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Em artigo, Nathalie Beghin, coordenadora da Assessoria do Inesc, afirma que as medidas tomadas pelo governo federal não passam no teste, resultando em profundas violações de direitos, especialmente trabalhistas, mas também de gênero e raça.


MPs 664 e 665 violam direitos humanos e ameaçam a coesão social

A partir de 01 de março de 2015 entram em vigor três mecanismos implementados pelas medidas provisórias 664 e 665 – restrição do acesso ao seguro desemprego, às pensões e ao auxilio doença – que, mais uma vez, solapam, sem pudores, os direitos dos trabalhadores, especialmente daqueles que se encontram na base da pirâmide. Os demais mecanismos foram ou serão implementados em outras datas: a redução do abono salarial passou a vigorar em dezembro do ano passado e as restrições ao seguro defeso dos pescadores artesanais, em abril próximo[1].

O Inesc desenvolveu metodologia de análise de políticas públicas na perspectiva da realização dos direitos humanos[2], principio basilar da nossa constituição em vigor. Tal metodologia ancora-se em cinco pilares: (i) financiamento do Estado com justiça social; (ii) máximo dos recursos disponíveis, isto é, a obrigação do poder público em aplicar o máximo de verbas arrecadadas em políticas que promovam direitos humanos; (iii) realização progressiva dos direitos humanos, no sentido de que os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais devem, ano a ano, ser progressivamente realizados por meio de políticas universais e inclusivas; (iv) não discriminação, com ênfase nas desigualdades de gênero e étnico-raciais. As desigualdades e as discriminações existentes em nossas sociedades possibilitam que determinados grupos e populações historicamente discriminadas tenham mais dificuldades de acesso aos seus direitos; e, (v) a participação, que deve estar presente no desenho de todas as políticas, por ser antídoto contra a falta de transparência e por facilitar processos de controle social e maior democratização do processo de construção das políticas públicas.

O presente artigo busca mostrar, brevemente, que as medidas tomadas pelo governo federal não passam no teste, resultando em profundas violações de direitos, especialmente trabalhistas, mas também de gênero e raça.

Vejamos: no que se refere ao primeiro pilar, de financiamento do Estado com justiça social, as MPs em questão aprofundam a injustiça fiscal reinante no Brasil, pois buscam ajustar as contas públicas, num valor anunciado de R$ 18 bilhões, nas costas dos trabalhadores, mais uma vez. Nada é feito para que os ricos, cada vez mais ricos neste país[3], façam sua parte. Ao contrário, as pesquisas recentes mostram que as benesses fiscais concedidas ao setor empresarial têm crescido substancialmente, aprofundando a regressividade da carga tributária. Nos próximos dias, o Inesc lançará estudo que revela que as renuncias fiscais, conhecidas como gastos tributários, vêm subindo de forma considerável nos últimos anos. Cresceram cerca de duas vezes mais do que o orçamento da União entre os anos de 2011 e 2014. Com efeito, no referido período, o orçamento fiscal e da seguridade social aumentou, em termos reais, em 18%, enquanto os gastos tributários elevaram-se em 32%[4].

O segundo pilar, o de máximo de recursos disponíveis é igualmente fortemente violado, uma vez que ao invés de aumentá-los as medidas governamentais os diminui, em R$ 18 bilhões. Esses recursos, segundo o governo, procuram realizar economias que se destinam ao superávit primário, que por seu turno, irão encher os bolsos dos rentistas aumentando a desigualdade neste país, que já é uma das mais altas do mundo.

O terceiro pilar, o de realização progressiva dos direitos humanos, no sentido de que os mesmos devem, ano a ano, ser progressivamente expandidos por meio de políticas universais e inclusivas também não é atendido. Pior: sequer os direitos assegurados até então são mantidos, uma vez que os trabalhadores perdem, pois as novas regras resultam em retrocessos em termos de acesso a pensões, seguro-desemprego e abono salarial, entre outros[5]. Novamente, são os menos favorecidos os mais afetados, pois grande parte desses cortes irão atingir os trabalhadores da base da pirâmide.

