No primeiro dia de debates, especialistas alertaram para as ameaças impostas pelo atual modelo de desenvolvimento capitalista para o futuro da civilização
Por Nicolau Soares
Uma análise sobre as possibilidades e entraves para a superação do atual modelo de desenvolvimento do ponto de vista da economia marcou a segunda mesa do Seminário “Desenvolvimento em Disputa: Por uma Economia a Serviço da Vida”, que aconteceu na tarde desta terça-feira (17), em Brasília. A denúncia do poder do sistema financeiro na definição dos rumos do planeta e um questionamento das próprias bases de nossa civilização permearam o debate.
O economista e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Ladislau Dowbor traçou um panorama assustador sobre o capitalismo financeiro hoje em dia, tanto em nível nacional quanto mundial. Ele citou um estudo sobre a estrutura do capitalismo global, feito por pesquisadores suíços. Eles analisaram os maiores grupos mundiais para entender as conexões entre eles, chegando àqueles que detém maior controle sobre a economia mundial.
“Você pega um banco como o Barclays, acionista majoritário de grandes empresas, que são, por sua vez, controladoras de outras. É um conjunto de cruzamentos que resulta em nodos de controle, mostrando quem tem mais influência sobre o destino dos recursos”, explicou o professor.
Segundo o estudo, 737 grupos econômicos controlam 80% das corporações do mundo. Dentre eles, há um núcleo de 147 que controla 40% da economia mundial – e destes, 75% são bancos. “Estamos falando de grupos que controlam até 10 mil empresas em mais de 50 países, em dezenas de setores diferenciados. É uma holding que controla diversas outras holdings que, por sua vez, controlam outras centenas. Corporações dessa lista chegam a ter seis ou sete níveis nessa cadeia de controle”, afirmou. “Forma-se uma pirâmide de poder que tem participações cruzadas, mas há alguns que efetivamente controlam e a maioria são bancos. Quem manda no planeta não é a GM, a Nestlé ou outra empresa que produz: são grupos financeiros.”
Outra pesquisa, ao analisar a estrutura de 28 empresas do setor, reafirma a força descomunal do setor financeiro. Os dados mostram que a média de faturamento desse grupo está em US$ 1,7 trilhões, próximo do valor de toda a arrecadação de impostos das três esferas do Estado brasileiro.
O poderio destas empresas permite que elas interfiram de forma pesada nas decisões de governos nacionais, impondo seus interesses muitas vezes em detrimento dos direitos da população. “Há limites extremos nas políticas nacionais pelo fato de ter se estruturado esse poder planetário. Essa estrutura financia candidatos e tem poder para pressionar governantes. O resultado prático é que temos nas últimas décadas todos os governos do mundo endividados. É um sistema que deu a esses grupos o controle dos governos, não diretamente, mas segurando pelas partes delicadas, o dinheiro”, afirmou Dowbor.
No Brasil, a atuação do sistema financeiro não fica atrás em termos de prejuízo para o conjunto da sociedade. As elevadas taxas de juros cobradas de pessoas físicas e jurídicas inibe o crescimento das empresas e a geração de empregos, enquanto dá aos bancos lucros cada vez mais altos.
“O juros do rotativo do cartão de crédito podem chegar a 630% ao ano, crediário passa de 100%. Isso mata a demanda das pessoas e não dinamiza a economia. Para as empresas, as taxas são de 30% a 40%, enquanto as multinacionais se financiam no exterior a taxas de 3%”, afirmou o economista. “A gente fica triste com a Grécia, mas não olha para dentro. Estamos no mesmo barco, no mesmo sistema financeiro que aprendeu a chupar, através de juros, recursos da sociedade para seus lucros”, denunciou.
Materialização de possibilidades
Guilherme Carvalho, coordenador da Fase Amazônia, fez uma crítica profunda e histórica à sociedade atual, partindo do que chamou de “ideias-força” que norteiam o capitalismo. Para ele, a superação do modelo produtivista-consumista de economia passa pela crítica a essas ideias.
A primeira é a noção de progresso ou desenvolvimento, que vende uma ideia necessariamente positiva de futuro, numa evolução “natural”. “Mas isso não está dado, o futuro depende das decisões que tomamos hoje. E podemos, inclusive, estar colocando a nossa existência em risco com essas decisões”, afirma.
Outra noção central da nossa sociedade é a valorização do conhecimento científico em detrimento do conhecimento ancestral. “Isso tem provocado catástrofes de toda ordem na Amazônia, com os grandes projetos. Acompanhei muito as hidrelétricas do Rio Madeira e havia comunidades que, durante os estudos de impacto, falavam que a área alagada chegaria até uma certa região e tudo ia desaparecer. Os técnicos e os estudos diziam que não ia acontecer assim – mas aconteceu. A mesma coisa com Belo Monte”, recordou.
Nesse sentido, superar o modelo produtivista-consumista significa construir uma nova perspectiva que “rompa com o fosso entre nós e a natureza, com a visão de que o conhecimento científico é superior ao ancestral, e veja como é necessário diálogo entre eles”, defende o ativista.
Guilherme destacou ainda os ataques sofridos pelas populações indígenas com base nessa visão de mundo. “Essas populações são vistas como atrasadas, miseráveis, quando não o são. São tratadas como passado. Quando a Dilma diz que estamos ‘contra o progresso’, isso é mais que mera retórica: nos coloca contra a sociedade toda. Porque o discurso do progresso é mobilizador, coloca a sociedade contra nós”, analisou.
Para ele, a própria existência dos povos da Amazônia é um entrave para o sistema hoje. “Eles são a materialização da possibilidade de uma forma diferente de viver. Por isso, se constituem um problema político, econômico e social”, afirmou. “O debate do ‘bem viver’, trazido pelos indígenas andinos, não é uma critica ao modelo de desenvolvimento econômico, mas a todo o modelo civilizatório de nossa sociedade. Eles perguntam que civilização nós estamos construindo e qual queremos construir.”