Ex-presos políticos e anistiados propõem carta compromisso; Boulos, João Goulart Filho e Vera Lúcia já assinaram
Pelo direito à memória política e em defesa da anistia às vítimas da ditadura civil militar brasileira, ex-presos políticos, integrantes de comissões da verdade e anistiados elaboraram uma carta de compromisso eleitoral que será entregue a candidatos a cargos dos Poderes Executivo e Legislativo nas eleições deste ano.
O documento propõe que cada político, caso eleito, se comprometa a implementar quatro medidas centrais para a chamada Justiça de Transição, que reconhece as violações cometidas pelo Estado durante o regime militar.
São elas: a execução de recomendações feitas pela Comissão da Nacional da Verdade (CNV); atuar pelo respeito às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que condenam o Estado brasileiro nos casos Gomes Lund e Vladimir Herzog; promover a apreciação dos requerimentos de anistia que ainda não foram julgados e atuar pela construção de memoriais e locais de memória política.
A carta compromisso é acompanhada de orientações detalhadas na plataforma “Eleições 2018 e a Justiça de Transição no Brasil”, lançada na última sexta-feira (28), no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. O documento já foi assinado pelos presidenciáveis Guilherme Boulos (PSol), João Goulart Filho (PPL) e Vera Lúcia (PSTU), com perspectiva de adesão de outros candidatos.
“A Justiça de Transição se funda no direito à memória, na verdade, e na Justiça. Esse tripé vem acontecendo no nosso país, mas não foi suficientemente reconhecido pela sociedade e nem por aqueles que estiveram no poder. É uma política de esquecimento”, afirmou Rita Sipahi, ex-presa política e conselheira da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça. “Isso significa que nossa história oficial sempre foi a história dos dominadores”, acrescentou.
A ativista explica que, além da reparação financeira, a Justiça de Transição deve atribuir responsabilidades civis, criminais e administrativas, assim como deve promover a efetivação do direito à memória.
“Nós fomos enormemente prejudicados pela política do esquecimento e também pela ação de muitos políticos que não davam importância suficiente a essas questões. O que queremos agora é que cada político que venha assumir, saiba que tem essa responsabilidade também, que tem essa dívida com o país”.
Resistência
Ex-presos políticos se encontraram durante o lançamento da Plataforma e reforçaram a necessidade do direito à memória e a urgência das ações de reparação para todas as vítimas das ditaduras brasileiras.
Sofia Dias Batista, pesquisadora do projeto “Memória”, da Oposição Metalúrgica de São Paulo e integrante do IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), contou que foi presas duas vezes na ditadura militar de 1964, enquanto trabalhava na empresa Philco.
“Fui presa em um camburão na porta da fábrica, sem dever nada. Os trabalhadores, colegas de trabalho, nos viam naquela situação. Era como se fossemos criminosos”, relatou Dias, vítima de tortura psicológica pelos militares. “É uma tortura passar o dia inteiro lá, levam para uma sala, levam para outra, pegam um companheiro seu e tiram do grupo. É uma tortura ficar sem saber o que ia acontecer com a pessoa.
Também participante do Fórum dos Presos e Perseguidos do Estado de São Paulo, a militante foi presa pela segunda vez durante uma greve em 1979. Para ela, a Plataforma de Justiça de Transição cumpre um papel essencial.
“É um resgaste de uma história que não pode ser esquecida. A sociedade tem que conhecer o que passamos, toda a opressão desde a escravatura, contra os índios, e também a opressão da ditadura militar, empresarial e patronal de 64. Precisamos rebater o senso comum que diz que se foi preso é por merece. Foi uma questão de perseguição, por pensar diferente do regime militar”, ressaltou.
Já Severo Alves Maia, que trabalhava como metalúrgico em Santo André, foi preso sete vezes durante a ditadura. Foi perseguido pelas empresas e não conseguia emprego fixo devido sua atuação política contra o autoritarismo.
Segundo Maia, o monitoramento dos militares era muito bem feito. Certa vez, saiu de São Caetano para o Rio de Janeiro, e mesmo sem falar para ninguém sobre seu destino final, foi interceptado e preso em Resende, município do estado carioca.
O metalúrgico destaca a importância da anistia para todas as pessoas, organizadas ou não, que sofreram com a repressão deste período.
“Nós temos pessoas no sul do Pará, que trabalharam para fazendeiros carregando mortos em caminhão. É uma atrocidade muito grande. A questão dos índios, dos negros e dos quilombolas, foi um extermínio em todo o Brasil”, disse.
Política de reparação permanente
Rita Sipahi sublinhou que no período democrático ainda existem fortes resquícios da ditadura. A Polícia Militar, por exemplo, é um deles. De acordo com a conselheira da Comissão da Anistia, a PM atua baseada na lógica do inimigo, a mesma que na ditadura assassinou militantes comunistas e que, atualmente, assassina negros.
A Plataforma da Justiça de Transição enfatiza a necessidade de uma política de reparação permanente impulsionada pelo Estado.
“A comissão não é só uma política de governo, é uma política de Estado. O Estado pede desculpas a quem foi anistiado pelos atos de exceção cometidos. O Estado assume que ele foi o repressor quando devia ser o protetor e, naquele momento, pede desculpa. Isso é uma reparação simbólica”, acrescentou Sipahi.
Os anistiados declararam que a Comissão de Anistia enfrenta dificuldades ainda maiores no Governo Temer. As cerimônias com pedidos formais de desculpas do Estado têm sido cada vez menos frequentes e há em curso um esvaziamento do colegiado que analisa os pedidos. Em agosto, por exemplo, havia mais de 13 mil requerimentos pendentes, ou seja, mais de 13 mil vítimas da ditadura que ainda não foram minimamente reparadas pelas violações de direitos humanos que sofreram.
(Foto: Memórias da Ditadura)