Por: Cicero Pedrosa Neto
Via: Amazonia Real
Afetada por danos ambientais históricos causados pela mineração, a população diz que falta um plano de enfrentamento do novo coronavírus no município paraense.
Belém (PA) – A Coordenação Nacional de Articulação Quilombola (Conaq) diz que o estado do Pará já registrou 33 mortes de pessoas quilombolas por Covid-19. É o maior número de vítimas quilombolas do Brasil, que tem um total de 80 óbitos. Em seguida vem o Amapá com nove mortes. O levantamento da Conaq, divulgado essa semana, tem como base as informações da Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu) em parceria com o “Núcleo Sacaca”, vinculado à Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). São 521 casos confirmados do novo coronavírus entre quilombolas do estado.
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Barcarena, até nesta terça-feira (23), o total de casos confirmados da doença na população era de 1.986 e 93 mortes. O boletim, no entanto, não informa o número de quilombolas infectados pela Covid-19 no município.
Na contagem realizada pela Malungu e pela Ufopa, até o dia 16 de junho foram registrados em comunidades quilombolas do município de Barcarena 66 casos suspeitos de Covid-19, cinco casos confirmados e três óbitos.
“Ela era minha amiga e companheira de luta contra os crimes ambientais aqui em Barcarena”, relata, emocionada, Maria do Socorro Costa Silva, conhecida como Socorro do Burujuba, presidente da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama). Socorro do Burajuba se refere à morte de Maria Mercês de Barros, de 49 anos, vítima da Covid-19, ocorrida no dia 16 de maio.
Maria Mercês de Barros foi vice-presidente da Associação de Moradores da Comunidade Quilombola São Sebastião do Burajuba, localizada em Barcarena, e um dos grandes expoentes na luta pela mitigação dos desastres ambientais da mineração que afetam ainda hoje as comunidades quilombolas e ribeirinhas do município.
Ela e a filha, Alexandra Barros Freitas, de 31 anos, morreram no mesmo hospital, nos dias 16 e 19 de maio, respectivamente. Maria Mercês foi levada por volta das 15h do dia 15 de maio à UPA do bairro de Vila dos Cabanos, em Barcarena. Segundo a filha Francinete Barros Freitas, a mãe parecia estável durante o almoço, porém piorou à tarde. Chegou a fazer um raio-X, mas a equipe médica não informou do que se tratava. “Doutor, eu estou com esse vírus? ”, chegou a perguntar a líder quilombola, ouvindo em resposta que era “para não gemer” já que o que tinha “não dava dor”.
“Acho que ela ficou nervosa e a falta de ar aumentou. Ela já sofria de asma. Quando deu umas 18h levaram ela para sala de isolamento e entubaram. Daí em diante a gente não teve mais notícias até de madrugada (16), quando ligaram para avisar que ela tinha tido cinco paradas cardíacas e não tinha resistido”, disse Francinete, de 29 anos. O teste positivo para a Covid-19, só feito depois da morte da mãe, afirmou a filha. Segundo ela, a UPA de Vila dos Cabanos reteve o prontuário não só da sua mãe, como também da irmã. Alexandra Barros deu entrada no mesmo dia que a mãe, às 19h. Mãe e filha tiveram parada respiratória.
A família se queixa da falta de transparência e cuidados no atendimento de Maria Mercês e de Alexandra. As mortes das duas chamam a atenção para a ausência de um plano específico das autoridades para o combate ao novo coronavírus nas comunidades quilombolas.
A Malungu, em parceria com o “Núcleo Sacaca”, vinculado à Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), decidiu produzir um boletim independente com números atualizados sobre o avanço da Covid-19 nos territórios quilombolas. Todos os dias, às 19h, o boletim é atualizado e repassado pelo WhatsApp aos grupos de apoio constituídos durante a pandemia. O projeto funciona há pouco mais de um mês.
“Nosso monitoramento está voltado à orientação das pessoas. Em como se prevenir, como se tratar, como proceder para evitar a propagação da Covid-19 nessas comunidades, que já são historicamente mal atendidas ou, simplesmente, não atendidas por serviços públicos de qualidade, sobretudo os relacionados à saúde”, afirmou a professora Luciana Carvalho, professora do Programa de Antropologia e Arqueologia da Ufopa e membro do Núcleo Sacaca.
