STF já autorizou transferências em casos isolados; especialista pondera que medida deve ser opcional
A decisão abriu precedentes para discussões em relação à situação de pessoas trans, indivíduos cuja identidade de gênero não é definida pelo sexo biológico, no sistema carcerário. Com esse histórico, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) protocolou ação no fim do mês de junho, pedindo que o STF determine que presas transexuais e travestis possam cumprir pena em unidades prisionais femininas.
Carlos Magno, representante da ABGLT no Conselho Nacional de Direitos Humanos, acredita que é preciso uma determinação do Supremo para que juízes não julguem casos específicos a partir de moral própria ou orientação religiosa, mas sim a partir de uma jurisprudência. Na opinião do ativista, o ambiente prisional é ainda mais hostil para as pessoas trans.
“O espaço onde a pessoa tem que estar é o espaço onde ela se identifica. Elas estão em um ambiente que pode ser hostil e transfóbico pra elas. Todo tipo de violação é grave, desde a violência física até a simbólica e moral. Queremos evitar qualquer tipo de violação de direito dessas trans”, diz Carlos.
Symmy Larrat, mulher trans e presidenta da ABGLT, avalia que a população trans é mais vulnerável não só na prisão, mas em todo processo de acesso à cidadania na sociedade, o que se aprofunda no cárcere. “Eles fazem com as pessoas trans tudo o que fazem com os homens por entendem aqueles corpos como masculinos. Isso é extremamente violento, além da subserviência que acontece dentro do espaço do sistema carcerário. Essas pessoas não podem usar batom, peruca, mudar o cabelo… elas não podem usar nada que ajude na feminilização de seu corpo”, critica.
Transferência opcional
A primeira versão do texto da liminar recebeu críticas de ativistas da área por afirmar que as presas somente poderiam cumprir pena em prisão feminina, o que significaria uma transferência compulsória, não considerando as particularidades de cada indivíduo e suas próprias vontades.
Mas, procurada novamente pela reportagem, a ABGLT informou que o ponto citado foi corrigido por aditamento (instrumento utilizado para adicionar algo a liminar), e que, na versão da ação enviada ao STF, consta que a transferência do presídio masculino para o feminino deve ser opcional, ou seja, a mulher trans poderá optar por permanecer onde está, caso queira.
Segundo Márcio Zamboni, antropólogo e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Mulher e Diversidade da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo, a definição do que é ser uma mulher trans, usada pela militância fora do sistema prisional, não abrange toda a multiplicidade das vivências e performances do gênero feminino dentro dos presídios masculinos. Um homossexual que gosta de usar roupas ou acessórios femininos, por exemplo, não se identifica como uma mulher trans.
Doutorando, Zamboni estuda a população LGBT privada de liberdade, e com base em sua pesquisa, explica que as expressões “mona” e “bicha” são as formas mais comuns de auto identificação dos presos. É justamente por conta dessa multiplicidade de vivências dentro dos presídios que o especialista condena transferências compulsórias para os presídios femininos. O ideal seria uma análise caso a caso.
“Essa transferência só é desejável quando a pessoa que está presa quer. Ela pode, por uma série de razões, querer continuar na prisão masculina. Temos que entender que grande parte dos presos continuam mantendo relações sexuais e afetivas entre eles, especialmente as pessoas trans e LGBTs, que uma vez que estão na prisão masculina, conseguem vivenciar esses desejos”, afirma Zamboni.
Para o pesquisador, uma das principais violações contra essa população é o não uso do nome social. Em março deste ano, o STF decidiu que todo cidadão tem direito de escolher a forma como deseja ser chamado. O Supremo também reconheceu que pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam a cirurgia.
“O nome social é, na minha opinião, a demanda mais urgente além da possibilidade de expressar a feminilidade dentro da prisão. O direito de manter o cabelo comprido, de pintar a unha, de usar roupa feminina. É um direito fundamental ter uma performance de gênero feminina, assim como o nome social”, argumenta o antropólogo.
