O sociólogo Pedro A. Ribeiro de Oliveira apresenta neste artigo uma proposta para atualizar as metodologias de análise da conjuntura mundial, levando em consideração as relações entre a espécie humana e o ambiente, até então desconsideradas. “Tal mudança metodológica, porém, ainda não ocorreu, apesar de algumas tentativas nesse sentido. A proposta aqui apresentada é mais uma tentativa de ampliar o horizonte temporal e espacial da análise de conjuntura, para nela incluir as relações entre a nossa espécie e o Planeta em que vivemos”, resume.
Lei a seguir, com texto de abertura do teólogo Leonardo Boff, que divulgou originalmente:
Pedro A.Ribeiro de Oliveira é um excelente sociólogo com uma sólida formação acadêmica, seja no Brasil, seja em Louvain onde se doutorou. Tem sempre unido reflexão teórica com contatos orgânicos com as bases da sociedade. Coordena o movimento Fé e Política, que em suas sessões reúne algumas centenas de pessoas para articularem melhor a fé com a política, o sentido de sua transformação. Poucos são os sociólogos que em suas análises de conjuntura inserem o fator Terra. Isso é um vazio lamentável. O objeto da sociologia não pode se restringir às sociedades com todas as suas relações. Deve inserir a Terra viva, suporte de todos os projetos. Na crise econômica de 1929 e em outras subsequentes, se partia do pressuposto de que a Terra detinha todos os bens e serviços necessários para a manutenção e expansão da vida. Dava-se isso por descontado. Hoje a realidade mudou: a Terra mostrou-se um planeta pequeno, limitado, com recursos escassos, incapaz de suportar um projeto de crescimento ilimitado. O fato de ocorrer o aquecimento global e tantos eventos extremos (terremotos, estiagens prolongadas, degelo das calotas polares, frequência maior de tufões e mudanças climáticas inegáveis) demonstram que a Terra, Casa Comum, está ficando doente e perdendo sustentabilidade. Se não cuidarmos de seu equilíbrio e não contivermos nossa voracidade depredadora de seus escassos bens e serviços, poderemos, num futuro não muito distante, conhecer graves tragédias ecológico-sociais. Foi com esta consciência que Pedro Ribeiro, um dos primeiros no país de operar esta mudança paradigmática, introduziu a Terra viva como dado a ser tomado em conta em qualquer análise que fizermos. Temos a ver com um dado sistêmico, vale dizer, afeta todos os sistemas da realidade, dos saberes e das políticas nacionais e mundiais. Esse texto do autor, límpido e didático, poderá nos ajudar a seguirmos o mesmo caminho de análise, ganhando mais concretude em nossa leitura da realidade eco-sócio-econômica.
Leonardo Boff
Um novo paradigma para a análise de conjuntura
Por Pedro A.Ribeiro de Oliveira
Apresentação
A percepção da espécie humana como força capaz de impactar significativamente a superfície da Terra e seus processos vitais levou importantes cientistas a propor a hipótese do antropoceno. Embora não haja consenso sobre ela, nem sobre o início dessa era geológica, assumo como ponto de partida que em meados do século 20 a Terra já estava em pleno antropoceno. Isso deveria provocar enorme mudança em nosso método de análise de conjuntura, que até então podia desconsiderar as relações entre a espécie e o ambiente por não afetarem significativamente os processos históricos das sociedades humanas. Tal mudança metodológica, porém, ainda não ocorreu, apesar de algumas tentativas nesse sentido. A proposta aqui apresentada é mais uma tentativa de ampliar o horizonte temporal e espacial da análise de conjuntura, para nela incluir as relações entre a nossa espécie e o Planeta em que vivemos.
