Segundo Benedito Barbosa, da Central dos Movimentos Populares, Constituição, o Estatuto da Cidade e um conjunto de leis internacionais garantem o Direito à Moradia, mas prevalece no Judiciário brasileiro visão de “direito absoluto da posse”
A reintegração de posse do antigo Hotel Aquarius, edifício localizado na Av. São João, centro da capital paulista, relembrou que o estado ainda conserva uma política habitacional contrária ao que legalmente é garantido à população. Abandonado pelo proprietário há mais de dez anos, o imóvel estava ocupado por mais de 200 famílias que foram violentamente desalojadas ontem (16), pela manhã.
Em nota, a Frente de Luta por Moradia (FLM), movimento que atuava no local, afirmou: “Essas famílias se organizaram depois de sofrerem despejos de suas moradias de origem. Em desespero e sem ter outra alternativa, abandonados pelo poder público, ocuparam este prédio. […] Crianças sufocadas com as bombas de gás chegaram a desmaiar. Um cenário estarrecedor, da barbárie do Batalhão de Choque, da insanidade do Judiciário e insensibilidade do governador, que reiterou a ordem de colocar os sem teto na rua a qualquer custo”.
Advogado e militante da Central dos Movimentos Populares, Benedito Roberto Barbosa, o Dito, acompanha famílias despejadas ou em processo de despejo, dando suporte jurídico para defender os movimentos de moradia de São Paulo. Segundo ele, a Constituição, o Estatuto da Cidade e um conjunto de leis internacionais garantem o Direito à Moradia. No entanto, no Brasil, eventos como o de ontem deixam claro que ainda “prevalece o direito absoluto da posse”.
De acordo com Dito, o Poder Judiciário brasileiro parte de uma interpretação tradicional do que é propriedade que ignora a determinação de códigos e direitos. A própria Constituição (Artigos 182 e 183) prevê a função social da propriedade. “Há uma confusão entre posse e propriedade na visão do Judiciário. O código civil, no Artigo 524 (Lei 3071/16), afirma que o proprietário tem o direito de usar e dispor de seu bem. Nesse caso, tínhamos 21 andares abandonados há anos. Se o proprietário não está usando esse bem, o imóvel pode ser usado socialmente”.
No dia 3 de setembro, Dito esteve no batalhão da Polícia Militar representando as famílias para discutir a reintegração de posse do imóvel. Durante a reunião, o advogado, um oficial de justiça, um representante do proprietário do imóvel, um representante do depositário e o comandante do batalhão da PM responsável pela operação encaminharam que a reintegração aconteceria a partir das seis da manhã do dia 16 (ontem). Segundo Dito, o acordo estabeleceu claramente que o proprietário providenciaria 40 caminhões e 120 operacionais para a retirada dos pertences das famílias, o que não ocorreu. Uma tentativa de reintegração já havia sido realizada no dia 27 de agosto e, devido à mesma falta de meios, o oficial de justiça envolvido no caso suspendeu a operação naquele dia.
Dessa vez, no entanto, a situação foi ignorada e deu-se continuidade à expulsão das famílias. “Eu cheguei lá antes das seis horas e percebi que havia poucos caminhões. Tentamos dialogar, mas o capitão não cedeu. Liguei para a Secretaria de Segurança Pública, falei com o Eduardo Dias, assessor do Fernando Grella (secretário de Segurança Pública do governo estadual), tentei contato com o Coronel Glauco (responsável pelo Comando de Policiamento da Capital), mas, por volta das 7h40, começaram a cercar a região e cumpriram a reintegração”, relata Dito.
Segundo Silmara Congo, representante da FLM, a intervenção da polícia militar foi truculenta. “A tropa de choque chegou soltando bombas no prédio, com crianças e todo mundo lá dentro, e as famílias reagiram, jogando móveis para fora. A PM continuou atacando, mesmo com o prédio reintegrado”, afirma.
De acordo com Dito, mais de setenta pessoas foram presas, inclusive crianças, e muitas pessoas passaram mal com as bombas de gás e foram agredidas com balas de borracha durante a operação.
O coletivo de jornalistas Ponte, especializado na cobertura de segurança pública e direitos humanos, cobriu o ato em tempo real via Facebook. Os vídeos e fotos mostram a desproporção da força usada pelos policiais contra as famílias da ocupação.
Após o confronto ocorrido pela manhã, a Rede Brasil Atual noticiou que os policiais prosseguiram atacando bombas de efeito moral e balas de borracha em pessoas que estavam próximas ao edifício, uma “demonstração de força” e “ação ostensiva” sem aparente motivação, relatou o jornalista Rodrigo Gomes em matéria publicada no site.
Segundo Guilherme Boulos, integrante da coordenação nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), em artigo publicado pelo Outras Palavras, existem mais de 25 ordens de despejo contra ocupações só no centro de São Paulo. Outros “tipos” de ocupações, no entanto, também caracterizadas como áreas públicas invadidas ou com concessão de uso irregular não são passíveis da intervenção policial truculenta. Entre os exemplos estão bancos, shoppings e clubes, inclusive o Clube Círculo Militar de São Paulo e o Clube dos Oficiais da Polícia Militar. Isso porque partem de iniciativas privadas que, mesmo representando mais de R$ 600 milhões de prejuízo anual para o poder público e 731mil m² de área, ainda diferem “dos sem-teto descamisados” que ocupam imóveis por falta de moradia.