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Sociedade civil: há 50 anos na luta contra a ditadura

Meio século após o golpe militar que mudou a história do país, Organizações da Sociedade Civil continuam lutando contra as marcas que 21 anos de ditadura deixaram na política, na mídia, na polícia e na memória dos brasileiros

Por Nana Medeiros

Em 1979, em meio aos crimes cometidos contra os direitos humanos pelo regime militar, foi fundado o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis (CDDH), no Rio de Janeiro. A instituição, ligada à esquerda católica e à teologia da libertação, surgiu com o propósito de contribuir para a formação de movimentos de base, principalmente no que se referia a reforma agrária, moradia e fortalecimento de ocupações. Devido ao auxílio para o crescimento de diversas organizações populares, muitos/as militantes engajados/as na resistência à ditadura se aproximaram do Centro. Logo a atuação da entidade passou a ser pautada pela questão da ditadura militar, mais precisamente na luta contra a Casa da Morte, localizada em Petrópolis.

Mantida nos anos 70 como local de tortura pelo Centro de Informações do Exército (CIEx), onde cerca de 20 presos políticos foram executados, a Casa foi descoberta a partir do depoimento feito por Inês Etienne Romeu, a única a sair de lá com vida. Hoje, a Casa da Morte passa por um processo de desapropriação. Enquanto município, Estado e governo federal se articulam para levantar R$ 1,4 milhão para a desapropriação, organizações como o CDDH pressionam esses agentes e apontam para a necessidade de transformar a casa em um centro de memória.

Segundo Carla Fernandez, coordenadora da instituição, o objetivo não é criar um museu estático e descritivo, mas um instrumento de relação entre passado e presente políticos e sociais do país, contribuindo para a atual luta contra a violência e a impunidade. “Trabalhamos a questão da violência estatal e conseguimos perceber uma segurança pública bem próxima da que se fazia naquela época. Corpos desaparecidos, torturas no sistema prisional, policiais que matam, entre outras coisas. Desejamos discutir isso para que as pessoas saibam por que, ainda hoje, existe esse tipo de trato do Estado com parte da sociedade”.

A história é um exemplo da importância da atuação das Organizações da Sociedade Civil (OSC) na luta contra a ditadura e todos os seus efeitos – que, em muito sentidos, duram até hoje. Enquanto o golpe que depôs o presidente eleito João Goulart completa 50 anos, entidades como o CDDH e muitas outras seguem vivas lutando para que os direitos humanos prevaleçam. E para que as novas gerações compreendam o passado e não permitam que ele se repita.

Memória como instrumento de luta

No caso do CDDH, a luta é realizada por meio de ações e estratégias pedagógicas, promovendo eventos e debates sobre a época da ditadura e seus reflexos nos tempos atuais. A ONG é um dos principais agentes sociais na campanha pela desapropriação da Casa da Morte e, em 2012, recebeu o prêmio de Direitos Humanos da Presidência da República na categoria Direito à Memória e à Verdade.
Para Fernandez, a sociedade civil organizada deve usar o resgate da memória para enfrentar os resquícios da ditadura, preocupando-se em incidir na construção de políticas públicas e acompanhá-las, fortalecendo assim a memória e o embate político a favor da democracia.

Assim concorda Anivaldo Padilha, uma das figuras centrais na resistência contra a ditadura. Para ele, a sociedade civil é elementar no processo de transição democrática do país. “É importante que movimentos e organizações unifiquem suas diversas lutas para fortalecer a sociedade civil. Incidência política é fundamental”, afirma.

Padilha iniciou a militância dentro do movimento estudantil, apoiando as reformas de base propostas por João Goulart e atuando com educação, alfabetização e formação de jovens e adultos nas Igrejas. Em 67 entrou para a Ação Popular (AP). Formada por jovens católicos e protestantes em 1962, a AP teve grande importância no período para o movimento estudantil, além de atuar em parceria com o movimento operário na criação e organização de uma oposição sindical.

Padilha fez parte da construção de diálogos entre a Igreja e intelectuais, estudantes e acadêmicos, participando do processo que culminou na Teologia da Libertação. Essa busca por transformações sociais e econômicas no país, no entanto, foi barrada com o golpe de 64 e o regime passou a perseguir grandes lideranças do movimento, inclusive da Confederação Evangélica do Brasil.

Em 1968, quando instaurado o Ato Institucional nº5, o movimento ecumênico brasileiro passou a informar redes ecumênicas internacionais sobre a tortura institucionalizada e o terror político perpetrado pelo próprio Estado Brasileiro. Padilha, participante ativo do movimento, contribuiu para a denúncia de torturas e para a proteção de perseguidos políticos, até que foi preso por agentes da OBAN em 1970.

