Apesar de interino, governo busca impor agenda de retrocessos sociais e trabalhistas e tem enfrentado duras críticas de movimentos sociais, em especial de mulheres. Sociedade civil teme aumento da repressão policial
Por Nicolau Soares e Amanda Proetti, do Observatório
O Brasil viveu um novo retrocesso em sua democracia com a aprovação pelo Senado Federal do afastamento da presidenta Dilma Rousseff (PT) de seu cargo, dando início ao governo provisório de Michel Temer (PMDB). Foi um passo decisivo para um processo de impeachment que é visto como um golpe de Estado por movimentos sociais, juristas, veículos importantes da imprensa internacional e um número cada vez maior de pessoas.
Os primeiros movimentos do governo interino dão razão a esse entendimento, para além da flagrante fragilidade das acusações contra a presidenta e da postura oportunista de seus principais agentes. Tanto o gabinete constituído por Temer – sem mulheres, negros e recheado de ricos e investigados por corrupção – quanto as prioridades anunciadas representam um cavalo de pau no projeto escolhidos pela população nas eleições de 2014. Se Dilma foi criticada por adotar, em parte, teses neoliberais defendidas por Aécio Neves (PSDB) na campanha, Temer demonstra querer ir além até mesmo do programa de governo derrotado quatro vezes seguidas nas urnas, com retrocessos em políticas sociais que configuram ataque até mesmo a conquistas inscritas na Constituição de 1988.
“O governo que assume é um governo ilegítimo. Está assumindo para levar em frente o projeto teoricamente interrompido em 2002 ao final do governo FHC. Um projeto também neoliberal vinha sendo aplicado, mas com correções nos governos Lula e Dilma, embora neste segundo mandato de Dilma estivesse sendo aplicado mais fortemente”, denuncia Ivo Lesbaupin, diretor do Iser Assessoria e militante histórico da luta pela democracia no Brasil.
“Vão tentar fazer, por exemplo, reforma da previdência com esse conteúdo que é a desvinculação do salário mínimo que estão tentando fazer desde a Constituição de 88. A medida atinge 77 milhões de beneficiários, dados de anos atrás. Só serão prejudicados os pobres e trabalhadores”, completa.
Em nota, a Frente Brasil Popular, que reúne dezenas de movimentos sociais e sindicais na luta contra o golpe, denunciou o programa antipopular de Temer e seus aliados. “As intenções dos golpistas estão declaradas a céu aberto: arrochar salários, acabar com a política de valorização do salário mínimo, cortar gastos com programas sociais, eliminar direitos civis, privatizar empresas estatais, reduzir investimentos públicos, anular despesas constitucionais obrigatórias com saúde e educação, abdicar da soberania nacional diante dos centros imperialistas.”
A Frente Povo Sem Medo, também organizada por dezenas de movimentos sociais, tem convocado atos em várias cidades do Brasil para denunciar o governo ilegítimo. Em São Paulo, cerca de 30 mil pessoas compareceram à mobilização no dia do afastamento de Dilma. Desde então, atos – organizados ou não por uma das duas grandes Frentes – foram registrados no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Natal, Curitiba e em diversas outras cidades.
Entre elas, Porto Alegre ficou marcada pela truculência da repressão policial, que chegou a registrar policiais avançando a cavalo contra os manifestantes, de sabres em punho. Para a Frente Brasil Popular, esse cenário é o mais provável para cumprir o “programa antipopular e antinacional” proposto por Temer. “Não hesitarão em ir além do golpe institucional em curso, adotando medidas de criminalização e repressão contra a resistência democrática, os movimentos sociais e os partidos progressistas”, diz a nota da Frente.
Para Lesbaupin, essa é uma das fragilidades do governo provisório, que precisa conciliar a pressa para impor medidas antipopulares com a tentativa de conquistar legitimidade junto à população. “A tendência normal de um governo seria jogar repressão em cima dos movimentos, mas isso confirmaria a denúncia de que é golpe, o que eles passaram o tempo todo negando. Repressão combina com ditadura. Vão ter que dosar a repressão para não perder a legitimidade que eles estão querendo conquistar”, analisa.
Em seu discurso no dia do afastamento, a presidenta Dilma alertou para o risco de o país ser “dirigido por um governo dos sem-voto, um governo que não foi eleito pelo voto direto da população brasileira”. “Um governo que não terá a legitimidade para propor e implementar soluções para os desafios do Brasil. Um governo que pode ser ver tentado a reprimir os que protestam contra ele. Um governo que nasce de um golpe, de um impeachment fraudulento, nasce de uma espécie de eleição indireta, um governo que será ele próprio a grande razão para a continuidade da crise política em nosso País.”
“A única maneira de se posicionar frente a um governo ilegítimo e à tomada de medidas que só vão piorar o ajuste fiscal já em curso é a reação popular”, afirma Lesbaupin. “Temos que multiplicar as manifestações. Teve gente que não se manifestou ou setores populares que não foram às ruas e ficaram só observando, seja porque não entendiam bem o processo, seja porque não se identificaram e preferiram não se manifestar. Agora, uma parte dessa população poderá ir às ruas”, avalia.
Ele alerta para a necessidade de furar o bloqueio informativo imposto pela mídia tradicional, que tem apoiado tanto a destituição da presidenta quanto a ascensão de Temer. “O momento agora é de luta e isso implica em investimento em comunicação. Isso será extremamente importante porque não temos a grande mídia ao nosso lado. E manifestações que furem essa mídia.”
Mulheres e cultura resistem
A falta de mulheres no primeiro escalão do governo interino tem sido um dos temas mais mobilizadores dos setores contrários ao golpe. Em São Paulo, uma manifestação convocada pelas redes sociais reuniu mais de 10 mil pessoas contra o machismo e pedindo “Fora Temer”, passando por palavras de ordem contra a Fiesp em frente ao prédio da federação de empresas.
Em Curitiba, 3 mil pessoas, na maioria mulheres, marcharam pela cidade e terminaram o ato em frente ao prédio do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão vinculado ao extinto Ministério da Cultura. O fim da pasta também tem sido alvo de fortes críticas ao governo, bem como a extinção da Controladoria Geral da União.