Povos e setores oprimidos se reuniram em Porto Alegre para discutir a situação atual e organizar o Fórum Social das Resistências, que acontecerá em janeiro
Por Nicolau Soares
Nos dias 9 e 10 de dezembro, aconteceu o seminário “Novos atrizes e atores sociais em resistências – a construção de novos paradigmas para um outro mundo possível”, em Porto Alegre. O evento reuniu intelectuais e militantes de diversos movimentos sociais para discutir a conjuntura de retrocessos que o Brasil hoje atravessa e possíveis saídas no enfrentamento dessa situação.
O evento foi organizado pela Abong, por meio do projeto Novos Paradigmas de Desenvolvimento – Pensar, Propor, Difundir, em parceria com as organizações e movimentos engajados na construção do Fórum Social das Resistências (FSR), que acontecerá em Porto Alegre, entre os dias 17 e 21 de janeiro. O objetivo da aproximação entre os dois grupos é, por um lado, fortalecer a articulação em torno do FSR e ao mesmo tempo agregar á reflexões do Grupo de Referência do Novos Paradigmas os olhares e vivências dos mais diversos grupos ali representados.
História de golpes
Na mesa inicial, Liege Rocha, da direção nacional da União Brasileira de Mulheres (UBM), fez um relato sobre as ameaças que se abatem sobre os trabalhadores e trabalhadoras no momento. “Temos cada dia mais ameaças a nossos direitos e conquistas. A reforma da Previdência é uma tragédia que assola os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil. O desemprego cresceu, mesmo com a proximidade das festas de fim de ano, que sempre aumenta o recrutamento para trabalho temporário e ainda tem a terceirização e a PEC 241/55. Mais do que nunca nós precisamos resistir”, afirmou.
Kaká Werá, militante pelos direitos indígenas e presidente do Instituto Arapoty, lembrou que, para as culturas indígenas, “desde o século XVI é uma sequencia de golpes”. “Todos os governos de lá pra cá são golpes. Começou com as capitanias hereditárias e mudou de nomes, passou por império, república e pela suposta democracia que temos aí. Mas algumas coisas não mudaram do ponto de vista do sofrimento e terror a indivíduos, comunidades e sociedades”, sustenta. Ele considera fundamental promover uma visão de mundo que respeite a pluralidade, diversidade e não seja predatória em relação à natureza.
Antonio Martins, editor do site Outras Palavras e membro do Grupo de Referência do projeto Novos Paradigmas, analisou o momento brasileiro dentro do contexto mundial, de ascensão de discursos e grupos conservadores, e o papel do Fórum Social Mundial. Para ele, “há um sentimento de descontentamento, que ameaça as principais estruturas políticas criadas pelos conservadores, mas isso não favorece movimentos como os do Fórum Social Mundial.”
“A crise de 2008 nos pegou em situação ainda embrionária. O capital financeiro causou a crise e construiu uma narrativa de que se os bancos quebrassem, quebrariam a sociedade. E nós não tínhamos alternativas concretas para propor: o que fazer em vez de salvar os bancos? Não fomo capazes de responder”, explica. Ele destaca um aspecto promissor do momento que é a existência de uma grande galáxia de movimentos e alternativas em gestão. “Falta dar um passo adiante, e cabe ao FSM e a nós pensar, o que precisamos para passar dessa alternativas, locais, territoriais, para alternativas que expressem uma mudança de organização política. Esse é o desafio.”
Regina Nogueira, coordenadora nacional do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, foi na mesma linha, mas falando do sofrimento da população negra. ” Para nós, povos tradicionais de matriz africana e população negra, esse processo de subjugação, extermínio, exploração e perda de direitos vem desde que fomos sequestrados da África”, atacou, inclusive questionando o racismo dentro das estruturas de esquerda, que muitas vezes ignora as pautas e pessoa negras.
