Feiras agroecológicas abastecem as cidades com alimentos diversos, livres de veneno, e a preços justos
Espaços Agroecológicos são mais baratos que supermercados / Foto: Sara Brito – Acervo Centro Sabiá
Muito antigas e com diversas hipóteses sobre o marco histórico do seu surgimento, as feiras livres são sem dúvida parte da paisagem das pequenas às grandes cidades brasileiras. Essas feiras possuem ainda grande importância sócio cultural, uma vez que as mesmas são muito mais que apenas espaços de transações comerciais, são espaços de interação entre as pessoas e que ainda preservam a diversidade de nossa cultura popular e alimentar. Talvez por essa e outras razões, as feiras resistam nesse contexto onde a correria do mundo do trabalho impõe que as pessoas busquem cada vez mais agilidade na compra, o que as empurra para o frio, mas prático contexto das grandes redes de supermercados.
Entretanto, aqui não vamos tratar das feiras livres de forma geral, apesar da relevância do tema, vamos tratar de um tipo específico. Cada vez mais comuns, as feiras agroecológicas ou feiras orgânicas, como são popularmente mais conhecidas em algumas localidades, são uma releitura das feiras livres convencionais. As principais diferenças estão no fato de que nas feiras agroecológicas os produtos comercializados são produzidos sem agrotóxicos e insumos químicos e que são as próprias famílias agricultoras que comercializam sua produção. E aqui há uma informação importante. Caso você não saiba, a maioria dos feirantes que vendem nas feiras livres convencionais são comerciantes. Eles revendem produtos comprados geralmente nas grandes Centrais de Abastecimento – CEASAs ou diretamente de atravessadores, que por sua vez compraram de outros atravessadores, que compraram dos produtores. Enfim, essa cadeia pode inclusive ser muito longa e conter vários elos.
As famílias agricultoras que comercializam seus produtos nas feiras agroecológicas estão respaldadas legalmente para isso. Elas se cadastram junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento através de uma Organização de Controle Social – OCS, que nada mais é do que um grupo de agricultores que interage e se autorregula para garantir que sua produção é orgânica. Essa garantia também se baseia na relação de confiança entre quem vende e quem compra. Esses agricultores passam a constar em um cadastro nacional de produtores orgânicos, mas que não podem utilizar o selo de orgânicos nos seus produtos. Eles devem exibir na barraca o seu cadastro e ainda permitir que seus consumidores visitem sua propriedade para que possam verificar o que é produzido e de que forma. Também permitem a entrada dos órgãos de fiscalização sempre que preciso. Esse sistema é a regulação e aperfeiçoamento do bom e velho sistema informal de confiança que sempre existiu nas feiras agroecológicas e que antecede a legislação.
Ainda sobre essas feiras, é relevante destacar que as mesmas representam uma importante estratégia para escoar a produção de agricultoras e agricultores que produzem de forma agroecológica por absorver grande diversidade de tipos de alimentos in natura e beneficiados e por permitir uma remuneração justa pelo produto vendido, uma vez que são os próprios produtores comercializando diretamente ao consumidor final sem passar por atravessadores.
E essa diversidade de produtos não é pequena. O Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá, organização que atua a 23 anos assessorando a agricultura familiar camponesa no estado de Pernambuco realizou recentemente duas pesquisas em duas feiras agroecológicas na cidade do Recife, o Espaço Agroecológico das Graças, mais antigo da cidade com 18 anos de vida e o de Boa Viagem, com 14 anos.
Uma das pesquisas, feita no segundo semestre de 2015 com um universo de 28% das famílias agricultoras que comercializam diretamente nessas duas feiras agroecológicas, apontou uma diversidade média de 29 produtos diferentes por barraca. Apenas esse conjunto de agricultores apresentou uma diversidade total de 114 itens diferentes que são disponibilizados ao público consumidor. São folhosas, legumes, frutas, raízes, enfim, uma gama de produtos que envolve ainda o que chamamos na agroecologia de produtos beneficiados, aqueles que são artesanalmente transformados por essas famílias e que fazem parte da tradicional cultura alimentar da região como a canjica, o queijo coalho, os doces, licores e a massa para tapioca, assim como novos produtos desenvolvidos por essas famílias como o pastel de jaca. Essa mesma pesquisa apontou ainda que apenas essas duas feiras movimentam cerca de 1,8 milhões de reais por ano. As duas feiras pesquisadas fazem parte da Rede Espaço Agroecológico e possuem 35 famílias agricultoras comercializando diretamente nesses dois espaços. No início de 2016, a Rede já inaugurou um novo Espaço Agroecológico com 10 famílias que envolve novos agricultores das associações no processo de comercialização, principalmente mulheres e jovens. Recife possui atualmente 29 feiras agroecológicas, ao todo a estimativa é que o estado de Pernambuco tenha cerca de 70.
A outra pesquisa realizada, que inclusive já foi publicada como artigo científico durante o II Seminário Internacional de Agroecologia realizado na Universidade Federal Rural de Pernambuco, buscou romper com um grande mito que paira por essas feiras, o preço. Entre os dias 13 a 20 de junho de 2015, com o apoio das estudantes do curso de Gestão Ambiental do IFPE, o Centro Sabiá realizou uma comparação de preços de produtos convencionais em três grandes redes de supermercado em Recife e de três feiras livres convencionais de mercados públicos em bairros populares, com os preços dos produtos das duas feiras da Rede Espaço Agroecológico. Aqui vale o destaque, os produtos das feiras agroecológicas são livres de agrotóxicos, ou seja, orgânicos, diferentes dos das feiras livres convencionais e os dos supermercados. A comparação foi feita pra uma lista de 20 itens diferentes: Limão Tahiti, Laranja Pêra, Mamão Papaya, abóbora leite, berinjela, cebola, cenoura, milho, tomate cereja, alface crespa, couve-folha, coentro, hortelã, repolho verde, rúcula, cará, inhame, macaxeira, batata-doce e Ricota.