Celas separadas
Após denúncias de episódios de violência sexual e física, em 2014, alas específicas foram criadas para a população LGBT dentro do sistema carcerário, mas a dinâmica foi implementada apenas em alguns estados como Minas Gerais, Paraíba, Mato Grosso e Rio Grande do Sul.
No mesmo ano, entrou em vigor a Resolução Conjunta 1, editada pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que prevê a possibilidade de transferência de “pessoas que passaram por procedimento cirúrgico de transgenitalização” para unidades prisionais do sexo correspondente. Essa mesma resolução instituiu o nome do uso social nas prisões.
Apesar de ser vista com bons olhos pela mídia e entidades LGBTs, Zamboni também é crítico a criação das chamadas celas especiais pois avalia que a decisão segrega as vítimas e não auxilia na mudança de comportamento de quem pratica a violência, além de criar um efeito simbólico negativo com a falsa sensação da existência de um privilégio para essa população, caso as celas separadas estejam em condições melhores, por exemplo.
Sobrevivência na prisão
Xampy Fontinhas, historiador, gay e egresso do sistema carcerário, concorda com a avaliação de Zamboni sobre a complexidade da população LGBT na prisão. Ele conta que, para os homens gays, a feminilização é uma regra. “Não somos nós que escolhemos ficar afeminados lá dentro. Isso é porque o mundo do crime só vê a gay e a bicha se ela for feminina. Se não for, ela não é bicha. Então, na verdade, isso é uma estratégia de sobrevivência. Tem mulheres trans lá dentro mas nem todo mundo é trans”, pondera Xampy.
A partir de sua experiência na prisão e convivência com mulheres trans, o ex-presidiário define o cárcere como um ambiente machista, homofóbico e transfóbico. “Eles desrespeitam completamente a individualidade dos presos, muito mais do preso LGBT porque tem a questão do machismo e da homofobia que está introjetada neles lá. Se você entrou e é bicha, eles raspam sua cabeça que é pra fazer você entrar passando vergonha. Isso para uma mulher trans é o fim, porque a feminilidade está vinculada ao cabelo e às expressões femininas do rosto dela”.
O historiador ressalta que é preciso falar sobre as violações da população LGBT no sistema carcerário, mas também sobre o que está por trás da prisão dessas pessoas. “As trans acabam sendo presas somente por estarem em situação de prostituição. Estar em uma avenida se prostituindo já é motivo para um policial chegar e atacar o que quiserem em cima delas e levá-las presas”, denuncia Xampy.
“Eles acham que podem fazer o que quiser com elas. É a pior forma de violência que existe. Pra eles, é como se fossem não-cidadãs. Uma mulher trans que está na rua não existe como cidadã. Então, eles ‘podem’ jogar droga nela, dizer que estava vendendo ou que estava roubando”.
Instituição falida
O Brasil é o terceiro país com maior número de pessoas presas, atrás dos Estados Unidos e China. Até junho de 2016, conforme Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) divulgado no final do ano passado, haviam 726.712 pessoas presas no país. Desse número, quase 40% são presos provisórios.
Na avaliação de Márcio Zamboni, o sistema carcerário é uma instituição falida que viola direitos humanos fundamentais em prol da manutenção e aprofundamento da desigualdade social. Neste cenário, o principal problema das mulheres trans é o cárcere em si, assim como para todos os outros presos. “A primeira coisa que temos que pensar quando falamos de pessoas trans e de pessoas não heterossexuais na prisão, é o porquê de estarem presas e como tirá-las da prisão o mais rápido possível”, afirma.
Zamboni ainda destaca que na maioria das vezes, as pessoas da população LGBT que cometeram crimes e estão presas, principalmente as trans, cometeram delitos porque não conseguem se integrar no mercado de trabalho formal e não conseguem se manter financeiramente.
“[As mulheres trans] Não têm acesso à direitos, sem ser por meio de crimes ou de atividades que estão no limite da ilegalidade como a prostituição. Temos que discutir a desigualdade que as levaram pra lá e a vulnerabilidade que elas têm perante a Polícia. Elas sofrem com certos excessos cometidos pela Polícia e isso também as tornam mais vulneráveis à prisão”, reforça.
Edição: Diego Sartorato
(Foto: TVePoint)