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O novo marco legal das OSC: avanço a se comemorar ou vitória de Pirro?

Por Jorge Eduardo S. Durão*
As reações das organizações da sociedade civil à aprovação da Lei 13.019/14 têm sido bastante contraditórias, o que a meu ver não tem nada de surpreendente. As OSCs estão divididas entre a comemoração da aprovação de um PL por que tanto batalharam e a apreensão diante dos rigores e exigências da nova lei, que podem tornar inócuos os avanços conceituais e normativos nela contidos. Como tornar realidade os avanços representados pelo estabelecimento de uma legislação de abrangência nacional, que cria instrumentos jurídicos apropriados – os termos de fomento e colaboração -, e faculta a remuneração integral da equipe de trabalho (com todos os encargos sociais inclusos) e de custos indiretos até 15 % do valor do repasse? O fundado temor de muitos é que as exigências formalistas, a rigidez dos controles e a burocracia inviabilizem a celebração e execução das parcerias que na teoria seriam facilitadas pela Lei do MROSC.

As contradições inerentes ao teor da Lei 13.019/14 e as consequentes reações discrepantes à mesma se explicam não apenas pelas origens contraditórias desse novo diploma legal (diferentes projetos de lei e substitutivos, inclusive com a marca das CPIs das ONGs), mas também pelo fato de que na sua mobilização para viabilizar os avanços incorporados ao PL, as OSCs não tiveram forças para evitar a inclusão de um conjunto de normas que refletem uma postura de desconfiança e uma lógica de controle pelo Estado sobre as organizações da sociedade. A impermeabilidade da presidente da República às sugestões de veto da Plataforma contribuiu para o resultado final que é uma lei difícil de ser cumprida tanto pelas OSCs como pelos próprios órgãos públicos
.

Contexto político da aprovação da Lei 13.019/2014

A aprovação da Lei 13.019/2014, que estabelece o novo regime jurídico das parcerias voluntárias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil tem sido comemorada como um passo importante na luta por um marco regulatório que garanta autonomia, dê autonomia e segurança jurídica às relações entre as OSCs e o Estado brasileiro. Tendo em vista que esta luta se arrasta há anos, confrontando enormes resistências, parece imprescindível um esforço de aprofundamento da análise política e desse processo e dos resultados recentemente alcançados no plano jurídico.

Na rápida revisão que a seguir farei desse processo, assumo o enfoque particular das organizações de defesa de direitos e bens comuns (o universo das associadas da ABONG), sem perder de vista as dificuldades para a afirmação autônoma da identidade desse campo de organizações num processo em que estavam em jogo os interesses de 290.692 fundações e associações sem fins lucrativos.

A década de hegemonia petista não se mostrou propícia ao fortalecimento do campo das organizações de defesa de direitos. Pelo contrário, o período de hegemonia do lulismo, com a combinação de “políticas para reduzir a pobreza – com destaque para o combate à miséria – e para a ativação do mercado interno, sem confronto com o capital” [1], apoiada num pacto conservador, estreitou sobremaneira o espaço político para a atuação das OSCs de defesa de direitos. Basta considerar a natureza da ampla coalizão partidária montada para a sustentação congressual dos governos Lula da Silva e Dilma Roussef, com o peso das bancadas ruralista e “evangélica”, para se perceber o isolamento político a que tal correlação de forças conduz um campo de organizações que participam de enfrentamentos diários com os interesses do agronegócio, defendem os direitos dos indígenas, e se contrapõem à agenda dos grupos fundamentalistas que buscam reverter e impedir avanços dos direitos humanos das mulheres, de homossexuais, da população negra e de adeptos das religiões afro-brasileiras.

Não deveria nos surpreender assim a falta de compromisso dos governos Lula e Dilma com o fortalecimento de um campo autônomo de organizações de defesa de direitos, inclusive no que diz respeito às questões do marco regulatório (MROSC) e do acesso aos fundos públicos. Estou certo de que esta última afirmação parecerá bastante discutível para alguns dos leitores deste texto. Acredito mesmo que a ambivalência de muitos militantes que atuam nas nossas organizações em relação a esta opinião polêmica se explica pelas contradições de uma conjuntura em que prevalece uma correlação de forças totalmente desfavorável à afirmação de alternativas políticas à esquerda do social-desenvolvimentismo da era Lula, num cenário em que está sempre presente a ameaça de um dramático retrocesso que leve o Brasil a seguir os rumos desastrosos que o capital financeiro tem imposto nos últimos anos a grande parte da humanidade.

