Sob o nome genérico de ONG, há dois perfis muito distintos de ação. Um fala em filantropia, mas rejeita a redistribuição de riquezas. Outro preza a autonomia da sociedade, mas não teme se envolver na luta política – e, por isso, é atravessado por esta
Via: outraspalavras.net
O Brasil conta com pouco mais de 815 mil organizações da sociedade civil (OSC), de acordo com o Mapa das OSC do Ipea. Contudo, esse número envolve um amplo universo de organizações distintas, como é o caso de entidades que se definem como ONG, mas também associações comunitárias, instituições ligadas a políticos, centros sociais de igrejas, fundações e associações empresariais e tantos outros formatos.
Entre várias diferenças existentes, encontramos uma, importante, que diz respeito ao sentido político da atuação: assim, de um lado, temos as organizações que se definem como pertencentes ao chamado terceiro setor e, de outro, aquelas, que, em sua maioria, agrupadas no âmbito da Abong (Associação Brasileira de ONG – Organizações em Defesa dos Direitos e Bens Comuns), lutam contra todas as formas de discriminação, de desigualdades, pela construção de modos sustentáveis de vida e pela radicalização da democracia.
O terceiro setor
A ideia de terceiro setor nasce nos Estados Unidos na década de 1970 e, aos poucos, expande-se pelo resto do mundo ocidental, como parte da agenda neoliberal. Ela ancora-se no entendimento de que existe um “terceiro personagem” na conformação social: além do Estado (primeiro setor) e do mercado (segundo setor), há um “terceiro setor”, organizado, independente e que mobiliza particularmente a dimensão voluntária das pessoas.
O primeiro setor é o governo, responsável pelas questões sociais. O segundo setor é o privado, responsável pelas questões individuais e lucrativas. Os defensores dessa ideia argumentam, ainda, que com a falência do Estado, o setor privado começou a ajudar nas questões sociais, por meio das inúmeras instituições que compõem essa esfera, seja criando suas fundações e associações empresariais, seja apoiando financeiramente entidades filantrópicas. Ou seja, o terceiro setor é constituído por organizações sem fins lucrativos e não governamentais, que têm como objetivo gerar serviços nas áreas de educação, saúde e assistência social, entre outras.
Ainda que existam inúmeras e diferentes definições sobre essa terceira esfera, o traço comum dessas interpretações faz com que essa categoria encaixe bem na cultura liberalizante, de Estado mínimo e de um contrato social baseado não na solidariedade coletiva, mas na valorização da liberdade e do indivíduo.
Qualquer que seja a definição do terceiro setor, a verdade é que sua força se consolidada à medida que se agrava a crise do Estado Social. Ou seja, o terceiro setor não resulta de lutas sociais e políticas que disputam um Estado Social ancorado em formas de solidariedade e de participação popular mais avançadas. Pelo contrário, ressurge no início de uma fase de retração de políticas públicas progressistas e expansionistas, onde essas políticas são postas em causa, sua sustentabilidade questionada e sua restrição considerada inevitável. Um bordão que ilustra bem essa visão é aquele que diz que “os direitos não cabem no orçamento”.
Isso significa que a emergência de um terceiro setor interdependente do Estado e do mercado, capaz de cumprir melhor que o Estado a dimensão social, não é um processo político autônomo: ele atua como amortecedor das tensões produzidas pelos conflitos políticos decorrentes do ataque neoliberal às conquistas políticas dos setores progressistas.
Mas não se pode ignorar nem menosprezar a potência construtiva e questionadora, bem como a contundência ética e moral, do individualismo. Na medida em que almeja uma “boa vida”, o indivíduo autocentrado necessita de uma “boa sociedade” e de um “bom governo”. Assim, o processo de individualização que toma conta do mundo há cerca de 50 anos não significa a destruição da coesão social, mas sua redefinição no sentido da cooperação e da solidariedade privadas. Na sociedade civil liberalista, pode existir oposição, mas não contestação.
