Economia Solidária e trabalhos de reintegração foram fundamentais para vencer dificuldades e por fim a um passado de agressões
Xica em evento na Cidade Administrativa, durante entrega do Plano Estadual de Economia Popular Solidária no dia do Trabalhador, em 2015
Francisca Maria da Silva, conhecida como Xica da Silva, encontrou nos programas sociais, principalmente na Economia Popular Solidária, forças e alternativas para superar um passado marcado pela agressão. Coordenadora dos fóruns Nacional e Estadual de Economia Popular Solidária, Xica conta que sofreu todo o tipo de violência pelo ex-companheiro, com quem viveu por 10 anos. “As mulheres que passam por isso precisam de ajuda, dificilmente saem sozinhas de uma situação dessas”, frisa.
Nascida em Ipanema, Vale do Rio Doce, começou a trabalhar como babá aos 14 anos, em Ipatinga, Vale do Aço. Como a maioria das adolescentes, buscou oportunidades na capital, onde atuou como diarista, empregada doméstica e cozinheira. Aos 24 anos, conheceu o ex-companheiro e, já no segundo mês de namoro, decidiram morar juntos. Em 1989, nasceu Paula, a primogênita. Naquela época, era cozinheira em uma casa na Pampulha. Trabalhou grávida e, quando a Paula chegou, precisou parar. “Aí, foi o começo das repreensões. Tinha que pedir autorização para tudo”, recorda
Quando a filha mais velha completou 1 ano, a violência só aumentava. Xica sofreu um aborto e, algum tempo depois, deu à luz Paloma, a segunda filha. Mesmo com sintomas de depressão, teve uma terceira gravidez. Karine nasceu dois anos depois de Paloma. Em 1994, veio outro filho, que não sobreviveu, acredita ela, devido às agressões constantes.
Forças para mudar
Nas consultas médicas, inventava outras justificativas para os sintomas da violência. Na delegacia, chegou a denunciar o agressor oito vezes, mas retirava as queixas em seguida. Além das três filhas, o que confortava Xica um pouco era um programa de receitas na TV. Tinha dotes culinários e a inspiração lhe rendeu um caderno com 15 mil receitas. “Ele queimou tudo e depois me deu outro livro, com 500 receitas, autografado”, lamenta.
Quando a situação já era limite, uma propaganda de violência contra a mulher em um jornal despertou a força de Xica para denunciar as agressões. “Só lia o jornal depois que ele lesse e jogasse no chão”, conta. Quando denunciei, dessa vez, a delegada disse que se eu retirasse a queixa, era ela quem ia me prender. Essa fala me ajudou muito”, revela Xica.
Com a denúncia, Francisca procurou um abrigo de mulheres em Belo Horizonte, onde viveu algum tempo com as filhas. Recebeu tratamento médico e apoio. Conheceu a Coordenadoria dos Direitos da Mulher, que a ajudou a se reintegrar. Quando achou que estava curada das feridas, o ex-companheiro a procurou de novo. Voltou para casa, abandonando o apoio jurídico e psicológico que recebera. “Cheguei a escrever duas cartas, uma para a família e outra para uma amiga, dizendo que, se fosse morta, era para cuidarem das minhas filhas”.
Reviravolta
No primeiro dia de 2001, um passeio de carro na orla da Lagoa da Pampulha se transformou no que Xica chama de um dos piores momentos. “Por causa de uma audiência marcada, em razão das últimas queixas, ele tentou jogar o carro na lagoa, com a família dentro. Eu estava sem cinto. Perfurei o olho direito, me cortei toda. Minha filha mais velha levou 14 pontos no rosto, a do meio 36, na cabeça; a pequeninha não sofreu nada”, relata. Internada no Hospital João XXIII, decidiu colocar um ponto final no sofrimento. “Aprendi a perdoar. Hoje, falo disso para ajudar outras mulheres”, diz.
Economia Solidária
Depois de algumas cirurgias, Xica recuperou a auto-estima e procurou novamente o abrigo e o apoio da Coordenadoria da Mulher. Mesmo ainda perseguida pelo ex-companheiro, seguiu em frente. Participava dos programas de reintegração e, com quatro mulheres, iniciou um empreendimento na área de alimentação. “Conhecemos a Economia Solidária, era um projeto de inclusão social”, conta.
No início, o pequeno bufê era chamado de “Trem bão”. “Uma sabia vender, outra fazia artesanato. Eu sei cozinhar, mas, vender, não. Dava tudo para os outros, ainda mais comida, quando a pessoa está com fome você vê no olho”, garante. As “sócias” tomaram rumos distintos e Francisca transformou o “Trem bão” em “Amigos de Xica”. Desde então, firmou parcerias, participou de feiras e conquistou clientes. Com apoio das filhas e de outras mulheres, o “Amigos de Xica” fabrica pães, bolos e biscoitos de todos os tipos e vários sabores, além de reaproveitar alimentos bons para o consumo.
“No grupo de convivência, descobrimos que a Economia Solidária gera renda coletiva, com a participação de gente com saber popular e enorme diversidade. Com preocupação de oferecer produtos saudáveis, sem uso agrotóxico e inciativas de reutilização”, pondera Francisca, ao destacar as ações da Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social (Sedese) para fomento à Economia Popular Solidária em Minas.
Estão em fase de implantação 11 pontos fixos/feiras de comercialização no estado. O primeiro funciona na Cidade Administrativa, em Belo Horizonte. As três primeiras feiras renderam mais de R$ 100 mil, com a participação de 42 empreendimentos em cada uma delas. De acordo com Xica, 75% das pessoas que atuam na Economia Popular Solidária são mulheres, negras e acima de 40 anos. Minas tem hoje 1.236 emprendimentos mapeados. “Quando estendem a mão para a gente, vemos um outro norte. Depois de tantas dificuldades, aproveitei as oportunidades que me deram”, afirma Xica da Silva, com a firmeza de uma mulher que deu a volta por cima.
Fonte: Social