- A espécie homo sapiens e seu impacto na Terra
O surgimento do homo sapiens deve ter ocorrido entre 200 e 300 mil anos, certamente na África, de onde iniciou sua migração para outros continentes entre os anos 100.000 e 20.000 AEC (antes da era comum). Formou pequenas sociedades caçadoras-coletoras que, beneficiadas pela estabilização do clima após a última glaciação (10.000 AEC), passaram a fixar-se em territórios onde iniciaram a domesticação de plantas e animais. A hipótese mais difundida é que até então não havia a dominação patriarcal e as relações de gênero variavam de uma sociedade para outra (matri ou patrilineares). É com a revolução neolítica, que dá origem às sociedades agrícolas e pastoris que, juntamente com a domesticação dos animais se dá a domesticação das mulheres. A partir de 5.000 AEC, com a criação das primeiras cidades, começam a se constituir impérios na Ásia, África, Europa e América, com relações geralmente turbulentas. Novidade relevante é a constituição do sistema-mundo, a partir da Europa, no “longo século 16”, porque nele a dominação não passa necessariamente pela conquista militar, mas por relações de trocas assimétricas. Aí situa-se a grande colonização europeia, com a conquista da África, da América, da Ásia e da Oceania, e a submissão de seus povos à civilização ocidental-cristã e seu modo de produção e consumo.
A expansão europeia por meio do sistema-mundo regido pelo mercado cada vez mais submetido ao capital dá início ao processo de destruição ambiental, cultural e humana (escravismo) que vai culminar na globalização atual. A revolução industrial em meados do século 18 acelera aquele processo com o uso de energias fósseis, a produção de materiais artificiais (como plástico, concreto, alumínio etc) que a natureza não consegue reciclar, e a energia nuclear e seus resíduos. Em 1945 o crescimento econômico acelera-se em todo o mundo, até a crise de 1974. É nessa época que se constitui a juventude como categoria social distinta das demais por seu padrão de consumo e sua liberdade (porque seu ingresso na idade adulta é adiado). A partir de então diminui o ritmo, mas não o crescimento absoluto da produção, hoje consumida por 7,4 bilhões de pessoas. (Para efeito de comparação, outras espécies de grandes mamíferos são as domesticadas: bovinos, ovinos e caprinos que perfazem menos de 4 bilhões de cabeças). Atravessamos hoje a 6ª grande extinção de espécies da Terra.
É conveniente fazer essa brevíssima história da nossa espécie, porque temos muita dificuldade de perceber nossa temporalidade. Para nós, dois séculos é o tempo que o indivíduo normalmente consegue perceber (três gerações antes e três gerações depois dele); já a temporalidade da Terra se mede em milênios. O que para Terra é ritmo acelerado, para nós parece ser lentíssimo, quase estagnado. Por isso temos dificuldade de perceber fenômenos evidentes como:
- Aumento da área de degelo do Ártico
- Aumento da desertificação (solos e mar)
- Aumento do nível dos oceanos (Bangladesh)
- Aumento de eventos climáticos extremos
- Morte de rios (São Francisco)
- Diminuição das áreas de florestas > savanização
Embora especialistas alertem para o risco de aquecimento em espiral devido ao metano liberado pela tundra, o degelo polar e o desmatamento, parecemos não acreditar que o clima que há 12 mil anos é favorável à nossa espécie possa mudar substancialmente. Cabe portanto um alerta drástico: 2020 é a data-limite para se evitar a grande catástrofe climática. Este foi o alerta dado pela conferência do clima, em Paris, em 2016: se até lá não forem cortadas as emissões de carbono na atmosfera, o aquecimento ultrapassará 1,5º C, e fugirá do controle humano. O problema é que até agora as emissões não foram cortadas… Ao contrário, voltaram a aumentar. As grandes corporações e grupos financeiros que sustentam no governo Trump, Temer e outros irresponsáveis estão a pavimentar o caminho para a catástrofe enquanto o mundo se cala.
