Por: Breno Bringel e Ana Claudia Teixeira
Via: noticias.uol.com.br
O ano de 2021 começou intenso, com disputas sobre a continuidade e o valor do auxílio emergencial e o aprofundamento da crise sanitária e política no país. Com o agravamento da pandemia e a ineficiência em organizar a compra e distribuição das vacinas, ampliaram-se também as vozes que demandam o afastamento imediato de Bolsonaro.
A volta de Lula à cena política após decisão do STF na última semana alimenta ainda mais o clima de que Bolsonaro não pode permanecer. O que antes parecia um horizonte distante, apesar dos setenta pedidos de impeachment, começou a ganhar força social e política.
O impeachment continua sendo fundamental para que o naufrágio não seja ainda maior, mas não como um fim em si mesmo e sim como um primeiro passo para reconstruir um projeto de justiça ambiental e social no Brasil.
Além do “Fora Bolsonaro” e da pressão sobre o TSE para que julgue os crimes eleitorais e casse a chapa Bolsonaro-Mourão, boa parte da militância popular tem se dedicado hoje à defesa dos direitos (sociais, trabalhistas, previdenciário, etc.). Embora sua conquista tenha sido árdua após décadas de lutas, o desmonte é acelerado.
Reagir, denunciar e, na medida do possível, reverter esse cenário é essencial. Porém, tanto o impeachment como a luta contra a perda de direitos se baseiam em uma lógica de ação defensiva e reativa. São atos de resistência importantes para frear, no curto prazo, a barbárie bolsonarista, mas não geram necessariamente alternativas de médio-longo prazo nem ao bolsonarismo nem tampouco à política caduca.
O bolsonarismo é um fenômeno político-cultural. Para superá-lo, o foco não pode se restringir às instituições, aos marcos normativos nem mesmo às eleições de 2022. A disputa das comunidades, das ruas, dos territórios, da sociedade, da cultura e da comunicação é igualmente central.
Por isso vários movimentos sociais têm insistido que é preciso combinar a resistência com as alternativas, os protestos com as propostas, o “não” com os múltiplos “sins” que emergem das experiências que buscam construir outros mundos possíveis e novos horizontes de sentido.
Nem tudo é terra arrasada no Brasil, como muitos afirmam. Tampouco se trata de “inventar a roda” ou apelar a utopias distantes. Por todo o Brasil, há inúmeras iniciativas, experiências territorializadas e redes de articulação que estão construindo “utopias concretas”, como diria Ernst Bloch, para além do bolsonarismo. Que sejam pouco visíveis, não significa que não existam. Aliás, muitas estão crescendo nos últimos anos. Vejamos três delas.
Um primeiro eixo de experiências destacável está relacionado às transições ecossociais, que buscam frear a devastação socioambiental e a emergência climática, ao mesmo tempo que aspiram construir novos paradigmas e formas de relacionamento entre a sociedade, a natureza e a cultura.
Enquanto as elites dominantes buscam financeirizar a natureza ou estimular um novo formato de “capitalismo verde”, populações indígenas, quilombolas, povos da floresta e das águas, assim como movimentos ambientalistas, camponeses, ecumênicos e juvenis, dentre outros, têm buscado conciliar a urgência das lutas nos territórios e da defesa da vida com uma agenda de futuro para avançar no desmatamento zero, na proteção das águas e dos sistemas hídricos e na descarbonização da matriz energética e de transportes.
A agroecologia, a defesa da biodiversidade, a soberania alimentar e a autonomia territorial são pilares importantes dessas propostas capilarizadas em todos os estados do Brasil.
São muitas as experiências e movimentos específicos que buscam avançar nesta agenda, além de iniciativas e processos que buscam ampliar e aprofundar a convergência política e programática pela transição ecossocial, como é o caso do recente Chamado para uma Transição Ecossocial no Brasil, lançado em dezembro do ano passado.
Em segundo lugar, destacam-se também as experiências feministas que estão reconstruindo as lógicas vinculadas ao cuidado, muitas vezes em formatos comunitários, construindo alternativas societárias ao modelo patriarcal e heteronormativo dominante.
Para além dos protestos contra a posição racista, sexista, misógina, homofóbica e LGBTfóbica do presidente e do governo (e também de boa parte da sociedade), os feminismos avançaram em múltiplas direções nos últimos anos no Brasil, seja com redes de apoio em situações de abortamento e contra a violência doméstica ou com a politização, cada vez mais transversal e intergeracional, do debate cotidiano sobre os corpos, a sexualidade, o gênero e sua conexão com as múltiplas formas de opressão.
A criação de novas dinâmicas de apoio mútuo durante a pandemia é outra mostra interessante. Tudo isso está presente hoje de forma crescente nas casas, nos bairros e nos territórios, com ecos claros também no debate público e nas mídias sociais.
O avanço, mesmo que ainda tímido, de candidatas mulheres, negras, lésbicas e trans nas eleições municipais de 2020 é somente a ponta do iceberg de um processo mais amplo em curso.
Por fim, experiências de economia circular, solidária e social estão buscando novos paradigmas anticapitalistas e formas de vivenciar o trabalho. Há décadas o Brasil é considerado um grande terreno de experimentação nesse âmbito.
A autogestão e o caráter coletivo de uma série de empreendimentos populares e de trabalhadores que cooperam nas atividades produtivas e deliberativas servem como uma fonte importante de vida digna que se contrapõe ao empreendedorismo individualista capitalista.
Incluem-se aqui iniciativas diversas, tais como cooperativas, fábricas recuperadas, ecovilas, redes de comércio justo, cozinhas comunitárias e creches compartilhadas, dentre muitas outras protagonizadas por uma pluralidade de atores, alianças e práticas que tendem a se ampliar com a crise atual.
Estes três eixos não esgotam, obviamente, o cenário da construção de alternativas, mas mostram caminhos possíveis para a reconstrução de um projeto transformador de sociedade.
Como nos ensinou Eder Sader, no clássico “Quando novos personagens entraram em cena”, ao estudar os movimentos sociais nos anos 1970 e 1980, em meio à ditadura, vários movimentos sociais criaram, a partir de experiências concretas, as condições para o período democrático pós-88.
O mesmo acontece hoje. Há um conjunto de experiências e formulações que não estão somente no mundo das ideias, mas são vivenciadas em meio ao mundo atual, com suas contradições. Nelas estão as sementes e os germes presentes de um outro porvir.
* Breno Bringel é professor do IESP-UERJ, coordenador do NETSAL e diretor da Associação Latino-americana de Sociologia
* Ana Claudia Teixeira é professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação de Ciência Política da Unicamp e co-coordenadora do Nepac-Unicamp