O resultado apontou que os supermercados foram em média 56% mais caros que as Feiras da Rede Espaço Agroecológico e no caso dos mercados populares, os preços ficaram em média 19% mais caros que nas feiras agroecológicas.
Pra se ter uma ideia, em um dos supermercados a lista de produtos convencionais da pesquisa ficou em média 71% mais cara que os mesmos produtos nas feiras agroecológicas.
É bem verdade que essa impressão de que produtos livres de agrotóxicos são mais caros não é completamente descontextualizada. Ela está baseada na percepção dos consumidores sobre o preço dos produtos orgânicos certificados das grandes redes de supermercados, que várias pesquisas já apontaram que são geralmente mais caros mesmo. Também é verdade que mesmo nas feiras agroecológicas pode haver muita diferença de preço, dependendo da demanda por esses produtos, da cidade e até mesmo do bairro onde a feira se encontra. No caso da Rede Espaço Agroecológico, essa oscilação é bem menor uma vez que as feiras seguem os preços de uma tabela da Rede com valores máximos e mínimos, para diferenciar tamanho ou qualidade. Esses preços só são alterados em assembleias com a participação das famílias agricultoras envolvidas no processo. Esta tabela é uma estratégia para ofertar produtos a um preço mais justo e é adotada a anos pelo coletivo, de modo que os produtos comercializados nas feiras não sofrem as mesmas variações de preço devido à oferta e demanda do mercado convencional.
Esses preços mais baixos que o mercado convencional, que trabalha com escala infinitamente maior de produção, também é explicado pela distância entre produtor e consumidor. As feiras agroecológicas são circuitos curtos de comercialização que não possuem vários atores que precisam ser remunerados ao longo da cadeia produtiva e que buscam pagar o mínimo possível aos agricultores por sua produção, como acontece na lógica do agronegócio. E você pode estar se perguntando ainda: Será que se essas famílias são bem remuneradas com a comercialização nessas feiras? Bom, a pesquisa do Centro Sabiá apontou que as mesmas tem um resultado líquido de em média 3,4 salários mínimos mensais. Isso só de renda liquida monetária com a comercialização nessas duas feiras, ou seja, não entra nessa conta toda a renda não monetária com a parte da produção que essas famílias destinam para o autoconsumo e nem as outras estratégias de comercialização que elas desenvolvem como a venda de porta em porta, as trocas com vizinhos, as vendas institucionais através do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e do Programa de Alimentação Escolar – PNAE, etc.
No entanto, comprovar que o preço do produto agroecológico é mais acessível nessas feiras não torna esse produto acessível de forma geral uma vez que as feiras agroecológicas e orgânicas se concentram geralmente nos bairros de classe média e média alta das grandes cidades brasileiras, ou mesmo inexistem em muitos municípios do país. No caso das grandes cidades que sofrem cada vez mais com a falta de mobilidade urbana e mesmo por uma questão de justiça social, é importante que o poder público tenha um olhar diferenciado para essas feiras. Elas devem fazer parte, junto a outras estratégias, da política de abastecimento alimentar da cidade, buscando que cada vez mais hajam feiras desse tipo nos bairros populares. De forma geral, os estados, municípios e governo federal precisam entender as feiras agroecológicas para além de uma iniciativa de geração de trabalho e renda para a agricultura familiar. Elas são importantes equipamentos públicos de abastecimento alimentar.
E entender as feiras agroecológicas e orgânicas como equipamentos públicos de abastecimento alimentar não significa construir grandes pátios e estruturas físicas, significa ter políticas públicas para criar novas feiras e para que as existentes possam ser qualificadas com banheiros públicos para agricultores e consumidores, sinalizar o local das feiras e proibir que carros fiquem estacionados nas ruas em que elas ocorrem quando for o caso, disponibilizar segurança pública, proporcionar iluminação de qualidade já que muitas feiras se iniciam na madrugada, apoio para aquisição de veículos, barracas e principalmente garantir que a assistência técnica e extensão rural de base agroecológica chegue até essas famílias e as apoie também nos processos de comercialização.
Vivemos uma conjuntura complicada no Brasil onde há retrocessos em várias frentes, inclusive para a agricultura familiar como a desestruturação do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA e enfraquecimento da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural – PNATER, da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PNAPO, entre outras. Mesmo nesse contexto não devemos parar de lutar por avanços e defender conquistas como o mecanismo do controle social através das OCSs que respalda para que essa venda direta por feiras ocorra. Falar de apoio às feiras agroecológicas não é falar apenas de comercialização, é falar acima de tudo de abastecimento alimentar e de todas os outros benefícios que a agroecologia trás, como a recuperação e conservação dos solos, da água, da vegetação nativa, da valorização da mulher e do homem do campo, da geração de trabalho e renda, da saúde das pessoas que produzem e consomem, entre várias outras benesses. Por isso é tão importante destacar o trabalho dessas famílias que levam comida de verdade do campo para a cidade e criar ações concretas que colaborem com essas iniciativas.
Fonte: Centro Sabiá