A ação violenta e abusiva da Polícia Militar do estado de São Paulo na reintegração de posse do edifício da avenida São João, no centro da capital, ocorrida na terça-feira (16), evidencia, na visão do presidente da Associação Juízes para a Democracia, André Bezerra, que o governo estadual prioriza o direito à propriedade privada e trata questões sociais coletivas, como a carência de políticas públicas de moradia, como simples conflitos individuais que podem ser solucionados com o uso da força. “Está se falando da questão de um hotel que estaria ocupado por duzentas famílias como se fosse uma mera briga de vizinhos. É a defesa de um direito individual de propriedade em detrimento do direito coletivo à moradia”, critica o juiz.
Bezerra lembra que, durante a ditadura (1964-1985), o Estado brasileiro matou, torturou e prendeu diversas pessoas em nome do direito à propriedade individual. Segundo o magistrado, a postura autoritária continua a ser adotada pela instituição policial ainda em regime democrático. “Isso não acabou. A propriedade continua a receber do Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário – o tratamento privilegiado. Ela tem privilégio sobre outros direitos, como o direito à moradia, à integridade física, à dignidade, inclusive das pessoas que sofrem reintegração de posse”, explica. “O direito à propriedade, ainda que reconhecido por uma decisão judicial, não torna autorizável o uso desproporcional da força, da prisão ilegal e da violência”, defende o coordenador do programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos, Rafael Custódio.
Durante a ação militar pela manhã, além do disparo de bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo, várias pessoas – incluindo famílias com crianças, idosos e grávidas – foram detidas e encaminhadas ao 3º Distrito Policial, na rua Aurora, no centro, para averiguação por terem resistido à ação policial. Mesmo após a desocupação do prédio, e sem qualquer provocação civil, a Polícia Militar prosseguiu com a demonstração de força pela tarde e lançou bombas de gás e balas de borracha contra um grupo de sem-teto que acompanhava a retirada dos pertences dos moradores. A ofensiva atingiu também pessoas que passavam pela região e membros da ocupação da Frente de Luta por Moradia.
De acordo com Custódio, episódios de clara brutalidade na ação da Polícia Militar contra cidadãos são cada vez mais frequentes por serem legitimados pelo poder Executivo. “As autoridades são muito rápidas em defender e em legitimar esse tipo de atuação da polícia. Algumas horas depois de começarem a circular as notícias sobre a violência policial, o secretário de Segurança Pública do estado, Fernando Grella, defendeu a ação. Essa legitimação política é muito importante para que a instituição se sinta confortável de violar direitos sem qualquer constrangimento”, argumenta.
O advogado ainda reforça que o respaldo do governo estadual é como um “cheque em branco” para que a polícia continue agindo violentamente e destaca a atuação do Ministério Público no caso. Custódio afirma que o órgão determinou a reintegração de posse sem visitar o local e constatar a presença de crianças, grávidas, idosos. Se esse fator tivesse observado, parte da violência poderia ter sido evitada institucionalmente. “O que a gente vê, muitas vezes, é um Ministério Público muito tímido, quando não, omisso, diante de violações de direitos como essa. O Executivo respalda esse tipo de violência, mas passa também pelo pelo Judiciário. Infelizmente, são várias as esferas públicas que contribuem para um só perdedor, que é a população civil, que deveria ser protegida.”
A violência observada na reintegração de posse também pôde ser vista, de forma ainda mais abusiva, na tarde de ontem (18). O vendedor ambulante Carlos Augusto Muniz foi assassinado com um tiro na cabeça, disparado por um agente militar durante a Operação Delegada, no bairro da Lapa, zona oeste de São Paulo. A ação pretendia conter o número de trabalhos clandestinos na região, mas se transformou em um novo episódio de descontrole e brutalidade da corporação.
“A polícia faz parte do estado e, em uma democracia, o estado tem dever de dialogar com sua população, inclusive com aquelas pessoas que sofrem uma medida judicial. Cabe ao governador do estado tornar a polícia do estado uma polícia humana e que prefere o diálogo ao uso da força”, defende o presidente da Associação Juízes pela Democracia.
Ouça a reportagem completa de Marilu Cabañas para a Rádio Brasil Atual
Fonte: Rede Brasil Atual