A catástrofe ambiental afetará principalmente as populações mais pobres e mais vulneráveis, como mulheres, crianças e jovens. Para o sistema capitalista, porém, ela abrirá a oportunidade de sua renovação pela destruição criativa. (É a “doutrina do choque” de que fala Naomi Klein). Preventivamente, a economia verde é apresentada como solução: a pretexto de evitar o aumento dos danos ambientais pelo mecanismo da precificação (quem causar danos pagará por eles) ela abre o caminho para a privatização de bens comuns (como a água, florestas e conhecimentos tradicionais) fazendo deles objeto de aplicação do capital e assim concentrando a riqueza.
Por isso termino esta parte citando J. M. Vigil: “Se simplesmente não fazemos nada – ainda que seja não deixar de falar no assunto – a catástrofe está garantida. Continuar tendo medo em dizê-lo é um erro”. (Agenda latino-americana e mundial 2017, p. 33).
- 2008: a crise de longa duração do sistema-mundo
O item anterior deve ter-nos feito entender que crise climática não é fenômeno meteorológico, mas resultado do modo de produção e consumo que rege o sistema-mundo. Por essa razão, sua solução só pode vir por outra política econômica (mundial). Vamos focar então o sistema-mundo regido pelo modo de produção capitalista.
A relação desse modo de produção com o ambiente – tratado como mera fonte de recursos naturais – segue o roteiro de extrair > transformar > consumir > descartar. (Note-se a diferença com as outras espécies vivas, que também extraem, consomem e descartam, mas só muito gradualmente transformam o ambiente). É enorme a quantidade de riqueza assim produzida, devido aos avanços da tecnociência. Segundo Ladislau Dowbor, se a produção mundial total fosse igualmente repartida, teríamos “cerca de R$ 11 mil de bens e serviços por mês por família de quatro pessoas”. O mesmo valeria para a economia brasileira, que está exatamente na média mundial. A realidade, porém, é de grande concentração de riqueza: 147 grupos controlam 40% do sistema corporativo mundial, sendo 75% deles bancos. Escapam ao controle governamental pelo uso de paraísos fiscais (US$20 tri, dos quais US$520 bi saídos do Brasil) e são os principais financiadores dos organismos internacionais que seriam a única instância capaz de controlá-los. Resultado é que 1% dos habitantes da Terra detêm riqueza igual àquela dos 99% restantes, e 8 homens têm riqueza igual a de metade da população mundial. Esse gigantismo das corporações transnacionais não impede, porém, que esteja em curso uma crise de grandes proporções.
Tudo indica que chegou ao fim o ciclo de acumulação puxado pelos EUA desde o início do século 19 e que esta é uma nova crise de longa duração. Essas crises são bem conhecidas[1]: caracterizam-se pela financeirização do capital (torna-se mais lucrativo emprestado do que investido na produção) e marcaram a transição do polo capitalista de um país para outro: de Gênova (sec. 15) para Amsterdã (sec. 16-17), depois Londres (sec.18-19), e atualmente Nova Iorque. Há sinais de que neste século 21 o polo vai se transferir para Pequim, onde o capitalismo poderia retomar seu desenvolvimento baseado na economia verde.
Nesse contexto situa-se a crise de época que analisaremos no item seguinte. Antes, porém, devemos destacar dois componentes da atual crise do sistema-mundo: o clima de guerra e o impasse ecológico da economia global.