As críticas
Para inúmeros militantes e ativistas dos direitos humanos, quando a atuação das organizações é dissociada das lutas por poder, quando dá passagem a uma ideia de sociedade civil vazia de tensões, disputas ou contradições, uma sociedade civil que “luta”, mas que não está atravessada por lutas, ela fortalece os processos de despolitização, desresponsabilização e desterritorialização próprios do neoliberalismo.
Independentemente do valor e da dimensão positiva intrínsecas da ideia de terceiro setor e de termos que lhe são associados, como a responsabilidade social empresarial ou o investimento social privado, não há como negar que se está diante de um projeto de hegemonia e legitimação. Um projeto que celebra o individuo empreendedor e elogia a sociedade civil capaz de resolver seus próprios problemas. Assim, a filantropia moderna acrescenta uma dose a mais de despolitização no imaginário coletivo.
Um exemplo emblemático desse processo é o da Vale S.A, que, por um lado, adota práticas empresariais predadoras, que destroem centenas de vidas assim como o meio ambiente – os dramáticos rompimentos de barragem de Mariana e de Brumadinho – e, de outro, financia projetos sociais com vultosos recursos que ainda são agraciados com incentivos fiscais.
A ideia de terceiro setor é, no neoliberalismo, o equivalente à filantropia do liberalismo: ajuda a criar liames sociais que desresponsabilizam tanto o Estado como o mercado em relação às causas do empobrecimento, da miséria e da exclusão. Sob o manto de terceiro setor, a palavra “cidadania” ganha novo significado: aparece como alternativa de segurança e ordem, que não é só fornecida pelo poder público, mas que pode ser alcançada graças à disposição altruísta e voluntária de um indivíduo, uma organização ou uma empresa.
Assim, a cidadania do terceiro setor, que pode ser chamada de cidadania cívica, é aquela que se associa à ideia dos deveres e das responsabilidades dos cidadãos, à sua propensão ao comportamento altruísta e à observância das virtudes cívicas, propensão esta que resultaria de sua identificação com a coletividade ou do fato de sua própria identidade pessoal se ver marcada pela inserção na coletividade. Na dimensão cívica da cidadania, o cidadão, membro da coletividade, afirma-se por si mesmo ou autonomamente na esfera privada, de maneira que não somente prescinde do Estado como pode, até mesmo, opor-se a ele.
ONG do campo democrático e popular
Buscando se distanciar dessa concepção de sociedade, as organizações e movimentos sociais do campo democrático e popular, muitas delas agrupadas na Abong, lutam pela universalização da cidadania social, aquela que assegura a todas as pessoas os direitos políticos, civis, sociais, econômicos, culturais e ambientais. Lutam, também, para que o conceito de cidadania social inclua o respeito às múltiplas identidades: religiosa, sexual, de gênero, de raça, de etnia, entre outras.
Entende-se que as desigualdades, a miséria e a pobreza são resultados de relações extremamente desiguais de poder. Portanto, a defesa da cidadania social universal inclui a defesa da radicalização da democracia.
Assim, o que está sendo contestado não é a pujança da sociedade civil, mas o que representa o construto de terceiro setor que, ao dividir a sociedade em três esferas autônomas e interdependentes e ao pôr sob o mesmo manto organizações revolucionárias e fundações empresariais que fazem, sobretudo, geenwashing , nega a produção de relações de exploração e de subordinação, despolitizando e deslegitimando os conflitos sociais.
Ao contrário, as ONGs do campo democrático e popular, que na sua grande maioria trabalham em parceria com os movimentos sociais, almejam fortalecer a esfera pública, isto é, a deliberação participativa ampliada sobre o acesso aos bens públicos.
O presente artigo buscou mostrar que a distinção não é semântica, é política. Apesar das dificuldades, nós do Inesc, que somos filiados à Abong e, portanto, pertencente ao campo democrático e popular, continuamos almejando alcançar a tarefa inconclusa dos nossos tempos, isto é, a universalização efetiva da cidadania social e, em consequência, a luta pela construção de uma sociedade radicalmente democrática e socialista.