Na leitura dos políticos da direita e da mídia partidarizada que combate implacavelmente o governo Dilma, as ONGs e os movimentos sociais, quando não são criminalizados, são sistematicamente desqualificados como mera clientela dos governos petistas. A celeuma no Congresso Nacional em torno do decreto presidencial instituindo a política nacional de participação social não foi apenas uma tempestade em copo d’água com fins eleitoreiros, revelou também que o próprio PSDB já retrocedeu em relação ao seu discurso sobre a participação social, tão em voga no tempo em que a Doutora Ruth Cardoso presidia o Conselho da Comunidade Solidária.

A rigor, o alcance do decreto presidencial que institui a política nacional de participação social tem de ser relativizado. Numa conjuntura marcada pela reconquista das ruas pelos movimentos sociais, as ONGs estão desafiadas a questionar o caráter de um “sistema de participação social” absorvido pelas estruturas estatais e reduzido a um discurso institucional. As ONGs precisam resgatar os nexos entre participação institucional e mobilização popular e denunciar a falta de efetividade da participação em relação aos processos decisórios, bem com a blindagem das áreas estratégicas do governo em relação à participação.

Os episódios do decreto da participação social e da aprovação Lei 13.019/2014 – ambos resultantes de uma correta atuação da Secretaria Geral da Presidência da República – podem sugerir um desmentido da nossa interpretação segundo a qual é praticamente nulo o compromisso do governo Dilma com o fortalecimento do nosso campo de ONGs. No entanto, se o governo Lula empurrou com a barriga a agenda do MROSC, o governo Dilma se caracterizou por uma postura de desconfiança e de distanciamento da chefia do Poder Executivo em relação às organizações da sociedade civil, com momentos particularmente negativos como o do decreto que suspendeu de forma indiscriminada o repasse de recursos de convênios para todas as entidades conveniadas, canalizando para as ONGs a indignação da opinião pública frente aos desvios de recursos públicos por integrantes do seu governo e da sua base de sustentação partidária, através da criação de falsas ONGs.

Pode-se dizer então que os dois fatos acima mencionados representam uma mudança positiva de rumo do governo Dilma em relação às ONGs? Tendo a achar que não. É verdade que as contradições internas do governo deram margem para uma atuação favorável às OSCs por parte da Secretaria Geral da Presidência, que buscou resultados por uma linha de menor resistência, através da via legislativa, depois que a presidente Dilma se furtou durante meses a respaldar publicamente o produto do Grupo de Trabalho sobre o Marco Regulatório[2]. No entanto, em relação à aprovação do Projeto de Lei que regula o repasse de fundos públicos às OSC, apesar dos inegáveis avanços normativos consagrados na nova Lei, não podemos perder de vista, nesta análise de conjuntura, que o significado da sua aprovação, que prevalece no Congresso e na opinião pública, é o de que a Câmara de Deputados endureceu as regras para contratos com as ONGs. Ou seja, aquilo que está sendo interpretado pragmaticamente pelas OSCs como uma vitória significativa – o que de fato é – do ponto de vista simbólico, na luta pelos corações e mentes, pode ser apenas mais um episódio de um processo de erosão da imagem pública das ONGs.

Além dos bloqueios políticos conjunturais que tendem a afastar os governos de turno de uma agenda complexa e que envolve inúmeros conflitos de interesses, parece-nos igualmente procedente o argumento de Pannunzio[3] sobre a dimensão institucional do problema. Temos denunciado a inépcia do Estado na relação com as OSCs, a qual está relacionada com um leque de problemas que inclui as implicações do presidencialismo de coalizão e o papel dos partidos, o diagnóstico de que “o Estado está frouxo”, a distorção do pacto federativo e a concentração de recursos e de poder na União, a incapacidade do Estado de gerenciar convênios, etc. Nesse ambiente em que se procura responder a falhas do sistema político e do funcionamento do Estado através da ampliação do controle burocrático, ressalta a insegurança jurídica dos próprios gestores do Estado, que se colocam com frequência como mais um fator de resistência à mudança. Essa percepção de insegurança jurídica explica entre outras coisas a preferência dos gestores pelos convênios e pode ser mais um motivo pelo qual a Lei das OSCIPs “não pegou”.