- A história das transições no interior do sistema-mundo mostra que elas só se tornam viáveis ao substituir as formas de produção vigentes por novas formas capazes de dar mais vigor ao capital. É o que os economistas chamam de “destruição criativa”, que combina destruição – e sua forma mais eficaz é a guerra – e criatividade na geração da nova forma de produção. Assim foi, por exemplo, a criação da bolsa de valores em Amsterdam, a revolução industrial na Inglaterra, e o new deal nos EUA. O problema é que o advento das armas nucleares multiplica tanto a capacidade destrutiva da guerra que ela ameaça a própria sobrevivência da espécie humana. Não é sem motivo que o papa Francisco refere-se à atualidade como a da Terceira Guerra Mundial “em capítulos”. São guerras localizadas, ditas de baixa intensidade porque envolvem pequenas potências (p. ex. Qatar, Coreia do Norte, Síria, Ucrânia, Irã) mas respaldadas pelas grandes potências. A política externa de Trump só faz aumentar o risco de expansão dessas guerras. Além delas, uma nova forma é a guerra de 4ª geração que visa destruir o inimigo por meio de aparelhos de informação, do Judiciário, do Ministério Público e de acordos multilaterais (contra as drogas, o terrorismo, a corrupção, ou em defesa de Direitos Humanos ou da Democracia). A criação da Agência Nacional de Segurança dos EUA após os atentados de 11/set. 2001 possibilitou o controle das informações que circulam por internet colocando-as a serviço de sua Política Externa. (Denúncia de Snowden e Assange). O uso da informação (inclusive a pós-verdade e os fake news) permite a destruição do inimigo quase sem intervenção das Forças Armadas.
- O impasse ecológico reside numa evidência incontestável: a economia capitalista do sistema-mundo só produz resultados positivos quando cresce. O problema é que o crescimento econômico atual ultrapassou os limites de reposição da Terra. E ela não cresce. A tecnociência promete encontrar saída, mas até agora tem devorado as matérias-primas do Planeta, transformando-as em objeto de compra e venda, e nada indica que parará de fazê-lo enquanto não esgotar todos os recursos potenciais (como o petróleo do pré-sal ou do Ártico, as minas da Amazônia ou as fontes hídricas do Cerrado). Diante dessa realidade, toda projeção de futuro torna-se uma grande interrogação porque uma catástrofe climática destruiria não somente o modo de produção e consumo capitalista como grande parte da espécie humana. E a Laudato si’ de Francisco ainda é voz que clama no deserto, sem o respaldo massivo dos cristãos.
- Crise de direção intelectual e moral.
Crise de época foi a expressão foi usada no documento dos bispos católicos da América Latina e Caribe (Documento de Aparecida, de 2007) para sinalizar a gravidade do momento histórico atual. Ela quer enfatizar que está terminando a época histórica na qual a civilização ocidental cristã impôs sua hegemonia ao mundo. De fato, a crise financeira de 2008 sinaliza que neste século 21 o polo vai se transferir para a Ásia (Pequim), onde o capitalismo poderia retomar seu desenvolvimento tendo por base a economia verde. Essa transferência de centro do sistema-mundo para a China – e não se pode esquecer a Índia – implica também a perda de hegemonia da civilização europeia de origem greco-romana que se expandiu pelo mundo sob a forma de sistema-mundo. A Europa – acrescida dos EUA, o “extremo Ocidente” – e sua cultura dá sinais claros de decadência, perdendo gradativamente a função exercida nos últimos cinco séculos: imprimir a direção intelectual e moral do conjunto da população humana. Em reação a essa perda de hegemonia, o pensamento liberal recrudesce e tenta esmagar qualquer pensamento alternativo, como se retorno ao passado e a eliminação da oposição pudesse fazê-lo sobreviver.
É gigantesca a quantidade de informações hoje difundidas no mundo por meio da internet e outros meios de comunicação de massa, mas o excesso de informações resulta em anulação da informação e pode piorar a qualidade do conhecimento. Embora a produção científica, cada vez mais especializada, desvende os segredos da natureza e da história humana, ela é incompreensível para o grande público, que se torna dependente das interpretações oferecidas pela mídia. Quem é incapaz de distinguir informações falsas das verdadeiras, ingenuamente consome fake-news e produtos da propaganda. Por isso fala-se hoje da pós-verdade: diante de informações as mais diversas, a pessoa tender a aceitar como verdadeiro aquilo que corrobora sua opinião. A complexidade das modernas sociedades só reforça essa dificuldade de discernir. A experiência do indivíduo – que ignora a complexa teia de relações envolvidas na produção e distribuição dos bens que consome – mostra que tudo que ele necessita encontra-se no mercado e que tendo dinheiro suficiente terá tudo que desejar. É a forma atual de alienação: ignora-se os processos de funcionamento dos sistemas social, econômico, político e ecológico, mas essa ignorância não faz diferença na vida cotidiana. Cabe aqui referência especial à juventude: criada no ambiente virtual da internet, tende a considera-lo como se natural fosse. Daí sua dócil aceitação do pensamento liberal embutido na propaganda e difundido pelas redes sociais de forma atraente (até um Bolsonaro faz sucesso).