As medidas provisórias 664 e 665 também não passam no teste do quarto pilar, o da não discriminação, especialmente de gênero e raça/etnia. Com efeito, é sabido que os salários mais baixos e os empregos mais precários[6], portanto, mais sujeitos a rotatividade no mercado de trabalho, são os de mulheres e negros. Assim, esses grupos populacionais serão os mais prejudicados por essas medidas, reproduzindo o sexismo e o racismo e, dessa feita, incrementando as desigualdades de gênero e raça.

Por fim, o quinto pilar, o da participação social, não foi atendido. O governo baixou as medidas sem ter efetuado qualquer consulta à sociedade e, principalmente, aos principais interessados, os sindicatos de trabalhadores. Não é por outra razão, que os mesmos se manifestaram publicamente, em janeiro de 2015, por meio de nota conjunta[7] repudiando as medidas. Também estão previstas manifestações em defesa dos direitos dos trabalhadores.

Não há nada que justifique tais medidas, que expressam enorme retrocesso social e violação de princípios constitucionais. E mais: as experiências internacionais têm mostrado que o ajuste fiscal apresenta resultados pífios. Recuperando a parábola do economista Paul Krugman, essas medidas se assemelham aos médicos que tratam seus doentes com uma sangria; depois, quando o paciente piora, por causa da sangria, eles sangram-no mais um pouco, e o doente piora ainda mais[8]. A culpa é dos doentes, claro, jamais dos médicos! As elites globalizantes conseguiram transformar a austeridade num credo e numa questão moral que agora chega ao Brasil, depois do país ter conseguido blindar por um bom tempo esse perverso tratamento.
Concordando novamente com Paul Krugman, a austeridade é uma “ideia zumbi” ou uma “ideia barata”, que volta sempre, quando se julga que está morta. Tais medidas, além de ineficientes, contribuem para quebrar a coesão social, a confiança na democracia e minar os alicerces do futuro. Não foi neste projeto que a maior parte da população brasileira votou em outubro de 2014.

Fonte: Inesc

[1] No dia 30 de dezembro de 2014, o Governo Federal anunciou duas Medidas Provisórias (MPs), 664 e 665, que estipulam uma série de alterações nas regras do Seguro-Desemprego, Abono Salarial, Seguro-Defeso, Pensão por Morte, Auxílio-Doença e Auxílio-Reclusão. Tais medidas passam a entrar em vigor em 01 de março de 2015. Para uma análise mais detalhada das mesmas, ver nota do Dieese. Considerações sobre as medidas provisórias 664 e 665 de 30 de dezembro de 2014. Dieese, Janeiro de 2015. Acesso em:http://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2015/subsidiosConsideracoesMPs664665.pdf

[2] A esse respeito ver: Inesc. Manual de Formação em Orçamento e Direitos. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2013. Disponível em: http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/metodologia-do-inesc/manual-de-formacao-em-orcamento-e-direitos-orcamento-publico-para-a-promocao-dos-direitos-humanos

[3] A este respeito ver os estudos de Medeiros et al, de 2014, que mostram que a desigualdade no Brasil é mais alta do que se imaginava e permanece estável desde, pelo menos, 2006. Estes estudos mostram, ainda, que os mais ricos se apropriam da maior parte do crescimento brasileiro. Ver, por exemplo: Medeiros et al. A estabilidade da desigualdade renda no Brasil, 2006 a 2012. Disponível em: http://iepecdg.com.br/uploads/artigos/SSRN-id2479685.pdf

[4] A esse respeito ver Evilásio Salvador. Os impactos das renuncias tributárias no financiamento das políticas sociais no Brasil. Inesc, fevereiro de 2015 (No prelo).

[5] A esse respeito ver excelente análise do Dieese. Considerações sobre as medidas provisórias 664 e 665 de 30 de dezembro de 2014. Dieese, Janeiro de 2015. Acesso em:http://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2015/subsidiosConsideracoesMPs664665.pdf

[6] A esse respeito, ver estudos como:

[7] A esse respeito, ver Nota Unificada das Centrais Sindicais: Em defesa dos direitos e do emprego. Acesso em:http://www.cut.org.br/noticias/nota-unificada-das-centrais-sindicais-em-defesa-dos-direitos-e-do-emprego-bc04/

[8] A esse respeito, ver artigo de Paul Krugman. O sangramento enfraquece o paciente. 29/09/2011. Acesso em:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/17341/o+sangramento+enfraquece+o+paciente.shtml

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