Todos os fatores conjunturais adversos – com destaque para o ambiente majoritariamente hostil às OSCs no Congresso Nacional – somados a essa dimensão institucional do problema não poderiam deixar de se traduzir num resultado do processo legislativo que temos de avaliar como sendo, na melhor das hipóteses, profundamente contraditório. Aliás, não é por acaso que alguns comentários acerca do novo diploma legal destacam o fato de que a Lei 13.019 é “oriunda de um projeto de lei que teve como ponto de partida recomendações exaradas em Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, com a finalidade de se investigar desvios envolvendo Organizações não Governamentais (ONGs)” [4].

A dimensão institucional relativa à inépcia do Estado na relação com as OSCs é um dos problemas a ser considerado na regulamentação da Lei 13.019/14, já que esta cria novas e complexas obrigações para os agentes públicos.

A Lei 13.019/2014: avanços em tese, controle exacerbado na prática.

As considerações que se seguem baseiam-se na leitura da Lei em tela e dos seguintes documentos:

  • Primeira Contribuição da Plataforma das OSCs para o Processo de Regulamentação da Lei n. 13.019/2014.
  • Oitavo Boletim Informativo sobre o debate do marco regulatório da relação Estado e Sociedade, da autoria de Daniel Rech (consultor do CAIS e Assessor Jurídico da UNICAFES).
  • O artigo “Lei Federal 13.019/14: Mais cuidados nos repasses ao Terceiro Setor”, acima mencionado.

Esses documentos analisam a nova Lei com sensibilidades bastante diversas, mas, não obstante, esses diferentes olhares não resultam, salvo melhor juízo, em nenhum juízo de fato divergente na interpretação do texto legal.

A contribuição da plataforma visa a propor o aperfeiçoamento da Lei – ou melhor, a eliminação ou redução das suas inúmeras arestas através da regulamentação. Não podemos perder de vista o fato de que a Plataforma encaminhou à Presidência da República numerosas sugestões de veto aos dispositivos mais autoritários e que feriam a liberdade de associação e de auto-organização das associações. A presidente Dilma rejeitou a quase totalidade dessas indicações. A contribuição da Plataforma das OSCs procura valorizar os avanços contidos na Lei e aponta sugestões de regulamentação até mesmo para artigos considerados inconstitucionais. As contribuições para a regulamentação – com exceção destes casos de dispositivos que ferem direitos fundamentais – me parecem válidas. Acho que a Plataforma foi prudente ao indicar em cada caso o escopo da regulamentação sem procurar invadir a esfera de competência do Estado. Cabe ao governo formular a regulamentação da Lei. Tenho dúvidas quanto à eficácia da consulta pública visando à regulamentação – até porque se trata de exercício que requer competência técnica de que a maioria das organizações não dispõe. Recomendo que a FASE e outras associadas da ABONG se reportem à contribuição da Plataforma. No meu entendimento, o limite óbvio do processo de regulamentação é que esta não deve ser feita contra o espírito da Lei, e não pode ser feita contra a letra da Lei.  Voltarei a este ponto na conclusão deste texto.

A análise de Daniel Rech tem um enfoque que reflete a meu ver a necessária inconformidade com a resistência dos legisladores a contemplarem os interesses de cooperativas (excluídas da Lei) e das pequenas ONGs que certamente terão dificuldade praticamente intransponível para se adaptarem ao novo diploma legal. No final do documento Daniel Rech transcreve uma pergunta feita por um assessor jurídico do Paraná sobre o assunto: ”Se a situação já estava muito ruim para as Organizações da Sociedade Civil, porque vocês se empenharam tanto par achegar a uma lei que produz uma situação ainda pior?”. Suponho que o próprio Daniel, que tanto se empenhou no trabalho do GT do MROSC, saiba a resposta a essa pergunta, já que numa disputa dessa natureza ninguém tem a garantia a priori de conseguir alcançar os seus objetivos.

