Valquíria Lima da Articulação Semiárido fala sobre o Programa Cisternas que levou o acesso à água para o Nordeste
Por Patricia Fachin, do Instituto Humanitas Unisinos
Na direção oposta aos projetos governamentais que apostam na construção de grandes obras como a solução para o enfrentamento da seca e dos problemas de abastecimento no Semiárido brasileiro, o Programa Cisternas, que nasceu de uma demanda e parceria entre a sociedade civil, organizações não governamentais e o Estado, foi premiado, no último dia 22 de agosto, como uma das políticas públicas mais relevantes no combate à desertificação. A escolha do Programa Cisternas foi feita pelo World Future Council em parceria com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação, e a cerimônia de premiação será realizada em setembro, durante a 13ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas, em Ordos, na China.
Na entrevista a seguir, a IHU On-Line conversa com Valquíria Lima, da coordenação executiva da Articulação Semiárido (ASA) pelo estado de Minas Gerais, que recupera a história do Programa Cisternas e acentua que essa política pública tem origens na demanda dos moradores da região. “Nosso grande diferencial foi propor uma tecnologia simples, barata e familiar e que, para o contexto dessas famílias do Semiárido, é uma tecnologia de ponta, efetiva, que realmente resolve o problema de abastecimento de água para o consumo humano”, diz. De outro lado, ressalta, as famílias do Semiárido “são protagonistas desse processo desde o início”.
Embora mais de um milhão de famílias tenham recebido as cisternas para captarem água da chuva para o consumo humano, Valquíria informa que ainda existe uma demanda de 400 mil famílias que precisam dessa tecnologia para ter acesso ao abastecimento, e mais de um milhão de famílias precisam da tecnologia para produzirem alimentos. Entretanto, por conta da crise, Valquíria diz que os recursos foram reduzidos. “Estamos atualmente trabalhando com recursos de 2015, e passamos os anos de 2016 e 2017 disputando para que esse orçamento fosse descontingenciado. Chegamos a 2017 com o orçamento do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) no valor de 28 milhões, quando o previsto eram 240 milhões de reais. Diante disso, não sabemos se haverá continuidade dessa política”, comenta.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Valquíria relata também como o acesso à água transformou a vida dos nordestinos em vários aspectos. “A vida dessas famílias melhorou significativamente; estamos falando de uma mudança familiar que tem implicações na saúde e, inclusive, no acesso à educação, pois as crianças não precisam mais interromper seus estudos para ter que buscar água. As mulheres puderam também utilizar seu tempo em outros afazeres dentro do seu contexto familiar e da sua vida pessoal, e também houve melhoras no processo de organização comunitária”.
Valquíria Lima integra a coordenação executiva da ASA pelo estado de Minas Gerais.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Como se deu o processo de escolha do Programa Cisternas como uma das seis melhores políticas de todo o mundo no combate à desertificação e acesso à água?
Valquíria Lima — Este prêmio existe há 22 anos, e nós não tivemos nenhuma indicação direta da nossa experiência. Então, quando nos comunicaram que o Programa Cisternas do governo brasileiro, que é um programa que nasceu na sociedade civil e se tornou uma política pública apoiada pelo governo brasileiro, foi selecionado entre as seis melhores experiências em relação ao acesso à água, dentro de um contexto das áreas que estão em processo de desertificação no mundo, foi uma surpresa muito positiva, porque esse programa retrata os 18 anos da construção dessa política pública no Semiárido brasileiro.
IHU On-Line — Pode nos contar qual é a história do Programa Cisternas e como se deu a consolidação desse programa em um política pública?
Valquíria Lima — Há mais de 50, 60 anos as organizações da sociedade civil que atuavam no Semiárido brasileiro vinham apoiando comunidades e famílias no processo de conviver com a seca em suas comunidades e regiões. A cisterna enquanto tecnologia nasceu desta forma: um agricultor de Sergipe, que migrava todos os anos para São Paulo para trabalhar na construção civil, trabalhou muito na construção de piscinas. Quando ele retornou para Sergipe, começou a pensar em desenvolver um reservatório de armazenamento de água da chuva, baseado na experiência que ele tinha na construção de piscinas em São Paulo. Assim, ele construiu a primeira cisterna de captação de água da chuva. As organizações e as entidades de apoio fortaleceram esse processo de experimentação, de modo que ela se transformasse numa tecnologia social, porque ela não tem patente, não tem dono, mas foi adotada por todas as famílias do Semiárido brasileiro.
Em 1999, quando estava acontecendo a Conferência das Nações Unidas de Combate à Desertificação no Brasil, os governos estavam discutindo políticas de combate à desertificação. Então as entidades que atuavam no Semiárido brasileiro montaram um fórum paralelo, onde nasceu a Articulação Semiárido (ASA), que é o conjunto dessas organizações que já atuavam no semiárido brasileiro e que já estavam multiplicando essa tecnologia social.