Novas visões
A rapper Vera Verônika afirmou que para o movimento hip-hop, estar nesse espaço “representa um reconhecimento de uma resistência que acontece no Brasil há mais de 40 anos”. Ela fez um resgate da origem do movimento, nos guetos dos EUA, onde a cultura, a música, a dança e o grafite serviram de forma de reunião e resistência para os negros e negras. “Muitas vezes as instâncias do movimento social não nos reconhecem. Não temos legitimidade para estar em outros espaços, mas somos convidados como mão de obra barata, às vezes de graça, para o momento cultural. Ter uma voz real nesse Fórum das Resistências estamos rompendo um paradigma que os outros movimentos sociais estão reconhecendo que nós também fazemos social e cultura nesse país”, afirmou.
Ana Júlia, secundarista de Curitiba, uma das representantes das escolas ocupadas no Paraná, trouxe a visão dos estudantes sobre o momento político, destacando as ameaças da PEC 241/55 e da MP 746, que altera o currículo e organização do ensino médio. Ela relatou o ato de resistência no dia de votação da PEC 241, quando milhares de estudantes de todo o Brasil foram para Brasília e foram duramente reprimidos pela polícia. “Nós viemos manifestar nossa insatisfação com a PEC, mas não conseguimos ter um ato, porque a força policial do DF nos mostrou o quanto ela é despreparada, o quanto age com violência. E mesmo assim, com a polícia marchando contra os estudantes e jogando bombas de gás lacrimogêneo, nós resistimos por 6 horas”, recordou. “Para nós, resistência é isso. Quando a gente sai da escola e diz ‘eu lutei por meus direitos’. Isso é resistência pra nós, quando a gente não larga a nossa bandeira”, definiu.
O rapper Chicuta, egresso do sistema prisional e membro da ONG Parresia, falou sobre a opressão sofrida dentro e fora da cadeia. “Tudo que eles faziam lá dentro, eles continuam fazendo aqui fora, que é tirar nossos direitos. Quando eu comecei a aprender e ensinar os irmãos lá dentro que a gente tinha que lutar por nossos direitos, que a gente tinha que escrever para as autoridades como a lei permite, me apontaram como uma liderança negativa, porque estávamos denunciando o que eles faziam “, denunciou. “E aí cortaram escola, cursos profissionalizantes. Porque sabem que se a gente aprender, se estiver informado, vamos saber pelo que brigar. Então fizemos de qualquer jeito, com eles ajudando ou não, tanto lá dentro como aqui fora.”
Unir forças e avançar
Marcos Arruda, coordenador do PACS – Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul e membro do Grupo de Referência do Projeto Novos Paradigmas, ressaltou a importância de se construir um novo modo de vida, que supere o capitalismo na economia e em outros aspectos. “Precisamos olhar os povos tradicionais e aprender com eles, que criaram uma política econômica em que todos partilham o suficiente com todos”, afirmou.
“Devemos orientar a economia para a produção e reprodução da vida, todas as formas de vida. Não pode ser o mercado quem orienta para onde vão os recursos. Precisamos substituir a empresa como ator para discutir as prioridade em nome da comunidade humana, pelas famílias, as pessoas que se reúnem”, defendeu.
Cleonice Back, secretaria de Políticas Sociais da CUT-RS, destacou a importância de unificar os movimentos de esquerda nesse momento de resistência. “Esse Fórum das Resistências tem que ser um espaço para a gente fortalecer e unificar as lutas de fato. Mostrar que o povo brasileiro, os trabalhadores do campo e da cidade, não vão aceitar esses retrocessos do governo [Michel] Temer e [José Ivo] Sartori [governador do RS]”, sustentou.
Damien Hazard, diretor da Abong Bahia e membro do Comitê Internacional do FSM, trouxe um relato sobre a situação dos povos africanos que passaram pelos levantes conhecidos como Primavera Árabe. Em especial, falou da Tunísia, que sediou o Fórum em 2015 e que, dos nove países que derrubaram ditadores naquele momento, é o único que se tornou uma democracia. Ainda assim, vive uma situação dúbia.
“O povo elegeu um partido com ideias neoliberais, que aumentaram o desemprego, e hoje a Tunísia é o país que mais ‘exporta’ pessoas para os movimentos radicais islâmico. Mas não é tão simples: o país tem uma constituição nova, que garante mais direitos para minorias como mulheres; uma sociedade civil forte que conseguiu intervir e criar acordo entre os partidos; e temos muito debate político. A revolução ainda continua”, contou Damien.