Esse pragmatismo do pensamento, que vê o mercado como algo tão natural quanto a lei da gravidade (já dizia Delfim Netto), representa o triunfo do pensamento liberal que justifica o modo de produção e consumo capitalista. Seus valores – progresso, liberdade individual, competitividade, intocabilidade da propriedade e dos contratos, eficiência etc – continuam a dominar o imaginário/ideário ocidental moderno. Em contrapartida, valores contestatários de justiça social, socialismo, democracia, igualdade, humanismo e outros já não mais ameaçam a ordem estabelecida. A própria religião, relegada ao foro privado, nada mais tem a dizer diante desse mundo ordenado pela lógica do capital. As vozes proféticas não ganham repercussão, enquanto fazem sucesso as religiões que prometem prosperidade, curas e proteção individual.
Nesse contexto entende-se a pertinência da afirmação do bilionário estadunidense Warren Buffet: “A luta de classes existe e a minha classe está ganhando”. Agora em situação de vantagem, essa classe dos grandes ricos propõe a paz, entendida como fim da luta dos oprimidos e oprimidas e não como harmonia social baseada no triunfo da justiça. Um poema catalão citado por D. Pedro Casaldáliga bem expressa essa derrota das classes oprimidas no plano das ideias: “Combatentes derrotados de uma causa invencível”.
- Brasil: o golpe de 2016.
É preciso situar o golpe de 2016 no Brasil no contexto de realidades mais amplas – a Terra, o sistema-mundo e o fim de hegemonia do Ocidente – para entender seu significado histórico.
As grandes corporações mundiais têm o objetivo estratégico de garantir suas fontes de energia e de matérias-primas a baixo custo, para fazer face à financeirização do capital. Esse interesse associa-se ao objetivo estratégico dos EUA de impedir avanço da China no Continente. Embora os governos de Lula e Dilma não fossem obstáculo a esses objetivos, tampouco se alinhavam automaticamente aos rumos definidos pelos EUA, como mostram a política externa de abertura ao Sul (o chamado Terceiro Mundo) e a parceria econômica com a China. Aí reside, em meu entender, a razão principal do golpe de 2016, da mesma estirpe dos golpes contra M. Zelaya em Honduras (2009), F. Lugo no Paraguai (2012), e as sucessivas tentativas de tirar N. Maduro na Venezuela. (Argentina só não sofreu golpe porque ao eleger Macri aceitou favorecer as grandes corporações).
O processo golpista teve seu início durante as mobilizações sociais de junho de 2013, quando a resposta negativa do Governo às demandas populares abriu o caminho para os grupos organizados para derrubá-lo assumirem a voz das ruas. É relevante o papel da grande mídia e de ONGs tipo MBL e Vem pra ruaque contam com financiamento externo (entre outros, o bilionário brasileiro Jorge. P. Lemann). A crise econômica artificialmente estimulada em 2014/16 para desestabilizar o governo Dilma, incapacitada de encontrar uma saída resposta eficaz, foi o estopim do processo que culminou com o impeachment em abril de 2016. Foi então usado o método da guerra de 4ª geração, já referida[2].
É preciso destacar que o golpe teve por objetivo romper o pacto social que gerou a ordem constitucional de 1988 para dar resiliência ao projeto elitista das classes dominantes. Vejamos brevemente o que é isso.