Em 1999, propomos aos governos estaduais e ao governo brasileiro uma política pública de acesso à água para as famílias do Semiárido — água para consumo humano —, e foi assim que nasceu o Programa Cisternas. Vimos que o jeito de resolver o problema de acesso à água para as famílias do Semiárido que estavam dispersas seria fazer com que cada família tivesse uma cisterna de captação de água da chuva. Em 2000, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) bancou um projeto piloto de 500 cisternas, e nós, enquanto articulação, executamos essa primeira experiência.
Em 2001, conseguimos uma experiência maior com a Agência Nacional de Águas (ANA), que implementou conosco uma proposta de construção de 14.500 cisternas para o Semiárido brasileiro, e nós executamos a implantação dessas cisternas em dois anos. Em 2003 o governo Lula assumiu o combate à pobreza como uma das suas principais bandeiras, e o Fome Zero também significava sede zero. Nessa época, o governo brasileiro passou a assumir o Programa Cisternas como uma política de acesso à água. Portanto, o Programa nasce de fato de uma demanda local, da experimentação de um agricultor potencializado pelas organizações de apoio, articulado pela sociedade civil em rede, que propõe ao Estado brasileiro uma política pública efetiva de acesso à água para o Semiárido brasileiro.
Depois, construímos novas políticas, que chamamos de políticas complementares importantes. Isto é, toda a família do Semiárido brasileiro precisa ter uma cisterna para consumo humano, uma tecnologia para armazenar água da chuva para a produção de alimentos e também precisa ter sementes em sua casa para que possa garantir o domínio das suas sementes adaptadas à sua comunidade, ao seu local e ao seu território.
IHU On-Line — Em que aspectos essa política pública se diferenciou de outras que tinham o mesmo propósito de enfrentar a desertificação?
Valquíria Lima — Ao longo dos anos, os governos sempre encararam que a solução para o abastecimento de água dessas famílias dispersas nas comunidades rurais do Semiárido seriam as grandes obras: transposição dos rios, os grandes projetos de irrigação, a construção de grandes barragens ou a perfuração de vários poços artesianos. Todas essas políticas se tornaram ineficientes, caras e não adaptadas à realidade local. Nosso grande diferencial foi propor uma tecnologia simples, barata e familiar e que, para o contexto dessas famílias do Semiárido, é uma tecnologia de ponta, efetiva, que realmente resolve o problema de abastecimento de água para o consumo humano.
O diferencial foi este: de um lado, propor uma tecnologia simples, barata e efetiva e, de outro, o nosso processo de mobilização, porque as famílias não recebem uma doação, não recebem uma transferência de tecnologia ou uma obra. Ao contrário, elas são protagonistas do processo desde o início, a partir da escolha do município, das comunidades e das famílias que terão suas cisternas naquele momento. Elas participam do processo de construção, de formação, tudo é feito em mutirão. Isso faz com que as famílias se sintam protagonistas, conquistando suas cisternas, e não recebendo uma obra pronta sem participação e sem mobilização social.
IHU On-Line — Qual tem sido o impacto dessa política para enfrentar a desertificação no Nordeste brasileiro? O que mudou na vida das pessoas depois da implementação das cisternas?
Valquíria Lima — Hoje 58% das áreas do Semiárido brasileiro estão suscetíveis a algum processo de desertificação. O Programa de Cisternas atinge todo o território do Semiárido, temos uma cobertura em todos os municípios considerados do Semiárido Legal. Nós já atingimos a meta de construção de mais de um milhão de cisternas de captação de água da chuva para o consumo humano, mas ainda existe uma demanda muito grande — são dados que o próprio governo apresenta —, pois mais de 400 mil famílias ainda necessitam dessa tecnologia de acesso à água para o consumo humano.
Se formos pensar no armazenamento de água da chuva para produção de alimentos, temos uma demanda de mais de um milhão de famílias do Semiárido que ainda precisam dessa tecnologia. De todo modo, a vida dessas famílias melhorou significativamente; estamos falando de uma mudança familiar que tem implicações na saúde e, inclusive, no acesso à educação, pois as crianças não precisam mais interromper seus estudos para ter que buscar água. As mulheres puderam também utilizar seu tempo em outros afazeres dentro do seu contexto familiar e da sua vida pessoal, e também houve melhoras no processo de organização comunitária.
Portanto, costumamos dizer que a cisterna é uma libertação: o reservatório não está cheio só de água, mas também de cidadania, de reconhecimento de direitos à água, à vida, à saúde e à educação. O Programa de Cisternas hoje também está presente nas escolas rurais: muitas escolas rurais estavam fechando as portas porque não tinham condições de funcionar, pois não tinham água para que as crianças pudessem consumir e para a produção da merenda escolar.