O último boletim, emitido pelo projeto no dia 23 de junho, aponta que há 881 casos suspeitos sem assistência médica, 341 casos suspeitos em tratamento médico e 07 hospitalizados, no Pará. Os números casos confirmados e óbitos são os mesmos publicados pela Conaq.
Barcarena em alto risco de contágio
Dados do dia 16 de junho da plataforma Farol Covid aponta que Barcarena já esteve entre os cem municípios brasileiros com maior ritmo de contágio do novo coronavírus, com taxa de 1,30. O índice estima o potencial de contágio de cada pessoa contaminada em um determinado intervalo de tempo, considerando as medidas de isolamento social e outras formas de prevenção adotadas pelo município avaliado. Quando ele é maior que 1, indica que ainda há risco de crescimento exponencial da doença, informam os cientistas na plataforma.
Atualmente, os números da plataforma indicam uma diminuição do ritmo de contágio em Barcarena, mas classificam a estrutura hospitalar da cidade como “ruim”, com base em informações obtidas do DataSus, atualizadas em 1º. De maio.
De acordo com a Farol Covid, o isolamento social na cidade na última semana chegou a 44%, enquanto a taxa de isolamento social recomendada pela OMS para a prevenção e combate do novo coronavírus é de 70%.
A Farol Covid-CoronaCidade é uma plataforma digital e gratuita criada para auxiliar estados e municípios brasileiro na construção de políticas públicas específicas no enfrentamento ao novo coronavírus. Atualizados diariamente, os dados informam o ritmo de contágio, percentual de isolamento social, capacidade hospitalar entre outros.
De acordo com o Ministério da Saúde, o estado do Pará tem 94.036 casos confirmados do novo coronavírus e 4.726 mortes.
Contingência excluiu quilombolas
O “Plano de Contingenciamento do Município de Barcarena para a Infecção Humana pelo Novo Coronavírus”, que entrou em vigor em 24 de março, assinado pelo prefeito Paulo Alcântara (MDB), não menciona as comunidades quilombolas vizinhas aos depósitos de rejeitos da Hydro Alunorte, indústria de transformação mineral de bauxita, pertencente ao grupo norueguês Norsk Hydro.
“Não foi feito nenhum plano de contingência para os quilombolas e ribeirinhos. Não está se quantificando o número de mortos ou infectados nos quilombos, nada. Eles não nos reconhecem como quilombolas. Perdemos agora a Dona Maria e a filha dela, mas a morte delas não vai entrar em uma estatística específica e direcionada para uma política de contenção da Covid-19 nos quilombos”, explica Mário Santos, da comunidade Gibrié de São Lourenço.
As comunidades sofrem historicamente com problemas de saúde relacionados às contaminações causadas pelos desastres ambientais da refinaria, como os que aconteceram em 2009, 2014 e, mais recentemente, em 2018. A qualidade dos rios e igarapés, do solo e dos poços que abastecem as casas das comunidades está comprometida, segundo atestam estudos do Laboratório de Análises Químicas e Ambientais da Amazônia, vinculado à Universidade Federal do Pará, e do Instituto Evandro Chagas (IEC), vinculado ao Ministério da Saúde. “Nós já somos contaminados. Nós tudinho aqui somos do grupo de risco, o povo tem câncer, tem um monte de outras doenças por conta dos crimes ambientais da Alunorte”, disse.
“Um vírus desse é bater e ver em nós! Ninguém olha pra isso, ninguém enxerga nós”, completou Mário Santos.
Dezenas de comunidades ribeirinhas e de bairros contíguos ao Parque Industrial de Barcarena também foram ignoradas pelo plano de contingência. Assim como os quilombolas, essa população vive os mesmos dramas de saúde e vulnerabilidade relacionados às contaminações industriais. Exames do Laboratório Central do Estado do Pará (LACEN) mostram que há pessoas com teores de chumbo, alumínio, bário e cromo no sangue muito acima dos permitidos pelos órgãos internacionais de monitoramento em saúde.
Francinete contou à reportagem da Amazônia Real que a mãe já possuía outras doenças, inclusive respiratórias. As duas fizeram exames de sangue e cabelo pelo Laboratório Central (Lacen) do Estado do Pará e os resultados provaram a existência de contaminantes em seus organismos. “Minha mãe fez aqueles exames do Lacen para metais pesados e eles mostraram que tinha muito chumbo, bário e alumínio no organismo, por isso que ela já sofria de diabetes, hipertensão e outras doenças que a gente nem sabe. Essa era a luta dela, ela queria mudar essas coisas”, relatou.