- A desigualdade social no Brasil expressa-se pela concentração da renda e da riqueza.
Quanto à renda, são expressivos os dados da Receita Federal de 2013: do total de 26.500.000 declarantes, 208.000 declararam renda igual ou superior a 80 salários-mínimos / mês (= R$75.000 hoje) e 71.500 declararam renda igual ou superior a 160 salários mínimos mês (= R$150.000 hoje). Se fossem considerados os rendimentos não declarados, ficaria ainda maior a sua concentração em mãos de uma minoria privilegiada. Os 5% mais ricos abocanham o mesmo que os outros 95%
Também acentuada é a concentração da riqueza: 1% da população concentra 48% da riqueza nacional e 10% têm 74%. Na ponta estão 31 bilionários (em 2016; eram 10 em 2000). Em 2017: os 6 maiores bilionários do País juntos possuíam riqueza equivalente à da metade mais pobre da população. Na outra ponta está a população em condições de extrema pobreza: 8,5 milhões de pessoas vivendo com até R$140 mensais (estimativa para 2017).
- As classes dominantes têm um projeto histórico elitista contrário ao projeto de Nação.
Herdeiras da casa-grande escravista e detentoras do poder de Estado (por eleição e por corrupção), elas se compõem no jogo político excluindo as forças que postulam a necessidades de reformas estruturais (v.g. agrária, política, fiscal, urbana etc). Detém o capital que controla as empresas e os meios de comunicação de massa. São, porém, submissas às metrópoles neocoloniais (empresários aceitam ser gerentes do capital externo). Contam com a cumplicidade de economistas e pensadores (institutos como Casa das Garças, Millenium e outros) e têm forte presença no Judiciário e nos altos postos de poder que dependem de concurso público (que exigem muito estudo). Sua hegemonia cultural e religiosa, que fora abalada durante a ditadura empresarial-militar de 1964-84, está sendo recuperada por intelectuais que se assumem de direita e têm forte penetração na grande mídia e nas redes sociais. Conquistou a conivência da maioria das Igrejas evangélicas e do setor majoritário da Igreja católica ao reforçar propostas conservadoras no campo da moral sexual e familiar e manter as isenções fiscais para instituições religiosas. Enfim, sua tranquilidade é assegurada pela polícia e pela segurança privada (inclusive milícias) e habita espaços exclusivos (condomínios fechados, alphavilles, resorts, Miami, Portugal etc).
- A ruptura do pacto social que está na base da Constituição de 1988.
Golpe uniu diferentes setores da sociedade brasileira: empresários e ruralistas que propunham reformas neoliberais para recuperar ou aumentar a taxa de lucro, políticos profissionais que queriam estancar a Lava-jato e livrar-se de Lula e do PT, setores da pequena burguesia temerosos da ascensão econômica dos pobres, igrejas cristãs em oposição a propostas inovadoras na legislação referente ao aborto, às drogas, políticas de gênero e ensino laico. Na prática, o regime político tornou-se na parlamentarista devido à fragilidade do poder executivo, embora seja este o Parlamento mais ilegítimo desde 1984: H. Meireles concentra poderes semelhantes ao de primeiro-ministro apoiado pela maioria absoluta da Câmara e do Senado. Assim vai-se colocando em prática o projeto do PMDB “uma ponte para o futuro”, de 2015. Hoje desmorona a coalizão que possibilitou o golpe e cada setor busca tirar o maior proveito que consegue, mas não aparece quem tenha a respeitabilidade moral exigida para exercer o governo da república. Agrava-se a situação política devido à desmoralização que atinge os três Poderes. Desenha-se então uma intervenção militar como se ela fosse capaz de encontrar a saída para a crise das instituições republicanas. Nesse contexto, o projeto das classes dominantes para 2018 é manter as aparências da democracia sem perder o controle do governo e do Estado. Em caso de risco de derrota, serão suprimidas as eleições.
