Por Mauri Cruz*
Quanto surgem artigos ou reflexões criticando os processos do FSM de pessoas que estão fora destes processos eu sempre fico num dilema: ignorar a crítica de quem fala sem saber do que está falando ou dialogar com ela para tentar mostrar as coisas pelo lado de quem está por dentro dos processo. No entanto, no caso do artigo do jornalista Aram Aharonian, dizendo que o FSM de Salvador carece de ideias e de movimentos sociais a necessidade de resposta se impõe.
Primeiro porque, pelo desconhecimento, o autor faz afirmações infundadas e inverídicas. É importante ressaltar que a iniciativa de realização desta edição foi confirmada em reunião do Conselho Internacional no bojo do Fórum Social das Resistências realizado em Porto Alegre em janeiro de 2017, um evento que reuniu mais de 5 mil lideranças de movimentos sociais alternativos, que não contou com nenhum apoio governamental de nenhuma espécie. Foi idealizado, portanto, pela militância real, anti-sistêmica, que estava e está nas ruas contra os golpes do sistema capitalista em nosso Continente e no mundo.
Por isso, ignorar a existência de centenas de movimentos sociais do Brasil, da América e do Mundo que estão envolvidos no processo de preparação e realização desta edição do Fórum Social Mundial é uma irresponsabilidade política. Estão mobilizados, realizando debates prévios e organizando caravanas e atividades em Salvador, um leque amplo de movimentos sociais que envolvem desde os povos indígenas, passando por pequenos agricultores, trabalhadores sem-terra, quilombolas, povos de matriz africana, pessoas com deficiência, intelectuais, população de rua, estudantes de vários países, sindicalistas, movimentos de mulheres, juventudes urbana e rural, catadores de resíduos, movimentos populares de todas as correntes de atuação, segmentos ligados aos temas da democracia digital, mídia livres, juventudes urbanas ligadas as culturas de resistências, migrantes e, sim, organizações da sociedade civil do Brasil, América Latina, África e Europa ligados as causas dos direitos humanos, da defesa da democracia, das diversidades, da educação popular, das defesa das políticas públicas universais e gratuitas. Ainda estarão no FSM de Salvador as redes de apoio e solidariedade a Cuba, a Venezuela, a Palestina, aos Curdos, aos Sarauís, e à todos os povos que lutam por sua autonomia e libertação. É possível afirmar, sem medo de errar, que esta edição está mobilizando novos setores sociais que nem sempre estiveram no entorno dos FSM ou das agendas da esquerda tradicional.
Da mesma forma, equivoca-se o jornalista ao afirma, sem ter conhecimento do processo, de que o FSM de Salvador carece de ideias e que os debates ficarão circunscritos entre os próprios participantes. Esta edição está inovando em sua metodologia, buscando articular processos na preparação do evento de forma a permitir que, pós FSM, tenhamos alguns processos coletivos que sigam operando na luta popular anti-sistêmica, de forma autônoma e autogestionada. Destaco aqui, a realização da Assembleia Mundial de Mulheres, que será realizada dia 16/03/2018, na parte da manhã, e será uma atividade exclusiva e deverá reunir mais de 20 mil mulheres de todos os continentes. Outra iniciativa, é a Assembleia dos Povos, Movimentos e Territórios em Resistência que ocorrerá no dia 16/03/2018, na parte da tarde e que será um momento de diálogo sobre estratégias e proposta comuns de enfrentamento a onda conservadora e neoliberal em todo o mundo. Finalmente, a proposta da Ágora dos Futuros, que será realizada no dia 17/03/2018 pela manhã, momento plural e autônomo, onde a diversidade das propostas e iniciativas pós-fórum serão apresentadas, discutidas, assumidas coletivamente pelos presentes. Para apoiar estes processos, o GT de Metodologia e Programação, com muito esforço coletivo e sem recursos públicos, organiza uma dinâmica de sistematização que deverá ter uma primeira síntese, ainda durante a realização do FSM que alimentará estes momentos coletivos de debates.
É bom nos darmos conta que, o jornalista uruguaio acaba reproduzindo, neste artigo sobre o FSM, sua antiga visão crítica em relação a esquerda mundial, em especial, de que falta a esta esquerda, novas propostas e novas práticas. Aliás, criticas que tem feito em vários outros artigos. Até posso concordar em parte com estas criticas, só não posso concordar que elas se apliquem ao FSM porque, há meu ver, este talvez seja o único espaço mundial, plural, diverso e democrático no campo anticapitalista que esteja buscando alternativas a esta “mesmice”, usando as palavras dele, que impera nas esquerdas “domesticadas”.
Justamente por isso, diferente do que tenta fazer crer o jornalista em seu artigo, estão presentes em Salvador inúmeras experiências que representam o pensamento e as práticas holísticas, de pessoas e movimentos que vivem um outro mundo possível, mudando o mundo sem tomar o poder. Estas experiências, pelos mesmos motivos apresentado no artigo, não aparecem na mídia corporativa. Mas seus protagonistas estão nas ruas, corredores, tendas e em todo o território social mundial de Salvador.
Tenho prá mim que um Fórum Social nunca será muito melhor do que o momento dos movimentos sociais mundiais permite. Ele sempre será, de uma forma ou de outra, o espelho do estágio de lutas e de acúmulo de forças do campo democrático e popular num determinado momento histórico. Por isso, se é verdade o que afirma o jornalista de que “atualmente, os movimentos sociais internacionais são incapazes de encontrar uma forma de conexão reticular que lhes permita atuar mais conjuntamente e têm dificuldades para estabelecer objetivos convergentes” não há como esperar que esta edição promova mudanças radicais nesta desarticulação.
No entanto, as edições do FSM podem, como processo, ser um laboratório para novas metodologias, práticas e, principalmente, contribuir para a constituição de uma cultura política de esquerda verdadeiramente horizontal e profundamente democrática. Onde as críticas, autocríticas e divergências sejam tratadas em discussões e diálogos coletivos e plurais e onde não haja o empoderamento apenas de algumas lideranças ou intelectuais. Uma cultura política que esteja próxima do que se idealiza de um poder popular enraizado nas comunidades e periferias de nossas sociedades. Neste sentido, a ética política expressa na Carta de Princípios segue sendo um poderoso farol para que as esquerdas e os democratas do mundo encontrem formas de diálogo e de busca de defesa dos bens comuns e da construção de uma sociedade igualitária e solidária.
Finalizo convidando o jornalista Aram Aharonian para que venha a Salvador, participar conosco deste difícil desafio que é buscar alternativas para a construção de um outro mundo possível, urgente e necessário, num momento de crises tão profundas em nossas sociedades. Venha debater conosco. Caso contrário, muita gente pode ficar pensando que seu artigo só pretendia jogar água no moinho da direita internacional. Saudações Solidárias.
Mauri Cruz é advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de pós graduação em direito à cidade, mobilidade urbana e gestão pública, membro do Conselho Internacional do FSM representando a Abong.
Foto: CUT no Fórum /Facebook