Em 2018, a reportagem da Amazônia Real esteve em Barcarena fazendo a cobertura do último desastre ambiental da Hydro Alunorte, ocorrido em 17 de fevereiro daquele ano. Na ocasião, Maria Mercês, com uma sacola volumosa de remédios, pedia por Justiça e tratamento adequado de saúde.
A vida precária
“Parece que eles querem matar a gente de vez”, ressentiu-se Socorro do Burajuba. “A gente já sofre há anos com a presença de metais pesados no nosso corpo, nas águas e no que a gente planta nos nossos quintais. Nem comer da nossa terra, num momento como esse de pandemia, a gente pode porque está tudo contaminado. Estamos vivendo um momento terrível aqui, não está fácil. ”
“Depois das últimas expansões [da planta industrial] da Hydro, a cabeceira do Murucupi ficou dentro da área deles, lá que descobriram que eles estavam jogando uma parte dos rejeitos da bacia. Isso acabou com rio, com os peixes, com tudo mesmo”, contou Sandra Amorim, presidente da Associação de Moradores da Comunidade Quilombola Sítio São João.
“Como as comunidades vão seguir as orientações de higiene contra o coronavírus se não tem nem água limpa para lavar as mãos?”, pergunta Sandra.
Mário Santos, uma das lideranças da comunidade quilombola Gibrié de São Lourenço, compara a condição dos quilombos a um “campo de concentração”. O líder lembrou que antes da chegada do novo coronavírus, a população já sofria de bronquite, rinite, asma entre outras doenças. Para ele, a proximidade com as bacias de rejeitos das indústrias e o ar que são obrigados a respirar tornam-os mais vulneráveis na pandemia. “Com o vírus, agora sinto como se a gente estivesse em um campo de concentração, esperando para sermos aniquilados de vez. Até agora nós não recebemos apoio de ninguém, nem de prefeitura e nem do estado, nada. ”
De acordo com Santos, a Secretaria Municipal de Saúde de Barcarena nem mesmo informa o sexo e a faixa etária das pessoas infectadas pela doença. Os dados oficiais só especificam os bairros, ignorando a existência de territórios quilombolas. E não há testes para todos. Como outros moradores da área quilombola que apresentaram alguns sintomas da Covid-19, Santos não foi testado. De acordo com a apuração da Amazônia Real junto aos comunitários, o Gibrié de São Lourenço possui atualmente 4 casos confirmados, 26 suspeitos e 1 óbito.
Autoridades foram cobradas
A morte de Maria e da filha Alexandra serviu de alerta para o presidente da Associação de Moradores do Quilombo São Sebastião do Burajuba, Arivaldo Moraes. Logo após os óbitos, ainda em maio, ele enviou um e-mail ao procurador da República Felipe Moura Palha, que atua junto às populações tradicionais no Pará, solicitando intervenção do Ministério Público Federal para demandar junto à Secretaria de Estado da Saúde (Sespa) e à Secretaria de Saúde de Barcarena que destinem testes para as comunidades quilombolas e ribeirinhas do município.
“Eu vi que os casos estavam crescendo aqui no município, e percebi que estava acontecendo algo de errado nessas Unidades Básicas de Saúde, porque não tinha testes pra ninguém que chegasse lá. Então, para proteger o nosso povo, não só da nossa comunidade, mas das outras comunidades quilombolas e tradicionais daqui, eu tomei a iniciativa de procurar o MPF para ver se algo poderia ser feito. Estamos aguardando ainda uma resposta dos órgãos competentes”, explicou o líder comunitário.
Segundo Raimundo Magno, liderança da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), a organização definiu algumas medidas de proteção para conter o avanço das infecções. Eles criaram barreiras sanitárias nos quilombos e saíram em busca de luvas, máscaras, álcool e sabão.
“Conseguimos ajudar algumas comunidades com o apoio de pessoas físicas, da iniciativa privada e de ONGs, porque do Estado – vou ser categórico em lhe dizer – nós não tivemos nada”, contou à reportagem.