Na época, ele trabalhava para a União Latino-Americana de Juventudes Ecumênicas (ULAJE), pesquisando sobre “Juventude e Mudança Social na América Latina”, assessorado por Eliana Rolemberg. Ambos foram presos, torturados e levados à clandestinidade.

Ditadura e a criminalização da sociedade civil organizada

Rolemberg hoje atua na CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviços), entidade que já naquela época trabalhava pela democracia. Ela conta que a CESE havia lançado uma cartilha com a Declaração dos Direitos Humanos, publicação que chegou a outras organizações, universidades e inclusive prisões. Hoje, a entidade é representada por José Carlos Zanetti na Comissão da Verdade, junto a outros grupos como o Tortura Nunca Mais.

Para Rolemberg, os movimentos sociais deram contribuições significativas na luta contra a ditadura. “Não teve tortura ou repressão que conseguisse impedir que a sociedade civil buscasse distintas estratégias para a resistência. A luta e a mobilização dessas organizações pelo restabelecimento democrático é o que impulsiona, ainda hoje, a construção da liberdade que tanto almejamos”, afirma. Ela avalia ainda que a importância de organizações não-governamentais no embate ao regime militar persiste, sendo que existem comissões da verdade criadas exatamente por iniciativas da sociedade civil.

Como parte dos resquícios do regime militar, no entanto, organizações e movimentos sociais sofrem com a criminalização diária de suas ações, principalmente pela mídia. Na opinião de Padilha, o fim da ditadura não significou o fim de seus instrumentos e mecanismos baseados em uma ideologia totalitária. Para ele, a imprensa prossegue contorcendo a realidade, manipulando informações e omitindo fatos importantes.

Para Rolemberg, a criminalização de organizações tem aumentado em função de situações de corrupção envolvendo ONGs. No entanto, o modo que se faz política no país – que dá margem para ações ilegais – é um dos principais resquícios da ditadura. Ou seja, a corrupção, herança do regime, recai justamente no setor que pretende combater a impunidade. “Não podemos esquecer que os golpistas não foram apenas aqueles de 64 e 68. Existem golpistas que estão aí de plantão e são uma séria ameaça para a consolidação de direitos no país. Uma ameaça para a concretização do que almejamos enquanto sociedade civil organizada, que é democracia plena e justiça”.

Neste sentido, Padilha e Rolemberg acreditam na necessidade de uma reforma política para promover maior participação popular nas instâncias de decisão, implementação de políticas públicas – principalmente na área de direitos humanos – e construção de um novo sistema político-eleitoral. Para Padilha, “a corrupção não vai diminuir, independente do setor, sem uma reforma política que contrarie os controles e poderes deixados pela ditadura e que freiam a garantia de direitos”.

O abuso do poder econômico e os limites para a participação da população nas decisões políticas são resquícios da ditadura que inclusive potencializam outras marcas deixadas pelo regime, como o funcionamento atual da segurança pública do país. Comandado pela força militar, o sistema policial trabalha a partir da punição e do confronto ao “inimigo interno”, a mesma lógica presente na época da ditadura contra a oposição. “Ainda vivemos numa cultura alimentada pela ditadura, principalmente entre a elite, que não aprendeu a conviver com a democracia. A criminalização e genocídio da população pobre fazem parte dessa lógica de não ouvir e reprimir”, afirma Padilha. Segundo ele, a PM foi criada em 1967 com o objetivo de reprimir e matar, não para proteger a sociedade, mas sim a ditadura. Hoje, o alvo seria a juventude preta e pobre da periferia.

A reinterpretação da Lei da Anistia, neste sentido, contribuiria para o reconhecimento da tortura como crime e não algo que pode passar intacto e ainda pode existir no país. Para Padilha, a revisão da lei teria impacto em outras áreas da sociedade, inclusive em relação à segurança. “No momento em que houver punição para os torturadores da ditadura, necessariamente faremos a mesma coisa aos torturadores de hoje”, acredita.

Nesse contexto, mais uma vez a sociedade civil se destaca, contribuindo para finalizar o processo de transição democrática do país. Através de políticas públicas, práticas locais e projetos de incidência política, organizações e movimentos buscam que as prioridades sejam tratadas e resolvidas de forma democrática, forçando o congresso, o executivo e o judiciário a acabar com o que restou do regime militar.

Para Eliana Rolemberg, ainda falta uma reflexão fundamental sobre o papel da sociedade civil organizada durante a ditadura. Em sua opinião, mesmo com a passagem para a construção de uma democracia temos que considerar que ainda não temos no Brasil uma democracia plena. “A história que nos é contada hoje é imposta e esconde muitas coisas. É muito importante que se possa ter conhecimento político, econômico e cultural do que aconteceu, preservando nossa identidade e memória nacional e reconhecendo a verdadeira história do Brasil”.

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