A leitura da procuradora do TCESP destaca e valoriza o reforço do controle externo e os requisitos de higidez (sic), constata o foco da lei nas entidades de grande porte, e aponta as dificuldades decorrentes da “falha da norma” que diz respeito à complexidade das regras mesmo quando se trata de repasses de pequenos valores. Segundo a autora “Este arcabouço de exigências pode engessar, senão inviabilizar, repasses de pequena monta, tornando mais oneroso para entidade providenciar a documentação do que o valor do próprio repasse. E evidentemente também há custos para a Administração”.

Conclusão:

A contribuição da Plataforma das OSCs para a regulamentação da Lei 13.019 recupera às críticas que haviam sido feitas ao projeto de lei e os pontos que constavam das sugestões de veto encaminhadas à Presidência da República. O conteúdo dessa contribuição é basicamente a indicação do sentido da regulamentação dos diferentes artigos. Com a necessária cautela não se propôs a formular o teor dessa regulamentação. Entendo que as ONGs deveriam seguir a orientação geral e as propostas da Plataforma e não vejo muito sentido no processo de consulta ampla acerca da regulamentação, já que esta exige uma qualificação técnica que a maioria das ONGs não tem e passa por complexas negociações no âmbito do próprio governo.

No entanto, faço exceção a esse apoio às propostas de regulamentação da Plataforma nos casos em que a própria contribuição da Plataforma aponta a violação de direitos constitucionais pela Lei 13.019. Refiro-me aos seguintes pontos:

  • · APROVAÇÃO DO REGULAMENTO DE COMPRAS DA OSC PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (inciso VIII do art. 34): segundo a análise feita na contribuição da Plataforma, “a necessidade de aprovação pela Administração do regulamento de seleção dos fornecedores no escopo dos Projetos fere a autonomia das entidades e as sujeita a uma relação hierárquica com o ente público”. E continua: “Aqui existe clara abertura para interferência estatal na liberdade de auto-organização das OSC, o que pode gerar problemas das mais diversas ordens”. Um dispositivo que fere a autonomia e restringe a liberdade de organização das associações deveria ser objeto de uma ação de inconstitucionalidade e não de uma regulamentação.

O mesmo critério e procedimento judicial deveriam ser aplicados aos seguintes pontos:

  • AUSÊNCIA DE PROCEDIMENTO PARA O ACESSO DOS SERVIDORES E DA FISCALIZAÇÃO AOS DOCUMENTOS E INSTALAÇÕES DAS OSCS (Art.42, inciso XV).
  • IMPOSIÇÃO AOS FORNECEDORES DAS OSCS DE OBRIGAÇÃO QUE PERMITA O LIVRE ACESSO AOS SEUS DOCUMENTOS E REGISTROS CONTÁBEIS, SEM PREVISÃO DE PROCEDIMENTO OU ALCANCE (Art. 42).
  • POSSIBILIDADE DE RETOMADA OU ASSUNÇÃO DAS ATIVIDADES PELA ADMINISTRAÇÃO INDEPENDENTEMENTE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL (Art. 62).
  • IMPOSIÇÃO DE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO DIRIGENTE, INDEPENDENTEMENTE DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (Artigos 37 e 74).

A conclusão em relação a esses aspectos da Lei 13.019 é que estes artigos da Lei deveriam ser questionados judicialmente em relação à sua constitucionalidade, não cabendo tentar minorar as violações de direitos neles contidas através da sua regulamentação.

*Jorge Eduardo S. Durão* é assessor da direção da ONG Fase

[1] Cf. André Singer, “Os Sentidos do Lulismo”, 2012.

[2] Esse Grupo de Trabalho, composto por representantes do governo e da sociedade civil, foi criado em novembro de 2011 no âmbito da Secretaria Geral da Presidência da República, atendendo à reivindicação da Plataforma das OSCs por um Novo Marco Regulatório, encampada pela candidata Dilma Roussef em 2010.

[3] Cf. Eduardo Pannunzio, “Pautas para o aperfeiçoamento do fomento público às OSCs no Brasil”.

[4] Cf. artigo de Claudine Corrêa Leite Bottesi, Assessora Técnica –  Procuradora do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, intitulado “Lei Federal 13.019/14: Mais cuidados nos repasses ao Terceiro Setor” .

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