A Malungu havia feito um pedido formal à Sespa de 25 mil máscaras de proteção e 25 mil frascos de álcool em gel, expediente que foi encaminhado também ao MPF. Ainda em maio, no dia 28, a Sespa, por meio da Coordenação Estadual de Saúde Indígena e das Populações Tradicionais (Cesipt), fez a entrega de 19 mil máscaras e 300 litros de álcool líquido 70% destinados às comunidades.
A Malungu também cobrou da Cesipt outras medidas emergenciais. “Ressaltamos que o sofrimento da população quilombola já vinha acirrado muito antes do coronavírus e que ele agora é mais um elemento afetando as comunidades”, lembrou a liderança. Segundo ele, no preparo da minuta para um plano de contingência para os povos indígenas do Pará, a palavra “quilombolas” foi inserida de última hora. “Mas não dá pra jogar assim os povos tradicionais de qualquer jeito, eles precisam considerar as particularidades de cada grupo e nós questionamos isso”, relatou Magno.
O que dizem as autoridades?
A reportagem da Amazônia Real procurou a Secretaria Municipal de Saúde de Barcarena, por meio do e-mail disponibilizado por sua assessoria, mas até esta publicação não obteve retorno do órgão público. No dia 11 de junho, a reportagem procurou a Prefeitura Municipal para obter informações sobre as políticas de saúde que estavam sendo aplicadas em favor das comunidades quilombolas, mas também não foi atendida.
A Assessoria de Imprensa da Sespa informou “que vem orientando e capacitando profissionais e gestores municipais de saúde para assistência à pacientes confirmados ou com suspeita de covid-19 em comunidades quilombolas” e que criou um grupo de trabalho junto à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos, Malungu e líderes quilombolas para intensificar o monitoramento dos casos da doença nos quilombos do estado. A nota informa ainda que a Sespa “está realizando junto com os municípios um inquérito epidemiológico para confirmar todos os casos e óbitos por covid-19 entre os quilombolas”.
Em nota, a mineradora Hydro afirma que desde o início da pandemia vem dialogando constantemente com o estado e com as prefeituras dos onze municípios onde tem atuação, inclusive Barcarena. “A empresa tem atuado em diferentes frentes entre as iniciativas para proteger empregados e contratados e a colaboração com os esforços da sociedade na prevenção e combate ao vírus”.
Segundo a assessoria de imprensa, a “Hydro doou R$ 10 milhões, sendo R$ 5 milhões em abril e R$ 5 milhões em maio deste ano, para ajudar na instalação e manutenção de hospitais de campanha no Pará, totalizando 960 leitos em diversas regiões do Estado para o tratamento da Covid-19.”
A mesma nota afirma também que o prédio e os equipamentos do hospital de campanha de Barcarena foram uma doação do grupo norueguês. “As instalações – doadas pela Albrás, empresa que pertence à Hydro e Nippon Amazon Aluminium Co. – possuem área total de 3.789,00 m2, 36 apartamentos com banheiro individual, além de lavanderia e refeitório, onde funcionava um dos alojamentos da empresa para empregados” e que a cidade está entre as beneficiadas com parte dos 100 mil equipamentos hospitalares comprados e doados para os municípios de Barcarena e Paragominas – onde o grupo opera explorando bauxita.
Questionada pela Amazônia Real sobre o fornecimento de água potável para as comunidades quilombolas vizinhas à sua planta industrial, a empresa afirma que vem distribuindo água no município para três comunidades – Bom Futuro, Vila Nova e a comunidade Burajuba – sendo esta última a única comunidade quilombola entre as três.
No entanto, segundo Arivaldo Moraes, presidente da Associação de Moradores da Comunidade Quilombola São Sebastião do Burajuba, a água que vem sendo distribuída na comunidade “é parte das obrigações do TAC [Termo de Ajustamento de Condutas], firmado entre a Hydro, o MPPA e o MPF, por conta do vazamento de rejeitos de 2018; isso não tem nada a ver com a Covid-19”, argumenta.
Arivaldo afirma que a única ajuda direta enviada pela Hydro aos comunitário do Burajuba foram sete cestas básicas destinadas à sete famílias, que foram entregues em parceria com prefeitura municipal e que, fora isso, “ela tem feito divulgações em um carro som orientando as pessoas a se prevenirem, a usarem máscaras e a lavarem bem as mãos”.
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