Sem abrir mão de instituições representativas fortes, a Constituição de 1988 coloca um novo desafio para o país. Estabelecer uma convivência entre a democracia representativa e a democracia participativa
Por PedroAbramovay*
Era janeiro e a Assembleia Constituinte estava reunida em Brasilia. Os debates de consolidação do texto que viria a ser promulgado como Constituição Cidadã estavam começando. Discutia-se naquele momento o preâmbulo. O grande debate era a inclusão ou não da referência a Deus.
Alguns constituintes à esquerda impediam um acordo, pois não admitiam que uma Constitução laica mencionasse Deus. Outros, mais ligados à Igreja, não concebiam que a Constituição de um país majoritariamente cristão não se fizesse expressamente sob os auspícios divinos.
Dr. Ulysses se mostra irritado e impaciente com o impasse. Se não há acordo nem para o preâmbulo, vai ser difícil construir uma Constituição. Pede para o líder, senador Mario Covas, conduzir um acordo.
O senador Covas volta com o acordo fechado. A esquerda aceitou Deus no preâmbulo, mas a direita cedeu em outro ponto.
Tratava-se da redação de uma fórmula repetida em todos os nossos textos constitucionais desde 1934: “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”. A fórmula é bonita. Mas não é à toa que ela não precisou ser alterada nem durante a ditadura militar. Afinal, o poder é exercido em nome do povo. E não pelo povo. Ditadores podem falar em nome do povo.
O acordo que incluiu Deus no preâmbulo mudou essa fórmula. Na Constituição atual lê-se: “Todo Poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Duas grandes mudanças. É povo que exerce o poder. E a Constituição reforça isso ao falar claramente que, em conjunto com os representantes eleitos, o poder pode ser exercido diretamente.
Essa é uma mudança fundamental na Constituição de 1988. Ela não admite mais uma mera representação simbólica do povo. Sem abrir mão de instituições representativas fortes, ela coloca um novo desafio para o país. Estabelecer uma convivência entre a democracia representativa e a democracia participativa.
Essa convivência não é simples, nem se constrói do dia para a noite, mas ela é cada vez mais necessária se quisermos fortalecer a nossa democracia.
Quando milhões de pessoas tomaram as ruas em junho de 2013, entre a cacofonia de reivindicações havia um pedido que agregava a multidão: “queremos ser ouvidos”. Um pedido que questiona a maneira como a política vem sendo conduzida. Uma vontade de participar além do voto a cada quatro anos. Um pedido por uma nova forma de controlar e interferir no poder.
Esse pedido é um eco da mudança trazida pela Constituição. Uma Constituição que foi escrita antes da internet e às vésperas da queda do muro de Berlim. Mas que deve ser lida com os olhos de 2014 e que exige da nossa sociedade que se pense mecanismos que possam conciliar a democracia representativa e as instituições liberais com novas formas de participação – fertilizadas pelas impressionantes possibilidades trazidas por novas tecnologias.
É neste contexto que deveria se dar a discussão sobre o decreto que institui a Política Nacional de Participação Social. Dizer que não é possível conciliar conselhos, conferências e outras maneiras de participação com a democracia representativa é não compreender a Constituição de 1988. O grande desafio é discutir se conselhos e conferências são as formas mais eficientes de participação popular.
Os cientistas políticos Thamy Pogrebinschi e Fabiano Santos fizeram uma pesquisa de leitura imprescindível para quem quiser compreender como conferências convivem com a democracia representativa. Os autores demonstram que não há competição entre as conferências e o Legislativo, há diálogo. Um dos principais resultados das conferências é a apresentação de propostas legislativas. Propostas que são debatidas no Congresso, mas esse debate se faz em diálogo com o processo construído na Conferência. Para os autores, as conferências fortalecem o Legislativo.
Não se pode deixar de considerar, também, o processo que resultou na aprovação do Marco Civil da Internet. A imprensa mundial celebrou a forma colaborativa pela qual se construiu o texto do Marco Civil. Depois do debate participativo, o texto foi para o Congresso e o Congreso debateu o projeto de lei levando em consideração argumentos construídos de forma participativa.
O que o decreto, tão comentado nas últimas semanas, faz é consolidar essas formas de participação. Dar mais transparência a um processo que existe e que vem fortalecendo a democracia brasileira, em acordo com o texto da Constituição.
E o decreto toma o cuidado de não afirmar, em nenhum momento, que essas novas formas de participação vão gerar obrigação para as pessoas ou para os poderes. Ele deixa claro que os órgãos do Poder Executivo vão ter que “considerar” (é essa a expressão utilizada) as instâncias de participação social. Ou seja, vão ter que dialogar, ouvir, responder publicamente as razões de se aceitar ou não recomendações feitas por essas instâncias.
A dúvida aqui, portanto, não é se o decreto põe em risco a democracia representativa ou se ele é inconstitucional. O que devemos nos perguntar é se esses mecanismos são suficientes – e eficientes – para garantir uma participação efetiva. Há enorme literatura sobre captura de espaços tradicionais de participação por determinados tipos de movimentos sociais. Assim como há enorme literatura sobre captura de agências reguladoras pelo poder econômico. Nem por isso devemos acabar com as agências reguladoras ou com as formas de participação.
A discussão sobre o decreto não pode ser feita com os olhos no passado. A convivência entre a democracia participativa e a democracia representativa é uma conquista da Constituição de 1988 (que até nos custou uma lasca de laicidade) e da prática democrática das últimas décadas. O desafio é como aprofundar essa convivência, como se aproveitar de novas tecnologias para isso. Apenas assim o Brasil vai conseguir atender ao pedido de seu povo que, como já disse em junho, que ser ouvido.
* Pedro Abramovay é advogado e diretor da Open Society Foundation