- Brasil: as classes populares diante e após o golpe de 2016.
O golpe pegou a maioria das Organizações e Movimentos populares – com exceção daqueles que tinham feito oposição aos projetos de Lula e Dilma – mais próximos dos órgãos de governo do que do cotidiano vivido nas bases. Esse efeito do lulismo enfraqueceu a resistência ao golpe, porque as classes populares pouco se mobilizaram contra ele (diferentemente dos setores médios, que se mobilizaram massivamente sob o comando do MBL, Vem pra rua, FIESP e outros grupos oportunistas para desalojar o PT do governo federal). Não tendo percebido a extensão do golpe, os Movimentos e Organizações populares tiveram sua força política desgastada a cada embate vencido pelos golpistas. Fragilizadas, até agora elas só impediram a implementação de medidas muito impopulares e o avanço da proposta de reforma da previdência. Neste contexto, empate tem sabor de vitória…
De fato, a constituição cidadã de 1988 tem sido interpretada pelo Poder Judiciário de modo unilateral, de modo a ser rigorosamente garantida quando em prol das classes dominantes, mas não quando se trata de preservar direitos de povos indígenas, trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, e seus representantes políticos. A isso se somam os assassinatos e abusos policiais, chacinas (nas periferias urbanas, no campo e de indígenas) configurando-se o que Paulo Sérgio Pinheiro chamou “terrorismo preventivo de Estado”: manter as classes dominadas, potencialmente perigosas para a ordem pública, recolhidas em seu domicílio por medo de serem objeto da violência policial.
Apesar disso, pode-se perceber a emergência de várias propostas no sentido de desfazer os danos sociais e políticos causados pelo golpe de 2016 e estabelecer uma nova ordem social que faça justiça às classes e setores sociais oprimidos. Aponto aqui três delas:
- plano popular de emergência, da Frente Brasil Popular, com 76 propostas de políticas públicas distribuídas em 10 campos de ação;
- referendo revogatório das medidas abusivas posteriores ao impeachment;
- eleição livre e democrática de constituinte soberana, para redigir nova Constituição.
Não há dúvidas de que as três merecem consideração, porque de forma diferente encaminham soluções concretas para o problema da desordem institucional pós-golpe. Sua fragilidade reside no fato de que o golpe não foi uma simples troca de governo, mas sim a retomada do poder absoluto pelos representantes das classes dominantes e submissas às grandes corporações internacionais. Ele só pode ser derrubado por um amplo consenso nacional (que foi rompido e nada indica que possa ser refeito, dado o clima de ódio social) ou por uma insurreição popular (que não está no horizonte). Aliás, pode-se perguntar se alguém ou algum grupo teria poder convocatório para liderar uma insurreição que revertesse inteiramente a atual correlação de forças. Tudo isso nos obriga a
prever longo tempo para criar laços sociais que resultem em força política popular.
- Com os pés no chão da História, olhar para frente
Toda essa análise da realidade nacional, considerada em seu contexto planetário e sistêmico, só tem sentido para quem luta por um mundo onde reinem a Justiça, a Paz e a integridade da Casa Comum, na medida em que descortina o horizonte para a ação política libertadora. Por isso, termino a análise apontando os caminhos que hoje vislumbro como viáveis, os novos obstáculos a superar e a necessidade de elaborar-se uma nova compreensão do mundo.
- Conscientização: para superar a situação de alienação e descontrole da informação, impõe-se a retomada do trabalho de conscientização popular. O método de Paulo Freire – que une o aprendizado à autoformação da consciência de quem somos, qual nosso lugar no mundo, quem são nossos aliados e quem são nossos adversários e inimigos – é um excelente instrumento para isso. Outro excelente instrumento é a leitura popular da Bíblia, sempre confrontada à realidade vivida pelo grupo. Quem toma gosto pela Palavra de Deus inserida na vida do povo torna-se incansável na luta pela construção do Reino de Deus na história humana.
