozes do agronegócio afirmam que os recursos contra os relatórios de inspeção dos auditores são julgados pelos próprios auditores, e que, por isso, nunca seriam aprovados. Para Kátia Abreu, cuja família foi formalmente denunciada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) por promoção do trabalho análogo à escravidão em 2010, “o agricultor está à mercê da má-fé dos auditores” e corre o risco de ter terras confiscadas sem direito a defender-se. Ela quer alterações na lei que coloquem os recursos sob julgamento de órgão externo ao Ministério do Trabalho.
“A crítica é completamente infundada. O auditor age no estrito cumprimento da lei. Não há poder, há dever por parte do auditor. Quando ele faz uma operação de combate ao trabalho escravo, ele faz um flagrante, documenta isso de todas as formas possíveis. Filmagens, colhe depoimentos do empregador e trabalhador, normalmente acompanhando pelo Ministério Público. Tudo muito bem fundamentado. Então não há tanto poder como falam, é um argumento que usam contra o trabalho da auditoria”, completa Rosa.