IHU On-Line — O ano passado foi considerado um dos piores em relação à seca em algumas regiões do Semiárido. De que modo o uso das cisternas tem contribuído para ajudar neste problema específico?
Valquíria Lima — Nós estamos atravessando — não superamos ainda — essa seca, que tem mais de cinco anos. Os dados oficiais do governo e da própria ANA demonstram que em todos os reservatórios de água, em todo o Semiárido brasileiro, nós temos 15% de água. Mas nós percebemos que há uma mudança no contexto do Semiárido. Há uns 40 anos, nesses grandes períodos de seca, víamos muitos saques, muita fome, muitas comunidades — mulheres, crianças e idosos — morrendo por conta de falta de comida e de água; não vemos mais essa realidade. Isso não se deu somente por conta da implantação das cisternas, lógico, mas também pelo investimento feito, pelos programas sociais e pela distribuição de renda para essas famílias.
Um conjunto de políticas públicas, como as cisternas, possibilitou uma melhoria na qualidade de vida dessas famílias e uma melhor distribuição de renda. Então, hoje, as famílias que têm seu reservatório de água da chuva, mesmo não chovendo, estão sendo abastecidas pelos carros-pipa, que é uma política importante para garantir o abastecimento em casos de emergência. Hoje há muito mais dignidade, distribuição de renda e capacidade de superar essa grande seca prolongada.
Até dois anos atrás estávamos vendo um movimento contrário: enquanto passamos décadas vendo o processo de migração, em que as famílias saíam do Semiárido para os grandes centros, percebemos, ao longo desses últimos 15, 16 anos, um movimento contrário, um movimento de retorno de várias famílias dos grandes centros às comunidades rurais, porque existiam perspectivas melhores na região. Mas, neste momento, estamos enfrentando uma transição complicada, porque na medida em que os programas sociais são interrompidos, e não há continuidade das políticas sociais e dos programas de distribuição de renda, esse processo de migração das comunidades rurais para as grandes cidades tende a se intensificar.
Há 20 anos, quando se falava do Semiárido na imprensa, só víamos crianças e gado mortos, e seca. Hoje, contudo, há um olhar diferente. Mas é preciso que o governo brasileiro continue tendo essa área como prioritária, que é a área mais empobrecida do Brasil, onde mora a maior quantidade de agricultores familiares e camponeses e comunidades indígenas e quilombolas do país.
IHU On-Line — Qual é a atual situação do Programa Cisternas? Quantas cisternas foram entregues e qual é a expectativa de ampliar o programa?
Valquíria Lima — Estamos enfrentando o grande desafio de dar continuidade a essas políticas. Estamos vivendo no país um momento de refluxo do investimento dos recursos para os programas sociais. Foi criada uma PEC que congela o orçamentopara investimento nas políticas sociais, e não só de acesso à água, mas também em saúde, educação, entre outras. As políticas de acesso à água são impactadas por essa decisão política, essa crise que o país está vivendo, onde, infelizmente, os pobres acabam pagando a maior conta. Entretanto, já está mais do que comprovado que é muito mais caro para o governo criar políticas vinculadas às grandes obras e ao abastecimento por meio de carros-pipa do que investir em tecnologia social, como o Programa Cisternas.
Há uma diminuição significativa dos recursos: estamos atualmente trabalhando com recursos de 2015, e passamos os anos de 2016 e 2017 disputando para que esse orçamento fosse descontingenciado. Chegamos a 2017 com o orçamento do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) no valor de 28 milhões, quando o previsto eram 240 milhões de reais. Esses são os dados apresentados pelo próprio Secretário Nacional de Segurança Alimentar. Diante disso, não sabemos se haverá continuidade dessa política.
O governo sinalizou que é importante dar continuidade ao programa e, de fato, do ano passado para cá ele cumpriu o que já estava contratado, mas não apresenta, até o momento, uma perspectiva de recursos novos. Dessa forma, vivemos, neste momento, enquanto esse programa é premiado internacionalmente como uma das melhores políticas mundiais de acesso à água, a possibilidade da interrupção dessa política por conta da crise e do impacto que os programas sociais estão sofrendo no campo do orçamento.
IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?
Valquíria Lima — Nós, da Articulação do Semiárido, entendemos que política pública se faz com recursos públicos, e esses recursos do povo brasileiro precisam ser bem empregados e investidos. Os pobres não podem pagar essa conta, e o Programa de Cisternas não pode ser interrompido, dada sua demanda tão grande, por conta de uma crise política e uma crise econômica que o país está atravessando. É importante a continuidade dessa política. É importante lembrar ainda que essa política só conseguiu ir tão longe devido ao processo de diálogo construído entre a sociedade civil e o governo, que quando uniram esforços, conseguiram levar essa política pública de forma efetiva e coerente. Portanto, política pública se faz com base na construção conjunta e no diálogo entre a sociedade civil e o governo.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos