Após a desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé, é hora de aprender a conviver pacificamente com diferentes modelos socioeconômicos.
A luta do povo Xavante de Marãiwatsédé, no nordeste de Mato Grosso, foi como um ponto fora da curva no fraco desempenho da presidente Dilma Rousseff em atender as demandas indígenas nos últimos anos. Desde que a campanha pela desintrusão de Marãiwatsédé ganhou visibilidade, durante a Rio+20 e em decorrência dos protestos dos ocupantes ilegais, o caso Xavante foi um dos únicos grandes momentos em que o governo se colocou do lado dos indígenas com todo seu aparato técnico e de articulação em prol da devolução de seu território devastado e invadido de 1992 a 2012.
Dois anos depois da retirada dos ocupantes ilegais da terra indígena de 165 mil hectares sob forte aparato policial, os Xavante voltam-se a trabalhos pela gestão de seu território, como vigilância, roças, melhorias no atendimento à saúde, acesso à água, abertura de novas aldeias, entre outras medidas. “Reassumir o controle sobre o território é uma etapa conquistada, não vencida. Agora a comunidade vive o desafio de encontrar novas oportunidades sobre áreas que sofreram grande devastação”, considera Ivar Busatto, coordenador geral da OPAN.
A garantia de seu território, homologado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 1998, foi um primeiro passo importante nesta trilha, mas, desde 2013, os Xavante ainda convivem com o trânsito indiscriminado de veículos e de não indígenas dentro de sua área. As estradas que cortam seu território continuam abertas e são importantes acessos que ligam as cidades do extremo nordeste de Mato Grosso às áreas recentes de expansão do agronegócio. O processo de licenciamento ambiental do asfaltamento da BR-158, que contornará a terra indígena tirando dela boa parte do trânsito de ônibus e caminhões, ainda depende do cumprimento de exigências por parte do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) junto à Fundação Nacional do Índio (Funai).
Por conta disso, os indígenas continuam flagrando, praticamente todos os dias, não só o movimento de veículos nas estradas principais. Eles também registram entradas em antigas fazendas, marcas de motocicletas (que, na época da seca, costumam ser agentes de focos criminosos de incêndios) e até retirada de madeira, mesmo estando seu território extremamente degradado por queimadas e 20 anos de devastação. “Estão tirando madeira e cortando área nossa, onde queremos fazer nossas aldeias. Nós encontramos um caminhão na semana passada”, denuncia o cacique Damião Paridzané.
A aceitação de que o território indígena foi devolvido aos Xavante tem sido um processo lento e gradual na região. Por diversas vezes, os ex-ocupantes ilegais, incentivados por políticos e associações de produtores rurais, organizaram-se para reinvadir Marãiwatsédé. Chegaram a manter barracões e fazer acampamentos próximos à Mo’onipa, novo nome na língua akwén(Xavante) para a localidade conhecida por Posto da Mata, que concentrava a maioria dos não-indígenas. Retomar o Posto da Mata tinha um sentido muito forte àqueles que dali foram retirados para reassentamento em projetos de reforma agrária. E, não à toa, os ex-ocupantes chegaram a fazer reuniões de articulação e resistência dentro das poucas edificações que permaneceram de pé após a operação de desintrusão, entre 2012 e 2013. Por esta razão, os Xavante foram obrigados a destruir as construções que ainda existiam na vila, com apoio da Funai.
Nesses episódios, que se repetiram principalmente de janeiro a abril de 2014, os indígenas voltaram a ser perseguidos e ameaçados de morte em seu próprio território e a sociedade civil precisou se articular e pressionar por providências por parte da Justiça e da Polícia Federal para assegurar aos Xavante o direito por sua terra. Desde a operação de desintrusão, os líderes da invasão continuaram sendo identificados e respondem criminalmente por tais atos.
Em junho de 2014, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou 27 fazendeiros por desmatamento ilegal na Terra Indígena Marãiwatsédé, pedindo a condenação dos envolvidos e o pagamento de 42 milhões de reais para a recuperação de pelo menos 10 mil hectares de vegetação nativa. Na lista dos proprietários denunciados, figurava o desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, Manoel Ornellas, entre outros políticos. De acordo com o MPF, a maioria das fazendas foram também fiscalizadas, multadas e embargadas pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por crime ambiental.
Terra para todos
Essas medidas de responsabilização por ilícitos ambientais envolvendo diretamente a terra indígena, somadas aos trabalhos da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) ao declarar na portaria 294, de novembro de 2014, pouco mais de 1.6 milhões de hectares nas várzeas do rio Araguaia como de domínio da União, são ações que têm sido interpretadas na região como restrições ao desenvolvimento. Na verdade, elas representam um claro esforço de ordenamento territorial, reconhecimento do uso sustentável desse tipo de área por comunidades tradicionais e tentativa de impedir a comercialização de terras públicas. “As pessoas acham que tudo vai virar terra indígena”, conta um morador da região. Essa hipótese, refutada prontamente pela própria SPU, é sintoma de um choque de modelos de desenvolvimento para o Araguaia, afrontando em cheio o agronegócio que por lá tem batido recordes de expansão.
De acordo com as contas do governo, a safra deste ano deve ser de 28 milhões de toneladas em Mato Grosso, com uma área plantada de 8.86 milhões de hectares. Só nos municípios do nordeste do estado, há previsão de colheita de grãos em 1.3 milhões de hectares. Isso representa um aumento de 11% em relação à última safra ou 113% se considerarmos os últimos cinco anos, segundo números do Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (IMEA).
O avanço do monocultivo de grãos na região do Araguaia mobilizou prefeitos e deputados pela revogação da portaria 294 da SPU, o que ocorreu no início de fevereiro. O MPF questionou a SPU de forma imediata e garantiu que mesmo revogada, “por força da lei e da Constituição, os terrenos de várzea do rio Araguaia pertencem de pleno direito à União, único ente com capacidade jurídica para transferir essas áreas a particulares, nos casos e na forma que a lei permitir”, informou em nota distribuída à imprensa. A identificação de comunidades que vivem no curso do rio Araguaia é uma próxima e aguardada etapa para que sua área e seu modo de vida sejam reconhecidos e protegidos pelo Estado.
Água limpa
Outra mudança importante para os Xavante ocorreu na área da saúde, embora este ainda seja um imenso desafio em todo o país. Antes da desintrusão, o Polo de Saúde Indígena de Marãiwatsédé, que fica na aldeia, carecia de instalações básicas, acomodação para os profissionais de saúde, tinha os cômodos mofados e até um depósito de lixo a céu aberto atrás do posto. Após manifestações formais dos agentes de saúde, da pressão dos indígenas e o envolvimento do MPF, que realizou fiscalizações e emitiu recomendações à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), algumas providências foram tomadas. Em dois anos, um novo posto foi construído, melhorando expressivamente as condições de salubridade, higiene e o atendimento em geral. No entanto, óbitos seguem sendo registrados por falta de equipamentos de urgência como balão de oxigênio, como ocorreu em junho de 2014. Casos de emergência precisam ser encaminhados à cidade de Água Boa, a pelo menos 270 quilômetros da aldeia. “Ainda faltam remédios”, reclama o cacique.
De acordo com Paridzané, a comunidade aguarda com ansiedade o momento da colheita de 100 hectares de milho e arroz, e pretende estreitar relações com a Funai para assegurar obtenção de materiais e veículos para esta atividade. “Neste momento, o mais importante é tocar a nossa roça, permitir que toda a nossa área nova possa ser realmente usada pela comunidade e furar mais poços artesianos”, diz Paridzané. A questão da água está diretamente associada à saúde entre os Xavante de Marãiwatsédé. A garantia de água potável continua sendo uma importante demanda, sem a qual se torna ainda mais difícil a abertura de novas aldeias no território indígena. Os cursos d’água que permeiam a região encontram-se, em sua maioria, assoreados e contaminados.
Fonte: OPAN