- Organização: neste momento histórico em que os donos da riqueza e do poder reforçam sua posição, é necessário reunir quem partilha o mesmo projeto, tendo em vista ações conjuntas. É preciso mirar no longo prazo – “outro mundo possível e necessário” – sabendo que vivemos uma conjuntura desfavorável no curto e médio prazo. Por isso, é preciso saber dosar as forças: não jogar tudo nas lutas imediatas, mas fazer delas pontos de apoio para as lutas de longo prazo. Isso é favorecido pela opção por objetivos imediatos bem concretos e que aglutinem o maior número de pessoas (por exemplo lutas pela água, pelo ambiente, pela saúde).
É preciso retomar o método da Formação na ação, que implica a reflexão em grupo sobre a prática do mesmo grupo. É o método ver, julgar e agir ao qual se acrescentou o celebrar.
- Novos obstáculos: as transformações do modo de produção e consumo capitalista – fala-se em 4ª revolução industrial, com o advento da inteligência artificial – trouxeram dificuldades antes desconhecidas, como a diluição dos laços sociais oriundos da participação no processo de trabalho, cada vez mais individualizado e controlado pela informática (uberização), e a redução da mobilidade urbana, que torna as famílias e as pessoas mais isoladas em seu espaço doméstico. Outro obstáculo a ser destacado são as redes sociais que em vez de espaço de diálogo e debates se tornaram comunidades virtuais de quem pensa da mesma maneira.
- Nova compreensão do mundo: o pensamento iluminista sistematizado na Europa do século 19 e desenvolvido no século 20 – agora globalizado – mostra-se incapaz de fundamentar projetos de construção de uma civilização planetária que substitua a civilização ocidental-moderna. Buscamos hoje um novo paradigma – ou uma nova base hermenêutica – de pensamento carregado de valores que impulsionem a construção da Paz e da Justiça no mundo. A sabedoria do Bem-Viver (Sumak Kawsay) é um desses pensamentos que hoje vem ganhando espaço entre os Movimentos e Organizações sociais, porque (i) inclui a Terra como sujeito de Direitos, (ii) assume a dimensão espiritual e mística (a capacidade de ver o que está por detrás do perceptível e que energiza o real), (iii) reconhece as diferenças de gênero, étnicas, culturais, de geração e outras ao pensar as condições de existência e (iv) inclui outras espécies além da humana como parceiras na comunidade de vida.
A sabedoria ou utopia do Bem-Viver tem sua origem na experiência de lutas populares contra o capitalismo neoliberal e tem seu fundamento nas raízes culturais dos povos originários da América, mas não é um retorno ao passado e sim um projeto pós-capitalista. Por isso tem afinidades com o ecossocialismo, a economia solidária e outras propostas de superação histórica do capitalismo. Importante notar que ele brota da prática popular, mas não é espontâneo: requer elaboração teórica para desvendar os processos de dominação e colonização, e para dar legitimidade a novas práticas sociais e políticas.
- Para as comunidades cristãs fica uma questão: a Fé que está baseia nossa Esperança é ingenuidade? Ou temos razões para afirmar nossas convicções na possibilidade de uma civilização planetária, justa e pacífica?
Juiz de Fora, 23 de novembro de 2017
[1] ARRIGHI, Giovanni: O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo; Contraponto e UNESP, 1996
[2] A guerra de 4ª geração visa destruir o inimigo por meio de aparelhos de informação, do Judiciário, do Ministério Público e de acordos multilaterais (contra as drogas, o terrorismo, a corrupção ou em defesa de Direitos Humanos e da Democracia). A criação da Agência Nacional de Segurança dos EUA após os atentados de 11/set. 2001 possibilitou o controle das informações que circulam por internet colocando-as a serviço de sua Política Externa. (Denúncia de Snowden e Assange). O uso da informação (inclusive a pós-verdade e os fake news) permite a destruição do inimigo sem o uso das Forças Armadas.